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quarta-feira, 19 de março de 2014

Crimeia: anexação revela impotência ocidental, diz professor

Crimeia: anexação revela impotência ocidental, diz professor



Entenda porque a reintegração da Crimeia é tão importante para a Rússia, mas, ao mesmo tempo, tão "cara" a todos


Nas últimas semanas, o mundo inteiro voltou os olhos para a grave crise política e econômica na Ucrânia e para a ânsia de reintegração da Crimeia à Rússia. Até então, poucos já haviam ouvido falar da república autônoma ucraniana situada ao lado do Mar Negro, muito menos sobre seu passado, durante o qual foi alvo de grandes disputas.
No último domingo, um referendo - considerado ilegal por Kiev e pelos principais líderes ocidentais - foi realizado e a maioria maciça da população da península decidiu por se unir à Rússia. Logo em seguida, na terça-feira, o presidente Vladimir Putin e dois líderes da Crimeia assinaram um tratado para tornar oficialmente a península ucraniana parte da Rússia.

Vladimir Putin em discurso no Kremlin, nesta terça-feira, 18 Foto: AFP
Vladimir Putin em discurso no Kremlin, nesta terça-feira, 18
Foto: AFP
















Diversas questões foram levantadas após os recentes acontecimentos: Por que a Crimeia realizou um referendo? De onde vem esse desejo de anexação à Rússia? O que a Ucrânia tem a perder e a Rússia a ganhar com essa anexação? Aliás, será que o país de Vladimir Putin só tem mesmo a ganhar com essa integração?
 A Crimeia foi ‘dada de presente’ à Ucrânia (então República Socialista Soviética da Ucrânia) pela Rússia (então República Socialista Federada Soviética) em 1954, em comemoração aos 300 anos de amizade entre os dois países. Com o colapso da União Soviética, a Crimeia tornou-se parte da Ucrânia, contra a vontade da população (de maioria russa) que ficou bem ressentida com essa integração. Daí vem o enorme anseio de grande parte da população crimeana por voltar a fazer parte da Rússia.
Isso explica porque quase 97% do povo crimeano votou a favor da anexação da região à Rússia, durante o referendo realizado em 16 de março. “Os russos se aproveitaram da confusão política em Kiev e do vácuo de poder na Ucrânia para fazer valer uma antiga vontade geopolítica”, explica o cientista político e professor da Universidade de Columbia, Marcos Troyjo.
Realizar o sonho de “integrar uma Rússia imperial, uma Grande Rússia” parecia muito melhor do que se tornar dona do próprio nariz, por isso um número ínfimo votou na outra opção proposta pelo referendo, a de total independência da península.
Motivos econômicos também se escondem por trás de todo esse nacionalismo russo. “O PIB (Produto Interno Bruto) per capita da Rússia é quase três vezes maior do que o da Ucrânia”, ainda que o segundo país seja “uma das maiores potências agrícolas do mundo e possa, sem dúvida, se tornar um país próspero e harmonioso”, diz Troyjo.
Quem ganha e quem perde com a anexação da Crimeia à Rússia?
Surpreendentemente, a Ucrânia não é a única que sai em desvantagem nessa disputa.  A Rússia e seus aliados também têm muito a perder. Além do isolamento político, a Rússia experimentará a deterioração de seus status como economia emergente, segundo o professor.

“O ‘custo Rússia’ refletirá uma imensa combinação de desconfiança e risco político, o volume de IEDS (investimentos estrangeiros diretos) de que a Rússia tanto depende, certamente cairá e o impacto disso na bolsa de valores russa será marcante”, prevê Troyjo.
A anexação da Crimeia também anula qualquer esperança de estabelecimento de novas alianças, principalmente com o Ocidente - que tem condenado veementemente a postura russa, a realização do referendo, bem como a sua ilegitimidade. Em outras palavras, quem apoiar a Rússia deverá estar preparado para aguentar as consequências. “Os que desejarem caminhar de mãos dadas com a Rússia sofrerão os efeitos colaterais da lógica do "diga-me com quem andas e te direi quem és", exalta o cientista político.
Por que a Crimeia é alvo de tanta disputa?
A resposta é a sua importância geopolítica. O professor Troyjo lembra que, há exatos 110 anos, o geógrafo britânico, H.J. Mackinder, apresentava à Royal Geographical Society, em Londres, um artigo acadêmico intitulado "O Pivô Geográfico da História", cuja teoria veio a ser resumida em uma lógica um tanto assustadora, como ele mesmo reconhece. “Quem domina a Europa Oriental comanda o Heartland (coração da terra); quem domina o Heartlandcomanda a Ilha-Mundo; quem domina a Ilha-Mundo controla o mundo". Esse pensamento, como pode se ver, não apenas se mostra bem pertinente à questão atual, mas também sugere que o objetivo da Rússia vai muito além de dominar a península crimeana, ainda que Vladimir Putin negue que tenha planos de dividir a Ucrânia.

O acesso naval às aguas quentes do Mar Negro também faz parte desse grande quebra-cabeça. De acordo com Troyjo, ele é “essencial à ideia (russa) de segurança nacional e de projeção de poder, o que faz do litoral da Crimeia peça-chave na geoestratégia formulada no Kremlin”.
Resumindo: “em termos geopolíticos, a eventual reintegração da Crimeia é o evento mais importante para o país no período pós-URSS”, conclui Troyjo.
O Ocidente impotente
Na visão do cientista político Marcos Troyjo, a ONU parece estar com as mãos completamente atadas para adotar resoluções e tentar remediar a crise, principalmente depois que a Rússia usou seu poder de veto para frear uma proposta de resolução colocada pelos Estados Unidos e respaldada por todos os membros da União Europeia, que defendia a integridade territorial da Ucrânia e não reconhecia a legalidade do referendo na Crimeia.

“A Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) também se mostra impotente, pois se vê num jogo de xadrez em que seu oponente conta com denso poderio nuclear, dessa forma, não pode resolver a parada apenas com forças convencionais sem temer que o conflito escale até o nível nuclear”, esclarece o professor.
Na opinião de Troyjo, a crise ucraniana também tem impactos nos planos americanos de “implementar uma política externa e de defesa mais retraída”. “Crises como a da Ucrânia exigem um tipo de diplomacia presencial que é muito cara”, completa.
A crise ucraniana também sai cara aos membros do bloco europeu, que ainda se encontra em meio a uma frágil recuperação econômica. Mesmo com toda essa vulnerabilidade, "a União Europeia é forçada a se mostrar presente e interessada nos países do Leste”, ressalta Troyjo.
Do jeito que as coisas caminham, a Ucrânia, “hoje assombrada pelo fantasma de um desmembramento maior do que apenas o da própria Crimeia”, deverá buscar cada vez mais uma aproximação com o Ocidente, e sua integração ao bloco europeu, estopim de toda a crise ucraniana e da revolta crimeana. Um conflito militar com a Rússia é improvável, mesmo diante da atual conjuntura: “A Ucrânia está politicamente estilhaçada e financeiramente quebrada. Sem condição alguma de travar um conflito armado de grande fôlego”, afirma o professor.
O futuro da península, agora integrada à Rússia, assim como o das minorias ucranianas e crimeanas, insatisfeitas com o referendo separatista de domingo, é uma incógnita.  A expectativa da população é que a entrada na Rússia inunde suas praias de milhões de turistas e os negócios de bilhões de rublos, nova moeda nacional.
Se isso irá mesmo acontecer, só o tempo dirá.

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