Sou a despejada que fala (1/3)
29 julho 2013
Libération
Paris
29 julho 2013
Libération
Paris
Pessoas que foram despejadas das suas casas acampam diante de um banco do grupo Bankia, em Madrid, a 25 de outubro de 2012 AFP
Até 2008, Cristina Fallaras viveu uma vida estável,
trabalhando como escritora e vice-diretora de um jornal. Então, grávida
de oito meses, foi demitida e deslizou para o estatuto de mãe
desempregada e sem domicílio fixo. Um percurso tragicamente banal, na
Espanha em crise. Eis o seu testemunho.
Chamo-me Cristina Fallaras e tornei-me a despejada mais
mediática de Espanha. Preferia falar sobre outra coisa, mas entendo que a
época e o país impõem este tipo de temas. Na terça-feira, 13 de
novembro, pelas 19h40, pouco antes do início da segunda greve geral do
ano em Espanha, um indivíduo do 20ª juízo de Barcelona tocou à porta do
meu apartamento, na praça da Universidade. Ouviam-se já os helicópteros
da polícia e os petardos dos primeiros piquetes de greve, que sempre dão
um ar ligeiramente festivo a uma greve geral, quando se está em casa.
No preciso momento em que o meu filho Lucas abriu a porta e disse:
“Mamã, é um senhor”, deixei, ainda não sei por quanto tempo, de ser
escritora, jornalista e editora, para me tornar uma despejada que pode
testemunhar por escrito e argumentar diante de uma câmara de televisão.
Um testemunho direto, na primeira pessoa, é muito cómodo e tem imenso
impacto. A Santíssima Trindade do jornalismo: objeto, sujeito e análise,
três em um.
Agora, leitor, imagine um terreno do tamanho de um país, uma área do tipo da pampa. Suspenda tudo e ponha-se a imaginar.
Está? Bem, então olhe para a enorme fenda, implacável e brutal, como
aberta pela unha de um deus a rasgar a terra, que corta a superfície em
dois. Do buraco emana um sopro gelado, como o de flor de parca [o
relento da morte]. Veja igualmente como uma dessas duas partes
(decretemos, por razões sentimentais, que é a da esquerda) cai no
abismo, até se imobilizar, suspensa no escuro, arrastando todos os habitantes na queda, estupefactos, confusos. E roídos de culpa.
A outra parte desta terra que estamos a imaginar, e a que chamaremos Espanha, manteve-se no alto, temendo o risco de vir a ter a mesma sorte,
com a certeza de que isso vai mesmo suceder, mas de uma forma menos
grave: novos cortes nas áreas da saúde, da assistência social, dos
direitos recentemente adquiridos pelas mulheres, supressão de alguns
pagamentos, cortes salariais... O seu descontentamento é compreensível.
Mas, em menos tempo do que levou ao país declarar que a democracia era
tão indestrutível como airosa, os habitantes do bloco colapsado foram
privados de absolutamente tudo. E entregariam tudo, de bom grado, saúde e
futuro, para recolherem as sobras do bem-estar dos de cima.
A catástrofe
Escrevo daqui de baixo, da metade que se afundou. Já vivo há tanto
tempo no escuro que os meus olhos se acostumaram à escuridão e distingo
claramente os recém-chegados. Entre 2009 e 2010, dois milhões de
trabalhadores foram parar ao desemprego. Dos seis milhões de
desempregados, três milhões já não recebem nada, e os outros três
milhões de cidadãos irão pouco a pouco perder um subsídio que, em
Espanha, pode durar um máximo de dois anos. E desde 2011, centenas de milhares de despedidos
vieram juntar-se a nós. Como há muito que em Espanha não se cria
emprego, vamos vendo-os cair e abrimos espaço para se acomodarem.
Sabemos todos que é inevitável.
Daqui, mal se distinguem os que ficaram lá em cima; é preciso um
esforço de memória. Sabemos como vivem, o que comem, o que compram, como
se vestem e se movem, porque ainda há pouco lá estávamos. Mas a miséria
impõe os seus esquecimentos e acho que isso nos salva um pouco. Os de
lá de cima, em compensação, não nos veem. Não podem. Restam os
jornalistas, informadores que tentam, em vão, falar sobre a pobreza, os
despejos, as razões para este ou aquele suicídio. Mas se nunca nos foi
cortada a eletricidade, a água, ou ambas, a ideia de miséria é sempre
romanceada. É por isso que posso hoje ser útil. É uma despejada que
fala.
Claro que estou surpreendida por estar aqui em baixo. Um despejo é um
processo longo, que começa com um despedimento, mas que nos apanha de
surpresa, como se fôssemos apanhados de calças nas mãos. Nus, no meio da
grande avenida que percorríamos de táxi de madrugada, mortos de riso.
Todos os dias, por volta das seis horas, o rádio da minha mesa de
cabeceira ilumina-se, e uma frase prega-me um muro que me atira para o
chuveiro: ganhar a vida. De facto, a vida não é nossa, é preciso
ganhá-la. E quando não se ganha a vida, o que acontece? Perde-la, não? E
a cada dia sou apanhada outra vez de surpresa, completamente nua.
Continua.
Este artigo foi publicado pela primeira vez em espanhol a 12 de dezembro de 2012, na revista argentina online Anfibia
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