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quarta-feira, 26 de junho de 2013

Carlos Vainer analisa as grandes manifestações

A seguir, compartilho a primeira parte de uma análise do professor Carlos Vainer (IPPUR-UFRJ) sobre os recentes protestos no Brasil.
Para ler o texto completo, clique aqui.

MEGAEVENTOS, MEGANEGÓCIOS, MEGAPROTESTOS

Uma Contribuição ao Debate sobre as Grandes Manifestações e as Perspectivas Políticas

Carlos Vainer – 24/06/2013

I. Uma Nova Conjuntura Política
1.1. Desnecessário dizer da importância das lutas e manifestações dos últimos dias. Elas expressam uma extraordinária vontade não apenas de mudar as políticas de transporte, educação, saúde, etc, como pretendem alguns analistas que buscam reduzir o significado dos acontecimentos dos últimos dias, mas de transformar de modo radical a sociedade brasileira e as formas de exercício do poder político.
1.2, Aqueles que acompanham ou estão diretamente envolvidos nas lutas quotidianas e no esforço de organizar essas lutas, sabem que, há muito tempo, multiplicam-se, no tecido social, diferenciadas, dispersas e fragmentadas manifestações de protesto, insatisfação e resistência. Por quantas vezes nos vimos, nas reuniões e conversas, a analisar ou lamentar a fragmentação, assim como a tentar encontrar os caminhos – políticos, organizacionais – que poderiam propiciar convergências, unidades, frentes e articulações que abrangessem o conjunto de conflitos setoriais e localizados? Há quanto tempo nos vemos às voltas com as dificuldades de fazer convergir lutas micro-localizadas, experiências de luta com diferentes focos e bases sociais?
1.3. A arrogância e brutalidade dos detentores do poder realizaram, em poucos dias, aquilo que muitos militantes, organizações populares e setores do movimento vinham tentando há algum tempo: unificar descontentamentos, lutas, reivindicações, anseios. Não é a primeira vez que isso acontece na história. Mas o que ocorreu foi além do que se poderia imaginar, em virtude da prepotência das coalizões políticas governantes, assim como do cartel de interesses que associou, em torno dos megaeventos, a mídia, os interesses de grandes corporações nacionais, especuladores e o cartel empresarial internacional articulado pela FIFA e COI. Sua cegueira, autossuficiência e violência trouxeram para a esfera da ação coletiva centenas de milhares, milhões de jovens até ontem distantes da experiência política, jovens e outros não tão jovens, que embora descontentes, até ontem achavam que nada se podia fazer… a não ser aceitar a reprodução do status quo.
1.4. Nos primeiros momentos, sociólogos e cientistas políticos conservadores chamados pela imprensa a “explicar os acontecimentos”, assim como cronistas políticos de plantão na grande mídia, mostraram-se céticos e proferiram empolados seu veredicto inapelável: “rebeldes sem causa”, “arruaceiros”. Não estavam entendendo nada. Como também a Presidente Dilma Roussef e o Sr. Blatter não estavam entendendo nada ao serem vaiados na abertura da Copa das Confederações, como deixavam claros a expressão de perplexidade da primeira e o sorriso amarelo do segundo. Imaginavam ser saudados por terem construído, ao custo de mais de R$ 1 bi, um estádio para 70 mil pessoas, em cidade no qual o público médio das partidas de futebol é de 2 mil? Estavam esperando os agradecimentos do distinto público na inauguração do Estádio do qual tentam apagar o nome Mané Garrincha e emplacar o novo nome de Estádio Nacional – triste e infeliz evocação do 11 de setembro chileno, que a pancadaria deflagrada pela polícia do DF, no entorno do estádio, reafirmava?
1.5. Esta perplexidade, esta incompreensão da origem de tantos e tão diversificados protestos só têm uma explicação: o autismo social e político do poder. Em outras palavras, os dominantes não apenas difundem sua ideologia, como acreditam nela. A Rede Globo não apenas projeta um mundo fictício através de suas mensagens como, ela também, é envolvida pela mistificação que produz. Por incrível que pareça, a Rede Globo acredita na Rede Globo. Os marqueteiros acreditam em sua marquetagem política e social. E não conseguem conectar-se e compreender o mundo que escapa a suas construções imagéticas e suas mitologias.
1.6. O fato é que foram rapidamente ultrapassados. Tiveram que reconhecer que estavam diante de uma ampla, poderosa, profunda e abrangente manifestação política de protesto contra o status quo. Fora dos partidos, incapazes de canalizar e expressar a vitalidade e a diversidade dos protestos e reivindicações, nem por isso trata-se de um processo “sem política” ou “sem foco”. O foco estava lá, só não viu quem olha para a árvore e não vê a floresta: transporte, saúde, educação, corrupção, democracia, desperdício dos recursos públicos, participação política, direitos humanos. Algum partido, nos últimos anos, produziu alguma pauta ou agenda mais precisa e concreta? Sob alguns aspectos, chega a ser surpreendente o altíssimo nível de consciência política expressa, embora de forma pouco organizada, pelos milhões que estão indo às ruas.
1.7. Este movimento não foi casual. Embora não estivesse escrito desde o início dos tempos que ele ocorreria, não ocorreu por acaso. E se a violência repressiva o deflagrou, não o explica. Mao Tse Tung, hoje em dia pouco lido, incluiu na coletânea do Livrinho Vermelho, que foi a bíblia da primeira etapa da Revolução Cultural, um texto de 1930 intitulado “Uma fagulha pode incendiar uma pradaria”. Esta pequena frase nos adverte para o engano daqueles que tentaram, e ainda tentam, reduzir o movimento à luta pela redução das passagens, ou por melhores transportes públicos. Essa é uma reivindicação dentre muitas outras. E se o Movimento Passe Livre teve a iniciativa, não é a fagulha que explica o incêndio, mas as condições em que se encontrava a pradaria. A pradaria, como agora se sabe, estava seca, pronta pra incendiar-se. E o vento soprava de maneira intensa para espalhar o primeiro fogo.
1.8. Para tentar entender este movimento é necessário considerar, de um lado, a multiplicidade de insatisfações e lutas fragmentárias que o antecederam e que constituem, por assim dizer, seu próprio fundamento. De outro lado, há que entender as características de uma conjuntura marcada pela abertura do ciclo de megaeventos esportivos. Se os megaeventos, por si, também não explicam a explosão social e política, por outro lado seria difícil imaginar tal explosão fora de um contexto marcado pela farra do dinheiro público e a entrega de nossas cidades às corporações, empreiteiras e cartéis organizados em torno da FIFA, em primeiro lugar, e do COI.
1.9. Megaeventos, meganegócios, megaprotestos. E aqui merece menção um outro importante elemento: como muitos devem ter percebido em várias cidades, mesmo naquelas em que não haverá jogos, há uma clara consciência acerca do significado, sentido, objetivos e resultados a esperar desses megaeventos. É possível considerar que, de maneira não desprezível, o trabalho realizado nos dois últimos anos pelos Comitês Populares da Copa e das Olimpíadas e pela sua Articulação Nacional (ANCOP) contribuiu de maneira marcante para construir uma consciência coletiva, mais generalizada do que se poderia imaginar, de que os megaeventos constituem um ônus insuportável para nosso povo, desviam recursos de setores prioritários e beneficiam os mesmos poderosos de sempre.
1.10. É indispensável ter esses elementos claramente identificados, inclusive para estabelecer os próximos passos a serem dados pelos diferentes movimentos e organizações populares. Tanto mais que, as grandes manifestações  abriram uma nova conjuntura de luta e reconfiguraram de maneira expressiva a correlação de forças, abrindo novas e grandes possibilidades de avanços e conquistas para os movimentos populares.

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