Carlos Vainer analisa as grandes manifestações
A seguir, compartilho a primeira parte de uma análise do professor
Carlos Vainer (IPPUR-UFRJ) sobre os recentes protestos no Brasil.
Para ler o texto completo, clique aqui.
MEGAEVENTOS, MEGANEGÓCIOS, MEGAPROTESTOS
Uma Contribuição ao Debate sobre as Grandes Manifestações e as Perspectivas Políticas
Carlos Vainer – 24/06/2013
I. Uma Nova Conjuntura Política
1.1. Desnecessário dizer da importância das lutas e manifestações dos
últimos dias. Elas expressam uma extraordinária vontade não apenas de
mudar as políticas de transporte, educação, saúde, etc, como pretendem
alguns analistas que buscam reduzir o significado dos acontecimentos dos
últimos dias, mas de transformar de modo radical a sociedade brasileira
e as formas de exercício do poder político.
1.2, Aqueles que acompanham ou estão diretamente envolvidos nas lutas
quotidianas e no esforço de organizar essas lutas, sabem que, há muito
tempo, multiplicam-se, no tecido social, diferenciadas, dispersas e
fragmentadas manifestações de protesto, insatisfação e resistência. Por
quantas vezes nos vimos, nas reuniões e conversas, a analisar ou
lamentar a fragmentação, assim como a tentar encontrar os caminhos –
políticos, organizacionais – que poderiam propiciar convergências,
unidades, frentes e articulações que abrangessem o conjunto de conflitos
setoriais e localizados? Há quanto tempo nos vemos às voltas com as
dificuldades de fazer convergir lutas micro-localizadas, experiências de
luta com diferentes focos e bases sociais?
1.3. A arrogância e brutalidade dos detentores do poder realizaram,
em poucos dias, aquilo que muitos militantes, organizações populares e
setores do movimento vinham tentando há algum tempo: unificar
descontentamentos, lutas, reivindicações, anseios. Não é a primeira vez
que isso acontece na história. Mas o que ocorreu foi além do que se
poderia imaginar, em virtude da prepotência das coalizões políticas
governantes, assim como do cartel de interesses que associou, em torno
dos megaeventos, a mídia, os interesses de grandes corporações
nacionais, especuladores e o cartel empresarial internacional articulado
pela FIFA e COI. Sua cegueira, autossuficiência e violência trouxeram
para a esfera da ação coletiva centenas de milhares, milhões de jovens
até ontem distantes da experiência política, jovens e outros não tão
jovens, que embora descontentes, até ontem achavam que nada se podia
fazer… a não ser aceitar a reprodução do status quo.
1.4. Nos primeiros momentos, sociólogos e cientistas políticos
conservadores chamados pela imprensa a “explicar os acontecimentos”,
assim como cronistas políticos de plantão na grande mídia, mostraram-se
céticos e proferiram empolados seu veredicto inapelável: “rebeldes sem
causa”, “arruaceiros”. Não estavam entendendo nada. Como também a
Presidente Dilma Roussef e o Sr. Blatter não estavam entendendo nada ao
serem vaiados na abertura da Copa das Confederações, como deixavam
claros a expressão de perplexidade da primeira e o sorriso amarelo do
segundo. Imaginavam ser saudados por terem construído, ao custo de mais
de R$ 1 bi, um estádio para 70 mil pessoas, em cidade no qual o público
médio das partidas de futebol é de 2 mil? Estavam esperando os
agradecimentos do distinto público na inauguração do Estádio do qual
tentam apagar o nome Mané Garrincha e emplacar o novo nome de Estádio
Nacional – triste e infeliz evocação do 11 de setembro chileno, que a
pancadaria deflagrada pela polícia do DF, no entorno do estádio,
reafirmava?
1.5. Esta perplexidade, esta incompreensão da origem de tantos e tão
diversificados protestos só têm uma explicação: o autismo social e
político do poder. Em outras palavras, os dominantes não apenas difundem
sua ideologia, como acreditam nela. A Rede Globo não apenas projeta um
mundo fictício através de suas mensagens como, ela também, é envolvida
pela mistificação que produz. Por incrível que pareça, a Rede Globo
acredita na Rede Globo. Os marqueteiros acreditam em sua marquetagem
política e social. E não conseguem conectar-se e compreender o mundo que
escapa a suas construções imagéticas e suas mitologias.
1.6. O fato é que foram rapidamente ultrapassados. Tiveram que
reconhecer que estavam diante de uma ampla, poderosa, profunda e
abrangente manifestação política de protesto contra o status quo. Fora
dos partidos, incapazes de canalizar e expressar a vitalidade e a
diversidade dos protestos e reivindicações, nem por isso trata-se de um
processo “sem política” ou “sem foco”. O foco estava lá, só não viu quem
olha para a árvore e não vê a floresta: transporte, saúde, educação,
corrupção, democracia, desperdício dos recursos públicos, participação
política, direitos humanos. Algum partido, nos últimos anos, produziu
alguma pauta ou agenda mais precisa e concreta? Sob alguns aspectos,
chega a ser surpreendente o altíssimo nível de consciência política
expressa, embora de forma pouco organizada, pelos milhões que estão indo
às ruas.
1.7. Este movimento não foi casual. Embora não estivesse escrito
desde o início dos tempos que ele ocorreria, não ocorreu por acaso. E se
a violência repressiva o deflagrou, não o explica. Mao Tse Tung, hoje
em dia pouco lido, incluiu na coletânea do Livrinho Vermelho, que foi a
bíblia da primeira etapa da Revolução Cultural, um texto de 1930
intitulado “Uma fagulha pode incendiar uma pradaria”. Esta pequena frase
nos adverte para o engano daqueles que tentaram, e ainda tentam,
reduzir o movimento à luta pela redução das passagens, ou por melhores
transportes públicos. Essa é uma reivindicação dentre muitas outras. E
se o Movimento Passe Livre teve a iniciativa, não é a fagulha que
explica o incêndio, mas as condições em que se encontrava a pradaria. A
pradaria, como agora se sabe, estava seca, pronta pra incendiar-se. E o
vento soprava de maneira intensa para espalhar o primeiro fogo.
1.8. Para tentar entender este movimento é necessário considerar, de
um lado, a multiplicidade de insatisfações e lutas fragmentárias que o
antecederam e que constituem, por assim dizer, seu próprio fundamento.
De outro lado, há que entender as características de uma conjuntura
marcada pela abertura do ciclo de megaeventos esportivos. Se os
megaeventos, por si, também não explicam a explosão social e política,
por outro lado seria difícil imaginar tal explosão fora de um contexto
marcado pela farra do dinheiro público e a entrega de nossas cidades às
corporações, empreiteiras e cartéis organizados em torno da FIFA, em
primeiro lugar, e do COI.
1.9. Megaeventos, meganegócios, megaprotestos. E aqui merece menção
um outro importante elemento: como muitos devem ter percebido em várias
cidades, mesmo naquelas em que não haverá jogos, há uma clara
consciência acerca do significado, sentido, objetivos e resultados a
esperar desses megaeventos. É possível considerar que, de maneira não
desprezível, o trabalho realizado nos dois últimos anos pelos Comitês
Populares da Copa e das Olimpíadas e pela sua Articulação Nacional
(ANCOP) contribuiu de maneira marcante para construir uma consciência
coletiva, mais generalizada do que se poderia imaginar, de que os
megaeventos constituem um ônus insuportável para nosso povo, desviam
recursos de setores prioritários e beneficiam os mesmos poderosos de
sempre.
1.10. É indispensável ter esses elementos claramente identificados,
inclusive para estabelecer os próximos passos a serem dados pelos
diferentes movimentos e organizações populares. Tanto mais que, as
grandes manifestações abriram uma nova conjuntura de luta e
reconfiguraram de maneira expressiva a correlação de forças, abrindo
novas e grandes possibilidades de avanços e conquistas para os
movimentos populares.
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