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quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Dentro do Eixo: que perguntas fazer?

Dentro do Eixo: que perguntas fazer?


No âmbito da música, o grande mote do Fora do Eixo (FdE), temos a importância histórica do intermediário monopolizado. Em que sentido o FdE não pode ser entendido como novo intermediário no mercado cultural? Em que sentido o FdE é diferente de uma produtora tradicional de música? Por Amanda Coutinho.


A participação de Pablo Capilé e Bruno Torturra, idealizadores do Mídia NINJA (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação), no programa Roda Viva do último 5 de Agosto, intensificou os debates, sobretudo nas redes sociais, relacionados ao modo de funcionamento do Fora do Eixo (FdE), grupo que financia a NINJA. Tendo em vista a heterogeneidade das análises publicadas recentemente, este texto procura lançar luz sobre um aspecto específico: a articulação Estado/Capital (Trabalho) na gestão das políticas culturais. Em outros termos, como noções de sujeito criativo, autoemprego, e independência se reconceitualizam na lógica do empreendedorismo cultural e qual tem sido a escolha e o papel do Estado nesse ambiente, enquanto formulador de políticas públicas da comunicação e da cultura. 


Para entender um pouco o campo analítico em que se situa o FdE, partimos do próprio modo pós-fordista de produção de bens e valores, bem como à sua dinâmica de circulação e consumo caracterizado pelo crescimento dos bens simbólicos e do setor de serviços, acompanhado do uso intensivo da tecnologia e da informação, tendo como vetor o conhecimento e a criatividade. Esse quadro nos leva a convergir com Yúdice (2006) quando observa o movimento de legitimação e conveniência da cultura a partir de sua posição privilegiada dentro da cadeia produtiva contemporânea, inaugurando a perspectiva de gerenciamento e racionalidade administrativa no setor, o que faz com que cada vez mais cresça a demanda por profissionais aptos a trabalharem na gestão, produção e curadoria cultural (basta percebermos a quantidade de cursos nessa área que surge nos últimos anos no Brasil, notadamente no eixo Rio-SP).



No lugar do debate essencialista ou mesmo anti-econômico que apontava para a distinção adorniana entre cultura de um lado e produção material de outro, temos hoje a proeminência da cultura enquanto “bom negócio”. A consolidação desse processo ocorreu entre as décadas de 1960 e 1990, engendrando uma economia cultural e/ou criativa. A culturalização da mercadoria ou mercantilização da cultura, que atrai grandes investimentos e retornos financeiros, influenciou também a proliferação de organizações e coletivos agenciadores da cultura, chamando a atenção de teóricos, governos, empresariado, terceiro setor, regulamentações comerciais e bancos de desenvolvimento. Concatenada com os paradigmas de capitalismo cognitivo de “valor agregado intangível”, trabalho imaterial e “revolução informacional”, a cultura, finalmente, é inscrita na agenda institucional e discursiva novo-desenvolvimentista, em perspectiva integrada e transversal de Direitos. 



Além do aspecto econômico, a cultura tem se tornado cada dia mais uma importante esfera de linguagens simbólicas e sociais, em diferentes níveis de legitimidade, representações e ressignificações, mais ou menos importantes para situar as pessoas em suas contradições. Certo é que muito do que se faz hoje no campo político é constituído por grupos, coletivos e outras iniciativas que, de alguma maneira, privilegiam a arte-cultura como forma de comunicação e ação. Na cidade de São Paulo, a “onda culturalista” pode ser percebida no novo empresariado cultural formado por uma rede de agentes que não buscam sua fonte de lucro no direito exclusivo (propriedade intelectual) sobre a venda de um CD, por exemplo. No novo modelo, as empresas colam a sua imagem-marca à riqueza de saberes e símbolos coletivamente construídos. Quer dizer, a principal atividade econômica desses grupos não é a produção de um produto, mas a comercialização de seus serviços, notadamente a produção e o gerenciamento dos processos coletivos.



É nesse contexto que surge o Circuito Fora do Eixo. Inspirado no conceito de economia solidária de Paul Singer e de open business, o estudante de Comunicação, Pablo Capilé, fundou o coletivo em 2003 na cidade de Cuiabá, no intuito principal de ganhar “capilaridade e sinergia”, organizando um mercado cultural independente e/ou alternativo em expansão, notadamente no âmbito da música. Emblema da rede e do fluxo, o grupo resolveu, então, adotar novas formas de gestão organizacional: “colaborativa, horizontal, autônoma e livre”. Atentos aos temas em voga, o Fora do Eixo (FdE) começou a articular retórica multiculturalista, ativismo político-cultural e modas estéticas avançadas, somando formas alternativas de sociabilidade e economia de trocas. Desde então, a imagem usualmente citada para explicar o Fora do Eixo é o liquidificador que conta com estratégias de mercado e de agência de publicidade, com ramificações de esquerda de midiativismo “pós-rancor”, recriando instâncias de comunicação entre jovens e participação política. 



Definido por Pablo como “conjunto de saberes operacionais” ou “mosaico de múltiplas parcialidades”, o Fora do Eixo conta com moeda própria e/ou complementar de troca de atividades entre participantes (o CuboCard), banco também próprio, além da Universidade Fora do Eixo, estrutura que permite, segundo seu idealizador, uma “desmercantilização” de suas práticas. Seus membros (jovens estudantes, publicitários, artistas, jornalistas, produtores e gestores) moram em casas coletivas e não recebem remuneração na forma de salário, ao mesmo tempo em que têm as contas pagas pelo grupo. Se ocupando de encargos “de forma colaborativa”, seus integrantes não assinam qualquer criação individualmente, mas realizam atividades “no intuito de fortalecer a equipe”. No discurso corrente, os membros não trabalham – no sentido convencional do termo – mas constroem uma trajetória pessoal e coletiva em que diversão, produtividade e protagonismo social estão indissociáveis. Mesmo quando são cobrados com mais severidade, a interpretação que se procura reafirmar é que todos fazem o que gostam, estão plenamente conscientes sobre os riscos e benefícios e se sentem felizes e confortáveis em participar. A noção geral é que todos estão juntos, investindo na rede, realizando as atividades com prazer, ressignificando suas vidas e interferindo no mundo com criatividade.



As “realizações FdE” se destacam pela capacidade de mobilização. É o Fora do Eixo que está presente nos recentes movimentos político-culturais caracterizados como progressistas, como a Marcha das Vadias, Marcha da Maconha, Churrasco da Gente Diferenciada, Amor Sim Russomano Não, Existe Amor em SP, Movimento Passe Livre, entre outros. O nome do Fora do Eixo também aparece na maioria das festas da região da Augusta, em São Paulo, além de realizar parcerias com empresas, vendendo a sua capacidade de unir platéias para festas como Voodoohop, Santo Forte e Matilha Cultural. Segundo o Portal Fora do Eixo, com 10 anos de atuação, a articulada “marca-projeto-coletivo-empresa” conecta cerca de 72 pontos espalhados pelo Brasil. No último balanço divulgado pelo FdE, em 2011 foram realizados 1.133 eventos. No mesmo ano, os investimentos FdE fizeram com que 13.500 artistas circulassem em suas plataformas. 



Na polêmica entrevista ao programa Roda Viva, Pablo Capilé explicou também que o FdE capta recursos públicos e privados, sendo que de 3 a 7% aproximadamente dos seus fundos provém de editais públicos. Na verdade, Pablo ilustrou o FdE enquanto uma “disputa narrativa” que envolve esforço conjunto de uma “cooperativa de trabalho” que no final apresenta o seguinte resultado: “a cada um real captado, esse movimento é capaz de transformar em 100”. Diante dos últimos questionamentos envolvendo o Circuito, o FdE produziu e divulgou em seu site um Portal da Transparência (2013), com o que tenta esclarecer seus números. O Portal informa que, em 2011, foram inscritos 153 projetos para financiamento público e privado, dos quais foram levantados 8 milhões de reais de recursos privados e 5 milhões de recursos públicos. 



Finalmente, diante da importância das mídias, notadamente da internet, como sistemas sociotécnicos de integração social, o FdE defende bandeiras ligadas à Cultura Digital e software livre, influenciando direta e indiretamente a indicação e a pauta do gerenciamento cultural na cidade de São Paulo e no Ministério da Cultura, pelo que há uma identificação das ações dessas instituições políticas com a vanguarda jovem do open business paulista, materializando a lógica do velho, do novo e do novíssimo na gestão cultural, bem como a presença de integrantes ou ex-integrantes FdE em posições de gestores ou conselheiros da cultura. Não se sabe ao certo o peso do FdE nesse âmbito, o que algumas reportagens tratam como lobby político, mas destaca-se a criação pelo Coletivo do Partido da Cultura e seu ativismo político na área. 



Nos últimos dias as críticas ao FdE não tem sido poucas e nem de importância relativa. Assistimos a denúncias gravíssimas que vão desde acusações de machismo e sexismo na Rede, passando pela violência e intimidação, até a apropriação de bens pessoais de integrantes. A estes tipos de declarações não temos condições empíricas e jurídicas de comentar, pelo que respeitamos o princípio da presunção da inocência ao mesmo tempo em que deixamos claro que essas acusações existem e incitamos a investigação minuciosa e concreta de casa caso específico. Chamamos a atenção também aos extremismos ou reducionismos da crítica, no sentido de que o FdE não deve ser visto apenas ou sobretudo como uma fábrica de imagens. O Coletivo consegue sim realizar eventos e coordenar turnês, embora talvez com bem menos sucesso do que o propagado. O que precisa ser entendido é até que ponto suas práticas são inovações e a quem elas têm servido. Além disso, o FdE é um coletivo heterogêneo e as críticas não representem todo o FdE, mas talvez e provavelmente a imagem desgastada do Capilé a 7 anos no comando do Grupo. Finalmente, é preciso destacar também o oportunismo da grande mídia na ofensiva ao FdE, que tem outros sentidos e razões, notadamente quanto a importância da Mídia NINJA (assunto que esperamos abordar em outra ocasião).



Apesar de tudo isso, com a entrevista ao Roda Viva, o apanhado das críticas aos FdE indicam, de forma geral, que ao mesmo tempo em que o coletivo incorpora o discurso igualitário, anti-hierárquico e que prescinde do intermediário nas relações do mercado, se fundamenta naquilo que Safatle chamou de “cinismo da crítica”. A este propósito nos atemos a três questões. Primeiro, em trabalho de pós-doutorado em Estudos Culturais no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) da UFRJ, Fonseca (2013) explica que, apesar da pretensa horizontalidade propagada na organização do FdE, são nítidas as diferenças de papéis entre aqueles interessados prioritariamente na produção e as lideranças que se destacam pela formulação das diretrizes. Apesar de não existir propriamente uma relação de patrão e de empregado, há uma dinâmica de consentimentos e hierarquias orgânicas baseadas nos vínculos de confiança e de apoio mútuo, além do senso de comprometimento com a causa e o prazer genuíno de participar da rede. O “sistema hierárquico orgânico” dessa organização é fundamentado por aquilo que eles chamam de “lastro” – um termo empregado para dizer que os membros que mais se entregam ao grupo naturalmente têm mais respaldo do que aqueles que acabaram de chegar ou que participam menos. Não houve até o momento um relato sequer que dissesse o contrário a respeito da hierarquia interna. Curiosamente, são estas relações laborais que uma das ideólogas de plantão do FdE, Ivana Bentes, classifica como “um dos mais potentes laboratórios de experimentações das novas dinâmicas do trabalho e das subjetividades. Que tem como base: autonomia, liberdade e um novo ‘comunismo’ (construção de Comum, comunidade, caixas coletivos, moedas coletivas, redes integradas, economia viva e mercados solidários).” 



O segundo ponto que queremos destacar corrobora para a pergunta se não existiria no FdE relações de trabalho já constituídas. Depoimentos recentes têm demonstrando que a multiplicação dos pães Fora do Eixo só tem se tornado possível porque existe, além das formas clássicas de financiamento público e privado, uma enorme quantidade de trabalho não pago envolvida. Em outros termos, os significantes sem significados das tags ditas nas frases de Capilé não querem indicar outra coisa senão o esforço combinado de trabalhos braçais, cognitivos ou simbólicos não-pagos, ou sub-remunerados, pelo circuito. É também nesse sentido que se tornaram conhecidas as críticas dos artistas em relação ao não pagamento de cachês por parte do FdE, ou o seu pagamento na forma de CuboCard, ao mesmo tempo em que há dinheiro público no financiamento de suas atividades. Nesta temática específica poderíamos perguntar se o artista seria um trabalhador como outro qualquer. Ou, em outros termos, qual a especificidade desse modo de produção e de reprodução no capitalismo contemporâneo? Quais são as características que outorgam especificidade à apropriação da cultura hoje?



No âmbito da música, o grande mote ainda hoje do Fora do Eixo, temos a importância histórica do intermediário monopolizado. Primeiro na produção, na época em que somente os grandes estúdios podiam contar com a tecnologia para gravação. Depois, na distribuição, quando as gravadoras apenas celebravam contrato de circulação do material, tendo em vista as dificuldades de trânsito no enorme território brasileiro – momento que surgiu as produções independentes, mais ou menos na década de 1980 no Brasil. Mas em que sentido o FdE não pode ser entendido como novo intermediário no mercado cultural? Em que sentido o FdE é diferente de uma produtora tradicional de música? Podemos pensar, então, que o FdE atua na mesma lógica de facilitar a circulação, mas também a promoção e divulgação dos bens e serviços culturais, atuando sobre o mesmo ideal de mais-valor, sendo que talvez ainda mais precarizada para o músico, que não pode pagar o seu aluguel com o CuboCard. O que significa “independência” na produção cultural e em que sentido seria importante construir um conceito minimamente influente nos critérios de recebimento de recursos públicos – tal como prescindir do intermediário? 



Certo é que a ritualização do pré e do pós provoca o encantamento pelo que mudou ao mesmo tempo em que nubla a compreensão do que permanece. Nesse sentido, a felicidade pela tecnologia frequentemente esquece que a técnica precisa estar inserida nas relações sociais, econômicas, simbólicas e políticas que a informam. Mesmo considerando o crescimento da internet no país, o GPOPAI (2010) indica que televisão e rádio são os únicos meios de comunicação efetivamente universalizados, presentes em 97% e 86% dos domicílios no Brasil, respectivamente. A internet ainda tem alcance limitado. Apenas 25% dos domicílios brasileiros têm computador, 18% dos domicílios possuem acesso à internet, 58% dos domicílios com acesso à internet possuem banda larga, mas 66% desses possuem velocidade de até 1 mbps. Desse total de acesso à internet, a maioria encontra-se na região sudeste do Brasil.



O que esses dados querem indicar é que embora as novas tecnologias engendrem novas sociabilidades, alterando sim a correlação de forças no processo de comunicação, o usufruto de dados, sons e imagens nesses ambientes dependem de outros fatores. Quer dizer, tão importante quanto considerar a complexidade da era digital é sustentar a existência de políticas públicas capazes de evitar monopólios e descentralizar a produção e a distribuição dos bens culturais nos meios tradicionais de comunicação (rádio e TV), enquanto espaços que garantem a pluralidade real, e não só formal, das vozes e que têm projeção para ir além dos pequenos ciclos, alterando, de vez, a relação de intermediação no mercado cultural. Quer dizer, se o artista for um produtor, então que ele seja dono dos seus modos de produção.



Nos últimos meses, vem crescendo a mobilização de dezenas de entidades da sociedade civil em torno de duas iniciativas convergentes na luta pela democratização da comunicação no Brasil: a campanha “Para expressar a liberdade”, que defende uma nova e abrangente lei geral de comunicações; e o Projeto de Lei de Iniciativa Popular das Comunicações, cuja finalidade é regulamentar os artigos da Constituição de 1988 que impedem monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação de massa e estabelecem princípios para a radiodifusão sob concessão pública (rádio e televisão). Nesse sentido, convergimos com estudiosos como Dênis de Moraes que enfatizam a necessidade de se pôr fim à concentração monopólica da mídia, porque a concentração favorece as ambições mercantis de grupos midiáticos, afeta a diversidade informativa e cultural e representa a negação do pluralismo.
Finalmente, a lógica do intermediário também é potencializada na escolha da política cultural neoliberal por meio de leis de incentivo fiscal ao patrocínio privado, em que se pode afirmar, em certo sentido, que o Estado transfere de forma principal para as empresas a gestão cultural do país. Diante disso, o que se nota, entre outros fatores, é o crescimento do “mercado de projetos”, com a proeminência de gestores especializados em editais públicos e a centralização de recursos. O resultado dessa dinâmica indica que o financiamento público somente tem se concretizado para aqueles artistas que possuem certa profissionalização no setor da produção cultural (realidade ainda distante na região Norte-Nordeste do país), além de poder simbólico e político expressivo. Por isso poder-se-ia perguntar também sobre a provável troca de elites. Nesse caso, de uma burocracia para uma tecnocracia, que antes de ser uma forma racional de organizar uma administração, é uma forma de poder.



Por isso, em nota que rebate as críticas pelas quais passa o FdE, Capilé provavelmente tenha razão quando afirma que o circuito atua como alternativa à deficiência estrutural nos sistemas de distribuição da cultura brasileira, que não permite a circulação e a fruição dos processos e produtos de forma igualitária. Se o exemplo do FdE é emblemático enquanto alegoria do funcionamento do capitalismo em relação à imagem, tecnologia, sociabilidade e apropriação de rendimentos, é também exemplo da incapacidade das políticas públicas da comunicação e da cultura de atuar na nova lógica dos intermediários, indicando, no limite, a necessidade de articulações decisivas entre trabalho, regulamentação da comunicação e política públicas culturais, enquanto eixo constitutivo desses processos formadores das experiências contemporâneas. 



Referências



FONSECA, A. Vidas fora do eixo. Disponível em <> Acesso em 27 de Agosto de 2008.
FORA DO EIXO. Portal da transparência. Site <> Acesso em 21 de Agosto de 2013.
GPOPAI. Uma análise qualitativa do mercado de música no Brasil: para além das falsas dicotomias. Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. São Paulo, 2010.
YÚDICE, G. A conveniência da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.


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