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sexta-feira, 28 de novembro de 2014

“Não aceito a legitimação racial do Estado de Israel”

“Não aceito a legitimação racial do Estado de Israel”



O escritor israelense Shlomo Sand faz duras críticas a seu país e explica os conceitos que baseiam o livro "Como deixei de ser judeu"

por Leneide Duarte-Plon — publicado 28/11/2014
De Paris
Historiador e professor da Universidade de Tel Aviv, o escritor Shlomo Sand se define como um "judeu laico e ateu". Mas isso é possível? Por julgar que não, ele escreveu o livro Comment j’ai cessé d’être juif (Como deixei de ser judeu), publicado este ano em francês. No livro, que será lançado em português pela editora Benvirá, Sand escreve que tem consciência "de viver numa das sociedades mais racistas do mundo ocidental, na qual o racismo está presente nas leis, nas escolas, na mídia".
Segundo Shlomo Sand, o barril de pólvora prestes a explodir não vai conhecer a paz "enquanto não houver uma verdadeira pressão internacional sobre o Estado de Israel". "Para salvar Israel de si mesmo, o mundo deve acordar, sobretudo os Estados Unidos", diz.
Nesta entrevista, feita por telefone na França, onde se encontrava de passagem, ele diz que Hitler venceu a guerra ideológica pois, exatamente como os nazistas, "os sionistas consideram a identidade judaica como algo à parte, uma etnia e mesmo às vezes com bases raciais". Diz que algo tribal, racista venceu "porque os sionistas definem o Estado israelense não como o Estado de todos os cidadãos, mas dos cidadãos judeus". E informa: "Na Universidade de Tel Aviv há laboratórios que pesquisam desesperadamente o DNA judeu para provar que os judeus são um povo-raça", diz.
CartaCapital: Depois de escrever dois best-sellers sobre a invenção do "povo judeu" e da "terra de Israel", o senhor lançou este ano na França Comment j’ai cessé d’être juif. É possível deixar de ser judeu e por que o senhor não quer continuar a sê-lo?
Shlomo Sand: Aos olhos do antissemita não se deixa de ser judeu porque para ele isso é uma coisa racial, da essência da pessoa e não se pode deixar de pertencer a uma raça. Aos olhos do sionista é a mesma coisa. Recebi muitas cartas de sionistas que me diziam ser impossível, já que a visão deles é essencialista, ser judeu está no sangue. Penso que ser judeu na História é ser um crente muito, muito especial. O Judaísmo é a mãe dos monoteísmos, é uma religião muito importante, que deu origem a dois outros monoteísmos, o cristianismo e o islã. Mas como venho da segunda geração de ateus laicos me perguntei sempre "Por que sou judeu?. "Sou realmente judeu?". Escrevi o livro por duas razões.

CCC: Quais?
SS: Vivo num Estado que se define como "Estado Judaico". Ora, um quarto da população não é considerada judia e não pode tornar-se judia, senão pela conversão. Como sou um cidadão de um Estado que se define como judaico, sou um cidadão privilegiado porque o Estado não pertence aos seus cidadãos árabes nem cristãos. Como minhas origens são judaicas, isto é, sou descendente de pessoas que sofreram muito tempo essa política segregacionista que perseguiu os judeus, não quero ser judeu num Estado Judaico. Se esse Estado fosse de todos os cidadãos israelenses, não teria escrito esse livro.

A segunda razão é que penso que a identidade judaica laica é vazia, não tem um peso cultural, linguístico, etc. Os judeus laicos no mundo não falam a mesma língua, não comem os mesmos alimentos, não ouvem as mesmas músicas. Woody Allen não sabe o que é a música israelense de hoje, não sabe o que se come em Israel, não pode falar minha língua. Queria compreender o que é um judeu laico excluindo a memória. Sempre me defini como judeu dizendo que enquanto houvesse um antissemita no mundo eu seria judeu. Mas parei de me definir assim. Pode-se virar cristão, virar judeu religioso, virar socialista, brasileiro, ou francês, mas como virar judeu laico? Existe uma forma de se virar judeu laico sem ter nascido de mãe judia? No momento em que compreendi que faço parte de um clube exclusivo que não pode receber novos membros, decidi que não quero pertencer a um clube exclusivo em pleno século XXI.
CC: Em Israel, a menção "judeu" vem inscrita na carteira de identidade. O senhor escreve: "Em Israel e no estrangeiro, os sionistas do início do século XXI rejeitam o princípio da nacionalidade israelense para somente admitir uma nacionalidade, a judia". Um pouco depois: “Cada vez mais, tenho a impressão de que sob certos aspectos Hitler saiu vitorioso da Segunda Guerra Mundial". Pode explicar?
SS: Hitler ganhou a guerra ideológica, de certo modo. Ele tinha decidido que os alemães judeus não eram alemães, que eram uma raça à parte, uma etnia à parte, um povo à parte. O alemão judeu não estava de acordo com isso, sentia-se alemão, era um cidadão alemão, tinha uma nacionalidade alemã. E por que Hitler ganhou ideologicamente? Porque os sionistas consideram a identidade judaica como algo à parte, uma etnia e mesmo às vezes com bases raciais. Na universidade de Tel Aviv, onde trabalho, há laboratórios que pesquisam desesperadamente o DNA judeu para provar que os judeus são um povo-raça que partiu há dois mil anos da terra que se chama Israel, passando por Moscou e fazendo outros percursos até retornar à Palestina. Digo que algo tribal, racista, ganhou porque os sionistas definem o Estado israelense não como o Estado de seus cidadãos mas dos cidadãos judeus. Não discuto a existência de Israel, discuto a identidade etnocêntrica da política israelense.

CC: O senhor se diz laico e ateu. Como é possível isso num país que se define como um Estado Judaico, construído a partir da história de um povo que crê numa religião revelada e no destino de povo eleito de Deus?
SS: Não é possível e por isso me sinto mal em Israel. Queria mudar toda a cultura política israelense. Queria “dessionizar” o Estado de Israel. Digo no meu livro que o Estado de Israel não consegue definir quem é judeu por critérios laicos. Eles têm dois modos de definir quem é judeu: pela biologia, pela genética, ou pela religião. Pelos critérios religiosos, um judeu é alguém que se converteu à fé judaica ou quem nasceu de mãe judia. E o Estado pertence somente a essas pessoas. Assim sendo, um judeu brasileiro que mora em São Paulo pode ser cidadão de Israel. Mas Israel não é o Estado de meus alunos árabes que trabalham comigo na Universidade de Tel Aviv. Se Israel vai continuar a manter uma identidade etnocêntrica semi-religiosa com uma visão muito profunda das raças e com uma visão profunda de povo escolhido, penso que não preciso ser profeta para dizer que isso vai destruir Israel. Não há futuro para um Estado assim.

CC: O senhor considera que Israel, fundado dentro dos princípios da religião que reconhece um “povo judeu” e o vê como “povo eleito” de Deus, é um Estado teocrático?
SS: Não, porque não é a verdadeira fé em Deus que está no centro da política. São os nacionalistas que se utilizam da religião. O princípio do Estado é etno-religioso mas não é a religião que está no centro. As elites laicas têm necessidade da religião para se afirmar e por isso Israel se torna cada vez mais um Estado etnocrático.

CC: Os judeus franceses são intransigentes com os negacionistas que negam a existência dos fornos crematórios e o genocídio judeu. Em Israel, nega-se a Nakba, a expulsão e o massacre dos palestinos pelos sionistas, em 1948. Esses dois negacionismos têm pontos em comum?
SS: Não, o primeiro era um projeto de eliminação do outro e no projeto colonialista judaico o objetivo era de empurrar o outro para longe. Em 1948, houve massacres mas não eram uma característica da colonização sionista. O projeto do nazismo era eliminar o outro, não apenas expulsá-lo. Negar o sofrimento dos judeus durante a Segunda Guerra mundial na Europa é condenável mas negar a Nakba é também condenável, mesmo se são realidades diferentes. Meu dever hoje é lutar contra o esquecimento da Nakba. Com esse ocultamento, não se pode construir a paz.

CC: O Estado da Palestina, reconhecido por 135 países entre os 193 que fazem parte da ONU, é ainda viável? Por que Israel não quer um Estado palestino nas fronteiras estabelecidas pela ONU em 29 de novembro de 1947?
SS: O Estado de Israel é reconhecido com suas fronteiras de antes da guerra de 1967. Eu também reconheço a existência desse Estado com as fronteiras de 1967. Se um Estado palestino ao lado de Israel é ainda viável, não sei. Mas não vejo outra solução. Moralmente, como não sou nacionalista, desejaria a solução de um Estado para as duas identidades. Mas como não creio que isso é realizável, defendo a solução de dois Estados com as fronteiras de 1967. Mas não creio que em Israel se possa realizar isso porque a inércia no sionismo é a colonização. O sionismo nunca parou a colonização do fim do século XIX até hoje. Mesmo entre 1948 e 1967 havia uma colonização sionista em Israel. Tomaram as terras de palestinos israelenses e deram aos judeus israelenses. Por que Israel não aceita um Estado palestino? Porque os sionistas pensam que o centro desse Estado é o centro da antiga "pátria dos judeus", Hebron e Jericó. Esse é o centro do imaginário bíblico que teria sido a pátria dos judeus. Para muitos, sobretudo para as elites políticas e intelectuais, renunciar a isso é muito difícil. Enquanto não houver uma verdadeira pressão internacional sobre o Estado de Israel, não haverá paz. Para salvar Israel de si mesmo o mundo deve acordar, sobretudo os Estados Unidos. Eles podem pedir que Israel respeite o direito dos palestinos, saia dos territórios ocupados e favoreça a criação do Estado palestino. Em Israel, não vejo um movimento político capaz de realizar esse projeto.

CC: O senhor pensa que o movimento pelo boicote (BDS) a Israel, criado por Noam Chomsky, Desmond Tutu, Stéphane Hessel, Ken Loach, entre outros, pode ser eficaz para lutar contra a segregação e o apartheid dos palestinos em Israel?
SS: Aceito hoje em dia qualquer pressão sobre Israel, menos o terrorismo.

CC: O escritor Amos Oz denunciou este ano os “neonazistas hebreus”, como ele chama os extremistas judeus que realizaram uma onda de atentados racistas contra os cristãos e os muçulmanos. O que o senhor pensa da expressão?
SS : Como nunca comparei o sionismo ao nazismo, não comparo os extremistas sionistas aos nazistas porque não é comparável e isso é importante. Enquanto não existe um projeto de genocídio, nada pode ser comparado ao nazismo. Os extremistas racistas me enojam, mas na história não somente os nazistas foram racistas. Tenho certeza de que no Brasil há racistas, sempre houve racistas que não queriam viver com os negros ou com os índios e não são comparáveis aos nazistas. Não se pode comparar o extremista sionista execrável aos nazistas.

CC: Os israelenses gostam de escrever que Israel é a única democracia do Oriente Médio. O que o senhor pensa disso? O senhor escreve que gostaria de "tornar compatíveis as leis constitucionais de Israel com os princípios democráticos".
SS: Existe um jogo liberal em Israel, por isso o definiria não como uma democracia mas como uma etnocracia liberal. Israel não poderia nem mesmo adotar os princípios da monarquia britânica, nem os da democracia brasileira porque não há igualdade de todos os seus cidadãos. Não acredito que existam democracias perfeitas. Mas há Estados mais democráticos que outros. A democracia não é somente uma certa liberdade de expressão, liberdade dos partidos políticos. Antes de tudo, uma democracia é um Estado de todos os seus cidadãos. Um Estado democrático não pode pertencer a uma parte de seus cidadãos. E como Israel se define como um Estado judaico e não como um Estado israelense, não pode ser democrático. E como o poder israelense procura o bem dos judeus e não o dos israelenses, ele não pode ser considerado democrático. Um quarto da população não é parte integrante desse Estado. O Estado deve ser um lugar de identificação, deve servir a todos os cidadãos. Por outro lado, de forma relativa, Israel é um país liberal. O fato que eu possa ser professor da Universidade de Tel Aviv com minhas ideias mostra que o Estado é pluralista e liberal. Não podem me demitir.

CC: Como seu livro foi recebido em Israel?
SS : Relativamente bem, não foi um best-seller como os outros dois sobre a invenção do povo judeu e a invenção da terra de Israel, mas foi bem. A Universidade de Tel Aviv fez um grande debate sobre o livro. E o subtítulo era claro: “Como deixei de ser judeu, aos olhos dos israelenses”. Isso porque não aceito a legitimação etnocrática e racial desse Estado.

CC: Sua posição tem consequências políticas ou práticas?
SS : Eu sou circuncidado, não posso mudar isso. Nunca me senti judeu, era israelense de origem judaica. Mas não conseguia compreender isso por causa do antissemitismo no mundo. Hoje, acho que o mundo ocidental é mil vezes menos antissemita que antes. Ora, o mundo ocidental apoia um Estado etnocrático no Oriente Médio e eu quero que isso mude, que o mundo possa apoiar duas repúblicas, uma palestina e uma israelense, para fazer um acordo histórico com o povo que empurraram para o Oriente Médio.

CC: Já que se fala de circuncisão, o que o senhor pensa de se mutilar o corpo de uma criança com argumentos religiosos?
SS: Não sou contra a circuncisão com uma condição: que seja decidida por uma pessoa adulta para ela mesma, a partir de 18 anos. Mas sou contra realizá-la em seres humanos que não decidiram nada.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/internacional/201cnao-aceito-a-legitimacao-etnocratica-e-racial-do-estado-de-israel201d-8478.html

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

"Transformar São Paulo passa pelo diálogo com os movimentos sociais"

"Transformar São Paulo passa pelo diálogo com os movimentos sociais"


Entrevista David Harvey: Autoridade mundial em urbanismo faz ressalvas a planos de embelezamento e PPPs




24.11.2014
Edison Veiga - O Estado de S. Paulo


Ele concorda que a probabilidade de São Paulo eliminar seus graves problemas "não é muito grande", vê com bons olhos a ideia de transporte público grátis e tem ressalvas a projetos pontuais de embelezamento das cidades e às parcerias público-privadas (PPPs). Autoridade mundial em temas referentes às transformações urbanas atuais, o geógrafo marxista britânico David Harvey, professor da City University de Nova York, veio ao Brasil para participar de debates e conferências em Brasília, Recife, Fortaleza, Curitiba e São Paulo.

Autor de livros como Cidades Rebeldes (Martins Fontes, 296 páginas, R$ 34,90) e o recém-lançado Para entender o Capital: Livro II e III (Boitempo, 392 páginas, R$ 58), ele concordou em responder perguntas sobre São Paulo de arquitetos e urbanistas convidados pelo Estado. As questões foram propostas por Henrique de Carvalho, do escritório Tanta; Pedro Paes Lira e Rebeca Amaral, do IDOM-ACXT; e Sergio Coelho e Alessandra Araujo, GCP Urbanismo e Sustentabilidade.
Para David Harvey, expulsão de mais pobres para periferia não é inevitávelPara David Harvey, expulsão de mais pobres para periferia não é inevitávelGabriela Bilo/Estadão

São Paulo é uma cidade típica brasileira na qual a intensidade dos problemas mais comuns de nossas cidades menores é multiplicada pela sua escala. Você vê possibilidade de melhoria significativa do quadro? Conhecendo exemplos em outros países, poderia apontar algum caminho viável?


Sempre há possibilidades e eu penso que é importante, portanto, explorar o máximo possível delas. As possibilidades não se traduzem em probabilidades. De modo que a probabilidade de São Paulo sair dessa situação não é muito grande. Em parte, me parece que a única maneira de grandes conurbações como a região de São Paulo poderem ser transformadas é trabalhando com elementos de dentro, com os movimento sociais, com os movimentos de protesto, e buscando caminhos para algum tipo de transformação da vida cotidiana e algumas reformas parciais. Não é impossível surgir um movimento desse tipo que faça parceria com o Estado. Minha maneira preferida de pensar nisso é dizer que, em vez de o Estado batalhar contra muitas destas organizações sociais, ele deveria tentar se estabelecer como um parceiro potencial. Portanto, sim, há possibilidades. Quais são as possibilidades de São Paulo eu não sei. Do que as pessoas dizem, me parece que não são muito grandes (risos), mas há possibilidades.

Espaços de coexistência, livres e abertos para todos, são uma carência em cidades como São Paulo. "Ressignificar" os espaços de uso comunitário pode ser uma opção? E a universidade pública poderia ser uma alternativa de espaço público aberto?

É possível criar redes culturais ou de interesse dentro de uma cidade que não seriam encontradas de outra forma. Temos de estar de olho nesses novos tipos de estrutura. Imagino uma universidade pública e gratuita dispersa pela cidade, uma aula em cada lugar, Economia em uma praça, Cultura Popular em outra...

Há consenso entre os urbanistas de que a área central de São Paulo, rica em infraestrutura deve ser reocupada. A Prefeitura tem a intenção de fazer isso por meio de habitações sociais, até requalificando edificações degradadas, o que parece fazer bastante sentido. Faz sentido também acreditar que esses imóveis requalificados tendem à alta valorização e, sendo assim, voltariam a alimentar o mercado imobiliário, expulsando esses habitantes para áreas distantes. Não seria o caso do poder público ser mais criativo, trabalhando por exemplo, com o conceito de aluguel social, sem a propriedade definitiva do imóvel? Ou o processo é inexorável?

Não acho que a expulsão da população de baixa renda para as periferias seja algo inexorável. Ela tende a acontecer, mas a Prefeitura tem de encontrar maneiras de lutar contra a lógica da expulsão para mudar esse resultado. A questão é como fazer isso. Sinto-me inclinado à ideia de que seria necessário criar formas de propriedade de imóveis que não pudessem ser comercializadas, que as protegeria assim da especulação. O poder público poderia escolher certas áreas ou prédios e dizer que não podem ser comercializados no livre mercado. Há vários lugares no mundo que fazem isso, como as co-ops nos Estados Unidos - são cooperativas de habitação que, quando você sai, só ganha de volta o valor que você pagou corrigido pela inflação, sem nenhum tipo de juros ou valorização que poderia tornar aquele imóvel alvo do mercado imobiliário. Outra ideia é a propriedade comunitária, em que se decide que certa área é de propriedade da comunidade e também não pode ser comercializada nem valorizada.

A preservação do meio ambiente como valor cultural parece ser um dado positivo em si mesmo. Contudo, em relação aos processos de gentrificação, como você vê iniciativas de transformação no uso e crescimento da cidade com base no conceito de "sustentabilidade"? Não seria apenas um artifício para justificar os velhos processos de segregação?

Para mim é muito difícil fazer observações a respeito de uma cidade que eu conheço de forma muito fragmentária, mas acho que posso falar de maneira mais geral, citando exemplos comuns a outras cidades. Eu sei que existe uma série de conflitos entre as questões relacionadas à gentrificação e às melhorias em nossas vizinhanças. Obviamente há vantagens em receber melhorias na qualidade das moradias, com investimentos e desenvolvimentos ligados à habitação. Mas é importante certificar-se de que esse tipo de melhoria não envolve o deslocamento da população. Acredito que um dos direitos que deveriam ser definidos com muita clareza é o direito de ficar ou, no caso de áreas que serão redesenhadas por uma transformação maior, o direito de voltar e continuar fixado ali depois que as mudanças são feitas.

Você vê alternativas de curto prazo que poderiam ser usadas para melhorar a qualidade de vida em São Paulo?

Há muitas coisas que poderiam ser feitas em curto prazo. Acho que uma delas é a regulação do tráfego. Devem ser garantidos a fluidez e o conforto e, em alguns casos, a solução depende da municipalização destas estruturas para que os investimentos sejam feitos independentemente dos lucros envolvidos. Também acho ótima a ideia de que se ofereça transporte grátis, sendo estruturado como parte vital de algum programa mais complexo.

O que você pensa de o Brasil ter em São Paulo um papel de centralidade econômica tão forte?

Não sei exatamente qual é a política brasileira a esse respeito, mas penso que as cidades latino-americanas deveriam pensar em retomar algum grau de reindustrialização. Nos anos 60 havia uma política de industrialização ligada ao sistema de substituição de importações e acredito que em grande parte foi assim que a indústria de São Paulo se desenvolveu. O que é possível fazer hoje é usar novas formas de industrialização, como impressões 3D, e criar um modelo de autoprodução.

Os investimentos cosméticos pontuais que São Paulo tem recebido para parecer mais amigável podem levar a efeitos duradouros?

Acho que essa ideia de embelezamento da cidade, tentando criar ambientes mais agradáveis, principalmente na requalificação de escalas menores como nos pocket parks, são em geral boas iniciativas para melhorar a qualidade de vida na cidade. Entretanto deve haver cuidado, devemos fugir da ilusão de que uma requalificação estética resolve também as questões sociais. É claro que, se você cria um parque adorável, integrado aos valores da comunidade na qual está inserido, há grande possibilidade de que seus efeitos sejam duradouros. Contudo, não há como impedir a alta nos valores do imóveis ao redor, e esse é sempre o perigo de qualquer melhoria feita na cidade: o lugar melhora valorizando tudo o que está ao seu redor, os valores sobem, algumas pessoas não podem mais pagar para morar ali, outra são convidadas a vender seus imóveis para a especulação...

As instituições públicas têm apresentado dificuldades em investir. Neste contexto, tem sido ampliada no Brasil a modalidade de parceria público-privada (PPP) como uma solução que busca o equilíbrio dos interesses públicos e privados. Como o senhor vê esta modalidade?

As experiências nas cidades americanas mostram que essas parcerias tendem a levar o setor público ao risco do privado, da busca pelo lucro. Talvez existam situações em que as PPPs trabalhem para o desenvolvimento do que é público. Mas eu suspeito que a maioria das vezes funciona da maneira inversa. Projetos desse tipo envolvem tecnologias dominadas pelo setor privado e essa expertise pode ser usada para oprimir e subjugar o lado público. Enormes contratos estão sendo dados para o setor privado e em muitos casos não funcionam. E o setor privado acaba não sendo responsável por limpar a sujeita deixada para trás.

Fonte: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,transformar-sao-paulo-passa-pelo-dialogo-com-os-movimentos-sociais,1596662?utm_content=buffer9388f&utm_medium=social&utm_source=twitter.com&utm_campaign=buffer

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

The Crisis of Planetary Urbanization

The Crisis of Planetary Urbanization


David Harvey's essay for the exhibition catalog of Uneven Growth Tactical Urbanisms for Expanding Megacities is published here on post to mark the opening of the exhibition.
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In this June 26, 2013 file photo, demonstrators march toward the Mineirão stadium where a Confederations Cup semifinal soccer match will be played between Brazil and Uruguay in Belo Horizonte, Brazil. Public approval of Brazilian President Dilma Rousseff's government has suffered a steep drop since protesters calling for a wide-range of reforms took to the streets all over Brazil in the past two weeks, according to Brazil's first nationwide poll released since the unrest began. (AP Images/Felipe Dana)
On the night of June 20, 2013, more than a million people in some 388 Brazilian cities took to the streets in a massive protest movement. The largest of these protests, comprising more than 100,000 people, occurred in Rio de Janeiro and was met with significant police violence. For more than a year prior to this, sporadic protests had been occurring in various Brazilian cities. Led by a “Free Pass” movement that had long been agitating for free public transportation for students, the earlier protests were largely ignored. But by early June 2013, fare increases for public transportation sparked more widespread protests. Many other groups, including the black block anarchists, sprang to the defense of the “Free Pass” protestors and others who came under police attack. By June 13 the movement had morphed into a general protest against police repression, the failure of public services to match social needs, and the deteriorating quality of urban life. The huge expenditures of public resources to host mega-events such as the World Cup and the Olympic Games—to the detriment of the public interest but to the great benefit, it was widely understood, of corrupt construction and urban development interests—added to the discontent
The protests in Brazil came less than a month after thousands of people turned out on the streets of Turkey’s major cities, as anger over the redevelopment of the precious green space of Gezi Park in Istanbul as a shopping center, spread into a broader protest against the increasingly autocratic style of the government and the violence of the police response. Long-simmering discontent over the pace and style of urban transformation, including the wholesale eviction of populations from high-value land in inner-city locations added fuel to the protests. Diminished quality of life in Istanbul and other cities for all but the most affluent classes was clearly an important issue.
The broad parallel between Turkey and Brazil led Bill Keller to write an op-ed piece in the New York Times entitled “The Revolt of the Rising Class.”1 The uprisings were “not born in desperation,” he wrote. Both Brazil and Turkey had experienced remarkable economic growth in a period of global crisis. They were “the latest in a series of revolts arising from the middle class—the urban, educated haves who are in some ways the principal beneficiaries of the regimes they now reject” and who had something to lose by taking to the streets in protest. “By the time the movements reached critical mass, they were about something bigger and more inchoate, dignity, the perquisites of citizenship, the obligations of power.” The revolts signified “a new alienation, a new yearning” that had to be addressed.
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Architecture for a Change. Mamelodi POD, Pretoria, South Africa. 2013.
To be sure, the protests in Brazil and Turkey differed from the anti-austerity protests and strikes that dominated in the squares of Greece and Spain. They were different also from the eruptions of violence in London, Stockholm, and the Paris suburbs on the part of marginalized and immigrant populations. And all of these looked different from the “Occupy” movements in many Western cities and the pro-democracy uprisings that echoed from Tunis, Egypt, and Syria into Bosnia and Ukraine.
Yet there were also commonalities across the differences. They were, for example, urban centered, to some degree weakly cross-class, and even (initially at least) inter-ethnic (though that broke down as internal forces moved to divide and rule, and external powers exploited the discontents for geopolitical advantage, as in Syria and Ukraine). Urban disaffection and alienation were quite prominent among the triggers as was the universal outrage at rising social inequalities, escalating costs of living, and gratuitously violent police repressions.
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Makeshift barricades in Kiev's Independence Square, during the demonstrations known as Euromaidan. 2013.
None of this should have been surprising. Urbanization has increasingly constituted a primary site of endless capital accumulation that visits its own forms of barbarism and violence on whole populations in the name of profit. Urbanization has become the center of overwhelming economic activity on a planetary scale never before seen in human history. The Financial Times reports, for example, that “investment in real estate is the most important driver in the Chinese economy,” which in turn has been the main driver of the global economy throughout the world-wide crisis that began in 2007. “The building, sale and outfitting of apartments accounted for 23 percent of Chinese gross domestic product in 2013.” If we add in the expenditures on massive physical infrastructures (road, rail, public works of all kinds) then close to one half of the Chinese economy is taken up with urbanization. China has consumed more than half of the global steel and cement over the last decade. “In just two years, from 2011 to 2012, China produced more cement than the United States did in the entire twentieth century.”2
While extreme, these trends are not confined to China. Concrete is everywhere being poured at an unprecedented rate over the surface of planet earth. We are, in short, in the midst of a huge crisis—ecological, social, and political—of planetary urbanization without, it seems, knowing or even marking it.
None of this new development could have occurred without massive population displacements and dispossessions, wave after wave of creative destruction that has taken not only a physical toll but destroyed social solidarities, exaggerated social inequalities, swept aside any pretences of democratic urban governance, and has increasingly looked to militarized police surveillance and terror as its primary mode of social regulation. The unrest attaching to dispossession in China is unknowable but clearly widespread. Sociologist Cihan Tugal has written, “Real estate bubbles, soaring housing prices, and the overall privatization-alienation of common urban goods constitute the common ground of protests in as diverse places as the United States, Egypt, Spain, Turkey, Brazil, Israel, and Greece.”3 The rising cost of living, particularly for food, transportation, and housing, has made daily life increasingly difficult for urban populations. Food riots in North African cities were frequent and widespread even before the uprisings in Tunisia and Tahrir Square.
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AFFECT-T. Bamboo micro-housing, Hong Kong. 2013.
This urbanization boom has had very little to do with meeting the needs of people. It has been all about absorbing surplus capital, sustaining profit levels, and maximizing the return on exchange values no matter what the use value demands might be. The consequences have often been irrational in the extreme. While there is a chronic shortage of affordable housing in almost every major city, their skylines are littered with empty condominiums for the ultra-rich whose main interest is in speculating in property values rather than constructing a settled life. In New York City, where half of the population has to live on less than $30,000 per year (as contrasted with the top 1 percent, who had an average annual income of $3.57 million per year according to tax records for 2012), there is an affordable housing crisis because nowhere is it possible to find a two-bedroom apartment for the $1,500 per month that a family of four should be spending on housing given an income of $30,000. In almost all the major cities in the U.S. the average expenditure on housing is way over the thirty percent of disposable income that is considered reasonable.4 The same applies to London, where there are whole streets of unoccupied mansions being held for purely speculative purposes. Meanwhile, the British government attempts to increase the supply of affordable housing by putting a bedroom tax on social housing for the most vulnerable sector of the population, resulting in, for example, the eviction of a widow living alone in a two bedroom council house. The empty bedroom tax has plainly been put on the wrong class, but governments these days appear to be singularly dedicated to feathering the nests of the wealthy at the expense of the poor and the disadvantaged. The same irrationality of empty dwellings in the midst of shortages of affordable housing can be found in Brazil, Turkey, Dubai, and Chile as well all the global cities of high finance such as London and New York. Meanwhile, budget austerities and reluctance to tax the wealthy given the overwhelming power of a now triumphant oligarchy means declining public services for the masses and further astonishing accumulation of wealth for the few.
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Anti-government protesters behind barricades and on an excavator clash with riot police as they try to march to the office of Turkey's Prime Minister Tayyip Erdogan in Istanbul early June 3, 2013. Turkish protesters clashed with riot police into the early hours of Monday with some setting fire to offices of the ruling AK Party as the fiercest anti-government demonstrations in years entered their fourth day. Turkey's streets were calm in the morning after a night of noisy protests and violence in major cities. (REUTERS)
It is in conditions of this sort that the propensity to political revolt begins to fester. Universal alienation from a burdensome daily life in the city is everywhere in evidence.5 But so are the innumerable attempts on the part of individuals, social groups, and political movements to find ways to construct a decent life in a decent living environment. The theme that there must be an alternative takes many forms and produces many quasi-solutions in seemingly infinite guises.
It is in this context that concerned groups of thinkers and practitioners are exploring alternatives, sometimes at small scales but in other instances, in the wake of urban revolts, to encourage the search for better forms of urban living. The do-it-yourself ethos of many social groups cast adrift from the prevailing dynamic of capital accumulation creates possibilities for alliances of urban thinkers and technicians with nascent social movements searching for a good or at least a better life. In Andean nations the ideal of “buen vivir” is implanted in national constitutions even as it conflicts with neoliberalizing practices on the ground.6 With massive populations deemed surplus and disposable in a context of perpetual land grabbing by developers and financiers, aided all too often by a corrupted state apparatus, many situations arise in which political battles take shape well before some fuse is lit to turn the growing propensity for street revolts into an active reality.
There are popular possibilities and potentialities emerging out of the crisis of planetary urbanization and its multiple discontents. This is so even in the face of the seemingly overwhelming force of endless capital accumulation growing at an unsustainable compound rate and in spite of the power across social classes being wielded by an increasingly visible and intransigent global oligarchy.7
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Architecture and Vision. WarkaWater Tower, Ethiopia. 2012.
So what is it that might emerge from the popular revolts? There are confusing signs and signals but also some important clues. In Gezi Park, for example, it was not only the park that mattered. The “rising class” constructed instantaneous social solidarities, an economy of sharing and of collective social provision (food, health care, clothing), of caring for others (particularly the wounded and the frightened). The participants took evident delight in debating their common interests through democratic assemblies, launched into discussions that went on late into the night, and above all found a possible world of collective humor and cultural liberation that had previously seemed foreclosed. They opened alternative spaces, constructed a commons out of public spaces, and released the power of space to an alternative social and environmental purpose. They found each other as well as the park8; They identified a nascent social order in waiting.
This provides a clue as to what an alternative might look like. The spirit of many (though not all) of these protests and the spirit within the pro-democracy and Occupy movements is to go beyond “the new alienation” that Keller senses is so important to construct a less-alienating urban experience. Visceral resistance to the proposal to pour concrete over Gezi Park to build an imitation of an Ottoman barracks that would function as yet another shopping mall is in this sense emblematic of what the crisis of planetary urbanization is all about. Pouring more and more concrete in a mindless quest for endless growth is obviously no answer to current ills.
But the “rising class” is not all there is. In Turkey the mass of the Islamic working classes did not join in the revolt. They already possessed their own cultural (often anti-modernist) solidarities and hardened social relations (particularly regarding gender). They were not drawn into the emancipatory rhetoric of the protest movement because that movement did not address effectively its condition of massive material deprivation. They liked the combination of shopping malls and mosques that the ruling AKP party was building and did not care about the evident corruption surrounding the building boom as long as it was a source of jobs. The protest movement of Gezi was, as the subsequent municipal elections showed, not cross-class enough to last.
Asia_csutoras_and_liando
Csutoras & Liando. Kineforum Misbar Monas, temporary open-air theater in Jakarta. 2013.
There is no one answer to our predicaments. The urban experience under capitalism is turning barbaric as well as repressive. If the roots of this alienating experience lie in endless capital accumulation, then those roots must ultimately be severed. Lives and well-being must be rerooted in other modes of producing and consuming, while new forms of sociality must be constructed. The neoliberal ethos of isolated individualism and personal rather than social responsibility has to be overcome. The material needs of the masses must be met and combined with cultural emancipation. Taking back the streets in acts of collective protest can be a beginning. But it is only a beginning and cannot be an end in itself.9 Maximizingbuen vivir for all in the city rather than the value of Gross Domestic Product for the benefit of the few is a great idea. It needs to be grounded in urban practices everywhere.
Fonte: http://post.at.moma.org/content_items/520-the-crisis-of-planetary-urbanization

Os anarquistas e a geografia urbana (1): Kropotkin

Os anarquistas e a geografia urbana (1): Kropotkin



O espaço urbano do passado e do porvir – como qualquer outro espaço – é, também, fruto de lutas sociais, em especial quando as cidades são o palco principal das lutas pela liberdade. Por Manolo
Embora seja possível traçar seus antecessores em diversos momentos da história, o movimento anarquista, tal como o compreendemos hoje, consolidou-se como expressão de um projeto político apenas nas quatro últimas décadas do século XIX, e a força, presença e relevância deste projeto político inicial influenciaram incontáveis organizações e iniciativas políticas até a década de 1930, quando eventos que culminaram na chegada ao poder político entre 1917 e 1939 de organizações políticas historicamente inimigas do anarquismo – que vão desde comunistas até fascistas, passando por organizações influenciadas pelo liberalismo, pelo conservadorismo, pelo nacionalismo e pelo fundamentalismo religioso – resultaram numa onda de perseguição política aos anarquistas cujo saldo foi o desmantelamento de suas organizações e a destruição de seus arquivos pessoais, além de prisões, exílios e assassinatos.
Somente na década de 1960 o anarquismo retornou com força à cena política, perseguido e marginalizado (WOODCOCK, 2008). Por isto, optou-se neste artigo por chamar o movimento anarquista existente nos setenta anos compreendidos entre as décadas de 1860 e 1930 de primeira onda do anarquismo, para diferenciá-lo da retomada iniciada na década de 1960, cujos efeitos são sentidos até hoje.
Nesta primeira onda do movimento anarquista, houve dois militantes, geógrafos de profissão, que apresentaram versões alternativas e bastante funcionais a muitas das teorias atualmente empregues na compreensão do fenômeno citadino e no planejamento urbano [1]Elisée Reclus Piotr Kropotkin. Para ambos, “anarquismo e geografia são uma combinação lógica” (DUNBAR, 1989, p. 78), seja enquantofilosofia política, seja enquanto fundamento epistemológico.
Kropotkin e Reclus veem na livre associação dos indivíduos e na solidariedade duas forças motrizes do desenvolvimento social, econômico, político e geográfico; por isto mesmo, são críticos acerbos de tudo quanto possa obstaculizar estas duas forças: Estado, capital, exploração do homem pelo homem, colonialismo, imperialismo, tirania e autoritarismo são temas constantes de seus ataques.
Por caminhos teóricos ligeiramente diferentes, Kropotkin e Reclus chegam à conclusão de que as cidades são um lugar de encontros e um espaço fértil para atuação política, por terem sido os lugares onde surgiram os embriões da democracia moderna – embora vejam no governo representativo e no Estado, mesmo o mais democrático, entraves à solidariedade e à livre associação dos indivíduos. Por terem sido quase vizinhos em seu exílio suíço (1877-1881), Kropotkin e Reclus influenciaram-se mutuamente, um “polindo” o entendimento do outro através do diálogo: Reclus dando foco mais social e ecológico à geografia física de Kropotkin, e este último conferindo à geografia social e ecológica de Reclus caráter mais comunal e mais atento no fenômeno urbano (WARD, 2010, p. 209-210).
1 Piotr Kropotkin e a revolução urbana na Europa
1.1 Breve biografia
Piotr Kropotkin em 1864
Piotr Kropotkin em 1864
Príncipe da dinastia ruríquida, senhora dos territórios da Rússia e Ucrânia entre 862 e 1610, Piotr Kropotkin (1843-1921) recusou o título aos 12 anos para tornar-se uma das figuras centrais do movimento anarquista no século XIX, e repreendia duramente os amigos que ainda o tratavam como se fosse nobre (BALDWIN, 1970, p. 13).
Quando jovem, na Rússia, esteve envolvido com atividades administrativas, militares e de corte; entre 1866 e 1872 dedicou-se a expedições científicas à Sibéria, tendo em seguida, numa viagem à Suíça, tido contato com o movimento operário, filiando-se à seção genebrina da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT).
Por influência de militantes da Federação do Jura suíço, ingressou no movimento anarquista, que não abandonou até sua morte. Voltou à Rússia ainda em 1872, e já em 1874 estava preso na fortaleza de Pedro e Paulo por sua atividade política com o Círculo Tchaikovsky. Tendo escapado das prisões russas em 1876, passou a viver no exílio, entre a França, Suíça e Inglaterra, sempre ativo no movimento anarquista então em pleno vigor.
Voltou à Rússia apenas em 1917 para colaborar com o processo revolucionário, mas a escalada dos bolcheviques ao poder através de um golpe de Estado fê-lo crítico acerbo desta forma de condução de um processo revolucionário – em conformidade com sua longa crítica a qualquer governo, mesmo revolucionário. Morto em 8 de fevereiro de 1921, seu funeral, em 13 de fevereiro, foi o último ato público de anarquistas durante a Revolução Russa; a Cheka, polícia política bolchevique, se encarregaria de aniquilá-los a partir de então.
1.2 As cidades medievais europeias como berço da democracia e do Estado modernos
Não cabe aqui fazer um inventário completo das ideias políticas e Kropotkin quando uma boa introdução ao assunto (WOODCOCK, 2002, pp. 207-250) ainda se encontra em catálogo editorial. Basta mencionar, introdutória e esquematicamente, que para Kropotkin tanto o feudalismo quanto o capitalismo criam escassez artificial e baseiam-se na força bruta e em privilégios; ele propôs um sistema político e econômico descentralizado, baseado no apoio mútuo e na cooperação voluntária, duas tendências que identificou como já presentes na vida social (KROPOTKIN, 2000, 2005, 2009, 2011).
Nuremberg, 1493
Nuremberg, 1493
Interessam, para os fins deste artigo, sobretudo as ideias de Kropotkin sobre as cidades e sua inter-relação, ainda mais justificadas quando sua obra geográfica não tem sido objeto do mesmo revivalque a de seu amigo Élisée Reclus. Será necessário, como pano de fundo desta subseção, criticar duas opiniões. A primeira, mais comum, diz que Kropotkin teria sido fundamentalmente umgeógrafo físico (SOUZA, 2011, p. 10); não obstante sua fama como geógrafo físico ser merecida, por ter sido o primeiro a cartografar certas regiões do norte da Ásia (WARD, 2010, p. 214), ela espraia uma cortina de fumaça sobre sua não menos significante contribuição àgeografia social presente em obras comoCampos, fábricas e oficinas(KROPOTKIN, 1901) e A conquista do pão (KROPOTKIN, 2011), reconhecida por entusiastas de primeira hora como Lewis Mumford [2]. A segunda opinião, menos difundida, leva em conta a contribuição de Kropotkin à geografia social, mas quanto à questão urbana defende que “sua preocupação com a cidade é mais indireta” (VASCONCELOS, 2012, p. 71); a questão urbana, muito pelo contrário, está no cerne das preocupações de Kropotkin, quer no âmbito historiográfico, quer no âmbito geográfico, quer no âmbito político.
Kropotkin, geógrafo evolucionista e biólogo neolamarckista (ALSINO, 2012), e por isso mesmo muito atento ao desenvolvimento histórico da relação homem-meio, encontrou nas comunasurbanas europeiasexistentes entre os séculos X a XIV, herdeiras diretas das comunas rurais, tanto um antecessor cronológico das cidades modernas quanto uma base para a reflexão política de sua militância revolucionária.
As comunas urbanas e as primeiras cidades medievais eram, para Kropotkin, um modelo de resistência à tirania. Em várias passagens de sua obra (KROPOTKIN, 1901, 1955, 2000, 2005h, 2009, 2011) mostrou como estas comunas lutaram contra os senhores feudais, sendo em alguns momentos vitoriosas.
Para Kropotkin, as cidades medievais foram formadas por um lento e conflituoso desenvolvimento histórico, impulsionado por um conjunto de fatores em influência recíproca: a federação de vilarejos em prol da defesa comum contra inimigos externos (KROPOTKIN, 2009, p. 128); a restauração da paz interna em situações de desrespeito aos costumes, num embrião de função jurisdicional (idem, p. 120-131); o surgimento e consolidação das guildas e dos mercados (idem, p. ); a consolidação dos direitos fundamentais da posse comum da terra e daautojurisdição, que significava na prática autoadministração eautolegislação (idem, p. 133); e as conjuraçõesfraternidades e amizades, pactos políticos consolidados emcartas constitucionais, forjados na luta para “sacudir o jugo de seus senhores laicos e clericais” (idem, p. 132). O europeu medieval, para Kropotkin, seria “essencialmente federalista” (KROPOTKIN, 2000, p. 53), “preferia invariavelmente a paz à guerra” (KROPOTKIN, 2009, p. 128).
Representação da cidade livre de Aachen (Alemanha) na Idade Média
Representação da cidade livre de Aachen (Alemanha) na Idade Média
Em termos atuais, pode-se dizer que Kropotkin viu na história das cidades europeias medievais oespaço urbano como produto da associação de indivíduos em busca da libertação do jugo feudal e da dominação eclesial: “O principal objetivo da cidade medieval era o de garantir a liberdade, a autoadministração e a paz, e sua principal base, o trabalho” (KROPOTKIN, 2009, p. 142). Não apenas o espaço físico e o desenho urbano [3], como as instituições sociais criadas nestas cidades foram para ele resultados desta luta. A tese das cidades medievais como berço da democracia ocidental só veio a ser retomada – com as nuances hermenêuticas e idiossincráticas peculiares a cada autor – no início do século XX por Max Weber (2002, pp. 955-975) e Henri Pirenne (1927, 1969).
O final deste período de lutas libertárias teria sido determinado por um conjunto de fatores, também em influência recíproca, verificados por Kropotkin entre os séculos XIV e XVI. A partir da iniciativa de senhores feudais que, tendo acumulado mais riquezas que seus circunvizinhos, escolhiam como sede de seu domínio “um grupo de aldeias bem situadas e ainda sem a experiência da vida municipal livre” (KROPOTKIN, 2009, p. 168), surgiram as cidades nobres fortificadas, imitações tortas das cidades livres, às quais estes senhores feudais atraíam companheiros de armas (por distribuição de aldeias), mercadores (por privilégios ao comércio), juristas versados no direito romano e bispos. Estas cidades nobres, em constante conflito com as cidades livres, foram o embrião do Estado absolutista (idem, p. 169).
Soma-se a este fator a mudança da tática política da Igreja: ao invés da recalcitrante tentativa de criação de uma teocracia unificada, “bispos mais inteligentes e ambiciosos passaram a apoiar quem consideravam capazes de reconstituir o poder dos reis de Israel ou dos imperadores de Constantinopla” (idem, p. 169), espraiando-se assim entre os nobres como conselheiros, jurisconsultos e diplomatas.
Os camponeses ainda sob o jugo feudal, ao verem a incapacidade dos habitantes dos burgos para pôr fim às guerras entre cavaleiros, afiançavam sua liberdade agora àqueles nobres mais poderosos (idem, p. 169), cujas famílias – a família Kropotkin inclusive – no futuro seriam as mais poderosas dinastias absolutistas da Europa.
Havia também um fator interno, as “divisões que haviam surgido dentro das próprias cidades” (idem, p. 169): as famílias dos fundadores da cidade disputavam privilégios de comércio com as famílias de habitantes mais recentes; os citadinos, ou burgueses, não faziam questão de proteger as aldeias dos arredores, formadas por camponeses, a quem deixavam frequentemente sob o jugo de senhores feudais; mas para Kropotkin “o erro maior e mais fatal da maioria das cidades foi o de basear sua riqueza no comércio e na indústria, em detrimento da agricultura” (idem, p. 169), o que além de dificultar a integração com as aldeias circunvizinhas, fomentou o colonialismo e, como consequência, guerras coloniais consumidoras das riquezas citadinas [4].
Florença no Renascimento
Florença no Renascimento
Ao contrário do que se possa imaginar à primeira leitura, o retorno de Kropotkin às cidades medievais não era uma utopia regressiva, uma idealização do passado proposta como horizonte político, mas sim uma crítica historicista às utopias socialistas do século XIX: “não só as aspirações de nossos radicais modernos já eram realidade na Idade Média, assim como muito do que se chama hoje de utopia era comum naquela época” (KROPOTKIN, 2009, p. 157; HORNER, 1989, p. 142).
1.3 As cidades como palco privilegiado da luta de classes na Europa
A tese geográfico-política kropotkiniana, entretanto, não se encerra aí. As cidades europeias teriam sido palco desde o século XIV de uma luta encarniçada do “povo” contra os burgueses, senhores feudais, aristocratas e reis absolutistas pela defesa de suas liberdades e pelo uso comum da terra. Toda a história das revoluções europeias, para Kropotkin, explica-se por esta chave. A análise da Revolução Francesa feita por Kropotkin é exemplar neste sentido.
Para Kropotkin, a Revolução Francesa foi impulsionada não apenas pelos panfletos iluministas, mas pela decidida ação popular de libertação de obrigações feudais e de retomada de terras das mãos de senhores laicos e religiosos. Desabrochavam no seio das massas ideias “a respeito da descentralização política, do papel preponderante que o povo queria dar às suas municipalidades, às suas seções nas grandes cidades, e às assembleias de aldeia” (KROPOTKIN, 1955, vol. 1, p. 23). Ou ainda: “a revolta dos camponeses para a abolição dos direitos feudais e a reconquista das terras comunais tiradas às comunas aldeãs desde o século XVII pelos senhores laicos e eclesiásticos – eis a própria essência, a base da grande Revolução” (idem, p. 114). Ou então:
Em França, o movimento não foi somente um levante para conquistar a liberdade religiosaou apenas a liberdade comercial e industrial para o indivíduo, ou ainda para constituir a autonomia municipal nas mãos de alguns burgueses. Foi, sobretudo, uma revolta dos camponeses: um movimento do povo para reentrar na posse da terra e a libertar das obrigações feudais que sobre ela pesavam; e além de haver nisso um poderoso elemento individualista – o desejo de possuir a terra individualmente – havia também o elementocomunista: o direito de toda nação à terra – direito que veremos altamente proclamado pelos pobres em 1793. (idem, pp. 116-117)
Tomada da Bastilha
Tomada da Bastilha
A luta de classes eclodiu também nas cidades. Na França do século XVIII, a autoridade real demorara duzentos anos para construir uma estrutura institucional capaz de submeter a seu jugo as cidades anteriormente livres; tais instituições – conselhos municipais vitalícios, direitos feudais, síndicos, almotacéis, direitos eclesiais de intervenção nas instituições municipais, isenções tributárias a membros da Igreja Católica e aristocratas etc. – encontravam-se em franca decrepitude às vésperas da Revolução Francesa (idem, pp. 118-120). Assim que a notícia da queda da Bastilha circulou pela província, o povo sublevou-se, apoderando-se dos Paços dos Conselhos e elegendo “uma nova municipalidade”; esta foi a base da revolução comunalista posteriormente sancionada pela Assembleia Constituinte em 1789 e 1790 (idem, p. 121). O “povo”, territorializado a partir dos distritos (arrondissements) de Paris e de outras cidades grandes, “fez a revolução nas localidades, estabelece revolucionariamente uma nova administração municipal, distingue entre os impostos que aceita e os que recusa pagar, e dita o modo de repartição igualitária daqueles que pagaria ao Estado ou à Comuna” (idem, p. 130).
Daí por diante, estabelecido o pano de fundo, a densa análise de Kropotkin, baseada em rigorosa pesquisa documental e arquivística [5], segue a mesma tônica. A Revolução Francesa é analisada em termos territoriais, e especificamente em sua expressão urbana. A luta dos habitantes das cidades contra as instituições feudais ressurgia, desta vez inaugurando na prática ocomunismo.
1.4 As cidades nos processos revolucionários
Mas é na passagem da sociedade capitalista para a sociedade anarquista – ou seja, durante a revolução – que Kropotkin apresenta vislumbres interessantes. Para ele, “a revolução social deve ser feita pela libertação das comunas, e (…) apenas as comunas, absolutamente independentes, libertas da tutela do Estado (…) poderão nos dar o meio necessário à revolução e o meio de realizá-la (…)” (KROPOTKIN, 2005a, p. 91). Pontuou, na esteira de suas análises histórico-geográficas posteriores ao período medieval, que a revolução das comunas não se tratava de simples retorno à comuna medieval, mas sim da construção de uma nova comuna que, devido à ciência e à tecnologia de então, seria “um fato absolutamente novo, situado em novas condições e que, sem dúvida, traria consequências totalmente diferentes” (idem, p. 91), e que “deve destruir o Estado e substituí-lo pela federação” (idem, p. 93). Neste processo, Kropotkin mostra atenção para as relações “cidade-província”, para que as cidades não fiquem desabastecidas (KROPOTKIN, 2011, p. 53). Tal como se verá adiante e com mais detalhe sobre Élisée Reclus, Kropotkin já intuía entre 1880 e 1882 aquilo que só na década de 1930 veio a ser chamado de rede urbana, dando-lhe o nome de federação de comunas e projetando-a no futuro a partir de tendências do presente:
Graças à infinita variedade das necessidades da indústria e do comércio, todos os lugares habitados já possuem vários centros aos quais se ligam, e, à medida que suas necessidades desenvolverem-se, ligar-se-ão a novos centros, que poderão prover às novas necessidades. (…) A comuna sentirá, portanto, necessidade de estabelecer outros contratos de aliança, entrar para outra federação. Membro de um grupo para aquisição de gêneros alimentícios, a comuna deverá tornar-se membro de um segundo grupo para obter outros objetos que lhe serão necessários (…). Tomai um atlas econômico de qualquer país e vereis que não existem fronteiras econômicas; as zonas de produção e de troca de diversos produtos penetram-se mutuamente, confundem-se, superpõem-se. Do mesmo modo, as federações de comunas, se seguissem seu livre desenvolvimento, viriam rápido confundir-se, cruzar-se, superpor-se e formar, assim, uma rede de maneira diversamente compacta, “una e indivisível”, daqueles agrupamentos estatistas, que são apenas justapostos como as varas em feixe em torno da machadinha do lictor. (…) [A] íntima ligação já existe entre as diversas localidades, graças aos centros de gravitação industrial e comercial, graças a um grande número destes centros, graças às incessantes relações (KROPOTKIN, 2005a, pp. 97-98).
A este nível territorial da federação de comunas soma-se outro, ligado aos interesses dos indivíduos, apto a formar “uma comuna de interesses cujos membros estão disseminados em mil cidades e vilarejos” (KROPOTKIN, 2005a, p. 99); trata-se das associações, cooperativas e todas as outras formas de sociedades livremente constituídas para a atividade humana – ou seja, aquilo que, usando um vocabulário contemporâneo, se chamaria sem equívoco de sociedade civil - verdadeira “tendência, o traço distintivo da segunda metade do século XIX” (idem, ibidem) que ocupava “a cada dia novos campos de ação, até aqueles que, outrora, eram considerados como uma atribuição especial do Estado” (idem, ibidem). A convergência entre ascomunas territoriais e as comunas de interesse formava o solo onde a propaganda feita pelas minorias revolucionárias, ao romper com preconceitos políticos arraigados no seio do povo, germinaria em ações revolucionárias cujos fins últimos são a abolição do Estado, dos privilégios e da exploração (KROPOTKIN, 2005 e, 2005f, 2005g).
Casas proletárias na Londres do século XIX
Casas proletárias na Londres do século XIX
E a questão urbana, mais especificamente a questão da moradia, é um dos pontos, para Kropotkin, por onde pode-se começar a ação revolucionária. Plenamente consciente dos mecanismos de formação da renda fundiária urbana, Kropotkin deslegitimou-a, pois não somente as vantagens locacionais capazes de valorizar imóveis seriam resultado pura e simplesmente de um trabalho coletivo a que o proprietário do imóvel não deu causa e do qual se beneficia, como o próprio imóvel seria resultado de trabalho alheio indevidamente apropriado:
Finalmente – e é aqui sobretudo que a enormidade salta aos olhos – a casa deve o seu valor atual ao rendimento que o proprietário puder tirar dela. Ora, esse rendimento será devido à circunstância de a propriedade estar edificada em uma cidade calçada, iluminada a gás, em comunicação regular com outras cidades e reunindo no deu seio estabelecimentos de indústria, de comércio, de ciência, de arte; ao fato de esta cidade ser ornada de pontes, de cais, de monumentos, de arquitetura, oferecendo aos habitantes muitos confortos e muitos agrados desconhecidos nas aldeias; ao fato de que 20, 30 gerações têm trabalhado para a tornar habitável, saneá-la e embelezá-la.
O valor de uma casa em certos bairros de Paris é 1.000.000, não que nas suas paredes haja 1.000.000 em trabalho, mas porque está em Paris; porque desde séculos, os operários, os artistas, os pensadores, os sábios e os literatos têm contribuído para fazer Paris o que ela é hoje; um centro industrial, comercial, político, artístico e científico; porque tem um passado; porque as suas ruas são conhecidas graças à literatura, na província como no estrangeiro; porque é o produto de um trabalho de 18 séculos, de 50 gerações, de toda a nação francesa.
Quem, pois, tem o direito de se apropriar da mais ínfima parcela desse terreno ou da última das construções, sem cometer uma clamorosa injustiça?
Quem tem o direito de vender, seja a quem for, a menor parcela do patrimônio comum? (KROPOTKIN, 2011, pp 59-60)
Casas proletárias em Paris, 1912
Casas proletárias em Paris, 1912
A solução deste problema, para Kropotkin, é oalojamento gratuito, como proposta pós-revolucionária, e a expropriação das casas, como ação revolucionária imediata. Na verdade, Kropotkin não fez nada além de sistematizar e discutir a prática, já existente no século XIX:
Repugna-nos traçar nos seus menores detalhes planos de expropriação. […] Assim, esboçando o método segundo o qual a expropriação e a repartição das riquezas expropriadas “poderiam” fazer-se sem a intervenção do governo, não queremos senão responder aos que declaram a coisa impossível. […] O que somente nos importa é demonstrar que a expropriação “pode” fazer-se pela iniciativa popular e “não pode” fazer-se de outro modo.
É de prever que, desde os primeiros atos de expropriação, surgirão no bairro, na rua ou no agregado de casas, grupos de cidadãos de boa vontade, que virão oferecer os seus serviços para se informarem do número de apartamentos vazios, dos apartamentos atulhados de famílias numerosas, dos alojamentos insalubres e das casas que, demasiado espaçosas para os seus ocupantes, poderiam ser ocupadas por aqueles que não têm ar em seus casebres. Em alguns dias, esses voluntários espalharão pela rua, pelo bairro, listas completas de todos os apartamentos, salubres e insalubres, estreitos e largos, alojamentos infectos e moradias suntuosas.
Comunicarão livremente entre si as suas listas e em poucos dias terão estatísticas completas. […]
Então, sem esperar coisa alguma de ninguém, esses cidadãos irão provavelmente encontrar os seus camaradas que habitam espeluncas e lhes dirão muito simplesmente: “Desta vez, camaradas, é a Revolução a valer. Venham esta tarde a tal lugar. Todo o bairro lá estará, repartiremos os apartamentos de cinco peças que estão disponíveis. E logo que estiverdes “em casa”, será negócio feito. O povo armado responderá a quem quiser desalojar-nos. (KROPOTKIN, 2011, pp. 61-62)
De um só golpe, Kropotkin antecipou em quase cem anos – o texto é de 1892 – conceitos criados no contexto do movimento de reforma urbana, como o défice habitacional quantitativo e qualitativo, a retenção especulativa de imóveis, a discussão sobre a destinação dos imóveis vazios, a ocupação de imóveis cujos proprietários não lhes dão função social e o método de ação dos movimentos de luta por moradia. Não estamos tão longe dele quanto se poderia supor. Kropotkin influenciou diretamente, por exemplo, a campanha de ocupação de bases militares para moradia na Inglaterra, em 1946, e as ideias de John Turner sobre a autoconstrução em Lima (Peru) (WARD, 1996, pp. 67-73).
1.5 Um balanço
Como se vê, o pensamento político de Kropotkin não lida com conceitos e categorias abstratas ou idealizadas; enraíza-os num meio geográfico, territorializa-os. A relação homem-meio, sociedade-natureza, é vista por Kropotkin como um todo unitário, pleno de relações biunívocas e complexas.
O espaço, em Kropotkin, é produto também do desenvolvimento histórico, e a História se desenvolve no espaço. O espaço urbano do passado e do porvir – como qualquer outro espaço – é, também, fruto de lutas sociais, em especial quando as cidades são o palco principal das lutas pela liberdade.
Por isso, a questão urbana, em Kropotkin, pode ser vista como o conjunto dos fatores que obstaculizam o pleno desenvolvimento dos indivíduos e sua livre organização nas cidades, fatores estes que variam em cada momento histórico; o conhecimento destes fatores só pode se dar através da pesquisa histórica da produção e do uso do espaço de cada cidade e das lutas em torno desta produção e deste uso, na tentativa de produzir sínteses orientadoras da ação política.

NOTAS

[1] Não por acaso Patrick Geddes, um dos fundadores do planejamento regional e urbano modernos, foi amigo e discípulo dos dois (DUNBAR, 1989, pp. 89-90; HALL, 2007, pp. 161-170).
[2] Lewis Mumford considerava Piotr Kropotkin “inteligência sociológica e econômica de primeira ordem, baseada na competência especializada […] como geógrafo, e na sua generosa paixão social como líder do anarquismo comunista” (MUMFORD, 1998, p. 658). Fez comentários entusiásticos a dois livros de Piotr Kropotkin em sua obra A cidade na história: sobre Campos, fábricas e oficinas, disse ser “recomendado especialmente a todos os que se interessam em planejar para áreas não-desenvolvidas” (idem, ibidem); sobre O apoio mútuo, disse ser “obra pioneira sobre a simbiose na sociologia; uma das primeiras tentativas para reformar a unilateral ênfase darwiniana nos aspectos mais predatórios da vida. Note-se o capítulo sobre Ajuda Mútua na Cidade Medieval” (idem, ibidem).
[3] “Geralmente a cidade era dividida em quatro partes, ou em cinco a sete setores que se irradiavam de um centro, e cada um deles correspondia mais ou menos a um certo comércio ou ofício que nele prevalecia, mas continha habitantes de diferentes posições sociais e ocupações – nobres, comerciantes, artesãos ou mesmo semisservos. Cada setor ou parte constituía um aglomerado bem independente. […] Portanto, a cidade medieval é uma dupla federação: de todos os domicílios unidos em pequenas associações territoriais – a rua, a paróquia, o setor – e de indivíduos ligados por juramento em corporações de ofício. A primeira foi resultante da origem na comunidade aldeã e a segunda, uma ramificação subsequente gerada por novas condições” (KROPOTKIN, 2009, p. 142).
[4] “Colônias foram fundadas pelos italianos no sudeste, pelas cidades alemãs no leste, pelas eslavas no extremo nordeste. Passaram a existir exércitos mercenários para as guerras coloniais, e logo também para a defesa local” (KROPOTKIN, 2009, p. 170).
[5] Num artigo escrito entre 1880 e 1882, Kropotkin explicitou o método que resultou na obra A grande revolução: “Quanto às insurreições, que precederam a revolução e sucederam-se durante o primeiro ano, o pouco que posso dizer disso, neste espaço restrito, é o resultado de um trabalho de conjunto, que realizei em 1877 e 1878, no Museu Britânico e na Biblioteca Nacional [da França], trabalho que ainda não terminei, e no qual me propunha expor as origens da revolução e de outros movimentos na Europa. Aqueles que quiserem lançar-se neste estudo deverão consultar (além das obras conhecidas […]) as memórias e as histórias locais […]. Entretanto, não devem contar com o fato de poder reconstituir, só com estes documentos, uma história completa das insurreições, que precederam a revolução. Para fazê-lo, só há um meio: dirigir-se aos arquivos, onde, apesar da destruição dos documentos feudais, ordenada pela Convenção, acabar-se-á, com certeza, por encontrar fatos muito importantes” (KROPOTKIN, 2005f, nota 27).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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