Ex-detento de Guantánamo ainda tenta retomar vida
Murat Kurnaz passou boa parte da juventude na prisão
em Cuba, onde foi submetido a tortura e isolamento. Apesar de inocente, o
estigma de ex-detento o persegue
por Deutsche Welle
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publicado
26/07/2013
O cabelo curto, a barba rala e a camisa apertada, que marca o bíceps
provavelmente trabalhado em horas de treino na academia, o tornam quase
irreconhecível. O homem que entra andando numa casa de chá turca no
norte da Alemanha não lembra em nada aquele que, há sete anos, deixou a
prisão de Guantánamo com vastas cabeleira e barba ruivas.
"Simplesmente decidi cortar. Por um monte de razões. Nada demais", diz.
Murat Kurnaz tergiversa, mas a aparência de certa forma o marcou.
Livrar-se do estigma de ex-detento de Guantánamo pode durar décadas. E
barba e cabelos longos geram desconfiança, especialmente quando se
carrega a pecha de "talibã de Bremen", dada por tabloide alemães.
"Eu não estive em um presídio comum. Estive em Guantánamo", ressalta.
Sem traumas
Kurnaz se desculpa por chegar meia hora atrasado e se mostra
inicialmente na defensiva. Mas relaxa depois da primeira xícara de chá e
passa a conversar com naturalidade no inglês coloquial que aprendeu em
seus cinco anos no presídio americano.
Ele demonstra a serenidade de um homem com bem mais que seus 31 anos.
Falar com a imprensa não é novidade – diz que já "deu milhares de
entrevistas". Mas responde pacientemente a cada uma das questões, mesmo
às que já ouviu um sem-número de vezes.
Kurnaz é sucinto, mas não evasivo. Passou por tortura, humilhação e
isolamento, mas garante que não tem qualquer problema psicológico. Ele
parece bem resolvido com o passado, mas não esconde certa insatisfação
com o presente.
"Eu trabalho em empregos temporários, não tenho outra escolha", lamenta.
No lugar errado na hora errada
Kurnaz estava no lugar errado na hora errada. Aos 19 anos, decidiu
fazer uma peregrinação ao Paquistão para aprofundar os conhecimentos da
sua fé, o islamismo. Era outubro de 2001, e os Estados Unidos tentavam
dar uma resposta ao maior atentado terrorista da história.
Sem qualquer acusação, Kurnaz foi capturado por caçadores de
recompensas, que o entregaram aos EUA por 3 mil dólares. Foi então
levado a uma prisão americana em Kandahar, no Afeganistão, onde foi
submetido a choques elétricos e afogamento simulado.
O então adolescente ficou lá até 2002, quando foi transferido para
Guantánamo. No presídio destinado a suspeitos de terrorismo, foi
espancado, algemado e confinado numa solitária sob condições extremas.
Kurnaz nasceu e cresceu em Bremen, mas por uma peculiaridade das leis
alemãs é considerado cidadão da Turquia, terra de seus pais.
Aparentemente uma burocracia, a situação acabou lhe custando preciosos
anos de sua juventude na prisão.
Os americanos não tinham evidências contra ele e estavam preparados
para libertá-lo ainda em 2002, mas nem o governo alemão nem o governo
turco quiseram assumir a responsabilidade pelo preso. Kurnaz ficou mais
quatro anos na prisão.
Ele só conseguiu deixar o presídio em Cuba após a eleição de Angela
Merkel como chanceler federal. Merkel negociou pessoalmente sua
libertação com o então presidente George W. Bush.
Nova vida
Mesmo sete anos depois, Kurnaz ainda tenta retomar a vida. A primeira
mulher se divorciou dele durante o período de encarceramento. Ele se
casou novamente e hoje é um dedicado pai de duas meninas.
Desde sua libertação, em 2006, tem feito trabalhos esporádicos,
ensina artes marciais e trabalha com adolescentes com problemas. Nos
últimos meses também tem dedicado parte do seu tempo para promover o
filme Fünf Jahre Leben (Cinco anos de vida, em tradução livre do alemão), baseado em sua autobiografia sobre os anos que passou em Guantánamo.
"Ele voltou para uma vida regular, normal, e ao mesmo tempo nunca
esqueceu o que aconteceu em Guantánamo", diz Bernhard Docke, seu
advogado. "Ele se tornou uma espécie de sobrevivente com culpa, que se
sente responsável por aqueles que deixou para trás."
Além de entrevistas e promoções de marketing, Kurnaz faz discursos de
engajamento em nome de grupos de direitos humanos na Alemanha e no
exterior. Ele diz que não esquece os antigos companheiros de prisão e
tenta apoiar todos os tipos de organizações de direitos humanos: "Sei o
que eles fizeram por mim quando estive em Guantánamo."
Kurnaz estava na mesma situação da maioria dos 166 presidiários que
ainda permanecem em Guantánamo. Mais da metade já poderiam ser soltos,
mas ainda aguardam em um limbo até que seus países de origem ofereçam as
garantias de segurança exigidas pelos Estados Unidos para deixá-los
ir.
Quando presidiário, também participou de uma greve de fome, como a
feita atualmente por detentos em protesto contra violações de direitos
humanos em Guantánamo. A greve entra em seu quinto mês e já mostra
sinais de enfraquecimento, embora a alimentação forçada continue durante
o mês sagrado o ramadã, quando muçulmanos fazem jejum do nascer ao pôr
do sol.
Fechamento da prisão
Em maio passado, Barack Obama foi eleito para um novo mandato à
frente da Casa Branca e renovou a promessa de desativar Guantánamo –
foi quando a greve de fome atingiu um ponto crítico.
Para Kurnaz, apenas uma pequena parte dos presos em Guantánamo são
terroristas realmente perigosos e, por isso, deveriam ser transferidos
para uma prisão de segurança máxima nos EUA. Os demais, afirma, poderiam
ir para casa ou para um terceiro país.
"Se a Europa pegasse alguns deles, isso faria as coisas mais fáceis",
diz Kurnaz, que não acredita em uma verdadeira vontade política para
fechar a prisão. "Obama disse que quer fechar Guantánamo antes das
eleições. Agora, cinco anos depois, ele ainda não fechou o presídio. Se
ele quisesse, já poderia ter feito isso."
Autoria: Diana Fong (msb)
Edição: Renate Krieger / Rafael Plaisant
Edição: Renate Krieger / Rafael Plaisant
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