No Brasil, o termo capitalismo selvagem não é uma metáfora, afirma Luiz Ruffato
Em discurso na Feira do Livro de Frankfurt, escritor fez críticas às
desigualdades sociais do país e falou sobre o poder transformador da
literatura
11/10/2013
da Redação
"O
que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um
lugar onde o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma
metáfora?”. Com esta pergunta, o escritor Luiz Ruffato, iniciou seu
discurso na abertura da Feira do Livro de Frankfurt, na terça-feira (8).
O escritor fez duras críticas às desigualdades sociais do Brasil e à
violência contra índios, negros, mulheres e homossexuais.
Para
o escritor, a diminuição da população indígena ao longo destes anos
mostra que o Brasil nasceu sobre a égide do genocídio. Hoje, no país, há
apenas cerca de 900 mil indígenas que ainda vivem sob condições
precárias e em luta constante pela demarcação de suas terras. Em 1500,
eles eram mais de 4 milhões de indivíduos.
Na
questão racial, Ruffato falou sobre os resquícios da escravidão mais de
um século depois de sua abolição. Ele lembrou que em 1888 não houve
qualquer esforço do Estado em promover políticas que dessem aos negros
condições mínimas de se inserir na sociedade. “Assim, até hoje, 125 anos
depois, a grande maioria dos afrodescendentes continua confinada à base
da pirâmide social: raramente são vistos entre médicos, dentistas,
advogados, engenheiros, executivos, jornalistas, artistas plásticos,
cineastas, escritores”, disse.
Entre os poucos
pontos positivos relatados, a questão da conquista da democracia teve
destaque. “São 28 anos ininterruptos, pouco, é verdade, mas trata-se do
período mais extenso de vigência do estado de direito em toda a história
do Brasil”, disse o escritor lembrando que várias conquistas sociais
foram conquistadas após o fim da ditadura militar.
Diante
de tantas precariedades que culminam no acúmulo de ódio um para com o
outro, Ruffato, mesmo reconhecendo ser um utópico, disse acreditar que a
literatura pode ser uma saída para a sociedade. “Sucumbimos à solidão e
ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos. Para me contrapor a isso
escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo.
Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso
que o destino último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o
de alcançar a felicidade na Terra. Aqui e agora", concluiu.
Leia a íntegra do discurso do escritor Luiz Ruffato na abertura da Feira do Livro de Frankfurt:
"O
que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um
lugar onde o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma
metáfora? Para mim, escrever é compromisso. Não há como renunciar ao
fato de habitar os limiares do século 21, de escrever em português, de
viver em um território chamado Brasil. Fala-se em globalização, mas as
fronteiras caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas.
Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à tentativa
autoritária de aplainar as diferenças.
O maior
dilema do ser humano em todos os tempos tem sido exatamente esse, o de
lidar com a dicotomia eu-outro. Porque, embora a afirmação de nossa
subjetividade se verifique através do reconhecimento do outro --é a
alteridade que nos confere o sentido de existir--, o outro é também
aquele que pode nos aniquilar... E se a Humanidade se edifica neste
movimento pendular entre agregação e dispersão, a história do Brasil vem
sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do
outro, por meio da violência e da indiferença.
Nascemos
sob a égide do genocídio. Dos quatro milhões de índios que existiam em
1500, restam hoje cerca de 900 mil, parte deles vivendo em condições
miseráveis em assentamentos de beira de estrada ou até mesmo em favelas
nas grandes cidades. Avoca-se sempre, como signo da tolerância nacional,
a chamada democracia racial brasileira, mito corrente de que não teria
havido dizimação, mas assimilação dos autóctones. Esse eufemismo, no
entanto, serve apenas para acobertar um fato indiscutível: se nossa
população é mestiça, deve-se ao cruzamento de homens europeus com
mulheres indígenas ou africanas - ou seja, a assimilação se deu através
do estupro das nativas e negras pelos colonizadores brancos.
Até
meados do século 19, cinco milhões de africanos negros foram
aprisionados e levados à força para o Brasil. Quando, em 1888, foi
abolida a escravatura, não houve qualquer esforço no sentido de
possibilitar condições dignas aos ex-cativos. Assim, até hoje, 125 anos
depois, a grande maioria dos afrodescendentes continua confinada à base
da pirâmide social: raramente são vistos entre médicos, dentistas,
advogados, engenheiros, executivos, jornalistas, artistas plásticos,
cineastas, escritores.
Invisível, acuada por
baixos salários e destituída das prerrogativas primárias da cidadania
--moradia, transporte, lazer, educação e saúde de qualidade--, a maior
parte dos brasileiros sempre foi peça descartável na engrenagem que
movimenta a economia: 75% de toda a riqueza encontra-se nas mãos de 10%
da população branca e apenas 46 mil pessoas possuem metade das terras do
país. Historicamente habituados a termos apenas deveres, nunca
direitos, sucumbimos numa estranha sensação de não pertencimento: no
Brasil, o que é de todos não é de ninguém...
Convivendo
com uma terrível sensação de impunidade, já que a cadeia só funciona
para quem não tem dinheiro para pagar bons advogados, a intolerância
emerge. Aquele que, no desamparo de uma vida à margem, não tem o
estatuto de ser humano reconhecido pela sociedade, reage com relação ao
outro recusando-lhe também esse estatuto. Como não enxergamos o outro, o
outro não nos vê. E assim acumulamos nossos ódios --o semelhante
torna-se o inimigo.
A taxa de homicídios no
Brasil chega a 20 assassinatos por grupo de 100 mil habitantes, o que
equivale a 37 mil pessoas mortas por ano, número três vezes maior que a
média mundial. E quem mais está exposto à violência não são os ricos que
se enclausuram atrás dos muros altos de condomínios fechados,
protegidos por cercas elétricas, segurança privada e vigilância
eletrônica, mas os pobres confinados em favelas e bairros de periferia, à
mercê de narcotraficantes e policiais corruptos.
Machistas,
ocupamos o vergonhoso sétimo lugar entre os países com maior número de
vítimas de violência doméstica, com um saldo, na última década, de 45
mil mulheres assassinadas. Covardes, em 2012 acumulamos mais de 120 mil
denúncias de maus-tratos contra crianças e adolescentes. E é sabido que,
tanto em relação às mulheres quanto às crianças e adolescentes, esses
números são sempre subestimados.
Hipócritas, os
casos de intolerância em relação à orientação sexual revelam,
exemplarmente, a nossa natureza. O local onde se realiza a mais
importante parada gay do mundo, que chega a reunir mais de três milhões
de participantes, a Avenida Paulista, em São Paulo, é o mesmo que
concentra o maior número de ataques homofóbicos da cidade.
E
aqui tocamos num ponto nevrálgico: não é coincidência que a população
carcerária brasileira, cerca de 550 mil pessoas, seja formada
primordialmente por jovens entre 18 e 34 anos, pobres, negros e com
baixa instrução.
O sistema de ensino vem sendo ao
longo da história um dos mecanismos mais eficazes de manutenção do
abismo entre ricos e pobres. Ocupamos os últimos lugares no ranking que
avalia o desempenho escolar no mundo: cerca de 9% da população permanece
analfabeta e 20% são classificados como analfabetos funcionais --ou
seja, um em cada três brasileiros adultos não tem capacidade de ler e
interpretar os textos mais simples.
A perpetuação
da ignorância como instrumento de dominação, marca registrada da elite
que permaneceu no poder até muito recentemente, pode ser mensurada. O
mercado editorial brasileiro movimenta anualmente em torno de 2,2
bilhões de dólares, sendo que 35% deste total representam compras pelo
governo federal, destinadas a alimentar bibliotecas públicas e
escolares. No entanto, continuamos lendo pouco, em média menos de quatro
títulos por ano, e no país inteiro há somente uma livraria para cada 63
mil habitantes, ainda assim concentradas nas capitais e grandes cidades
do interior.
Mas, temos avançado.
A
maior vitória da minha geração foi o restabelecimento da democracia -
são 28 anos ininterruptos, pouco, é verdade, mas trata-se do período
mais extenso de vigência do estado de direito em toda a história do
Brasil. Com a estabilidade política e econômica, vimos acumulando
conquistas sociais desde o fim da ditadura militar, sendo a mais
significativa, sem dúvida alguma, a expressiva diminuição da miséria: um
número impressionante de 42 milhões de pessoas ascenderam socialmente
na última década. Inegável, ainda, a importância da implementação de
mecanismos de transferência de renda, como as bolsas-família, ou de
inclusão, como as cotas raciais para ingresso nas universidades
públicas.
Infelizmente, no entanto, apesar de
todos os esforços, é imenso o peso do nosso legado de 500 anos de
desmandos. Continuamos a ser um país onde moradia, educação, saúde,
cultura e lazer não são direitos de todos, mas privilégios de alguns. Em
que a faculdade de ir e vir, a qualquer tempo e a qualquer hora, não
pode ser exercida, porque faltam condições de segurança pública. Em que
mesmo a necessidade de trabalhar, em troca de um salário mínimo
equivalente a cerca de 300 dólares mensais, esbarra em dificuldades
elementares como a falta de transporte adequado. Em que o respeito ao
meio ambiente inexiste. Em que nos acostumamos todos a burlar as leis.
Nós somos um país paradoxal.
Ora
o Brasil surge como uma região exótica, de praias paradisíacas,
florestas edênicas, carnaval, capoeira e futebol; ora como um lugar
execrável, de violência urbana, exploração da prostituição infantil,
desrespeito aos direitos humanos e desdém pela natureza. Ora festejado
como um dos países mais bem preparados para ocupar o lugar de
protagonista no mundo --amplos recursos naturais, agricultura, pecuária e
indústria diversificadas, enorme potencial de crescimento de produção e
consumo; ora destinado a um eterno papel acessório, de fornecedor de
matéria-prima e produtos fabricados com mão de obra barata, por falta de
competência para gerir a própria riqueza.
Agora, somos a sétima economia do planeta. E permanecemos em terceiro lugar entre os mais desiguais entre todos...
Volto,
então, à pergunta inicial: o que significa habitar essa região situada
na periferia do mundo, escrever em português para leitores quase
inexistentes, lutar, enfim, todos os dias, para construir, em meio a
adversidades, um sentido para a vida?
Eu
acredito, talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura.
Filho de uma lavadeira analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto, eu
mesmo pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de armarinho,
operário têxtil, torneiro-mecânico, gerente de lanchonete, tive meu
destino modificado pelo contato, embora fortuito, com os livros. E se a
leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a
sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade.
Em nossos tempos, de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao
individualismo, aquele que nos é estranho, e que por isso deveria nos
despertar o fascínio pelo reconhecimento mútuo, mais que nunca tem sido
visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro --seja ele o
imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual-- como
tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa
própria condição de existir. Sucumbimos à solidão e ao egoísmo e nos
negamos a nós mesmos. Para me contrapor a isso escrevo: quero afetar o
leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de uma utopia,
eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso que o destino último de
todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a felicidade
na Terra. Aqui e agora."
Foto: Reprodução
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