Argentina começa a julgar responsáveis civis de crimes da ditadura
A 38 anos do golpe de Estado de 1976 na Argentina os julgamentos de violações de direitos humanos entraram em uma nova e definitiva fase histórica.
Marcelo Justo
A 38 anos do golpe de Estado de 1976 na Argentina os julgamentos de violações de direitos humanos entraram em uma nova e definitiva fase histórica: o processo envolvendo os responsáveis civis dos crimes de lesa humanidade. “Os atores civis dessa cumplicidade criminal são diversos: funcionários dos poderes Executivo e Judiciário, profissionais da Saúde, pessoal civil de inteligência, integrantes da Igreja Católica, empresários e apropriadores de menores”, explica à Carta Maior Lorena Balardini, coordenadora da área de investigação do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), dirigido por Horacio Verbitsky.
O caminho da justiça nestas três décadas de democracia tem sido sinuoso. Com o fim da ditadura em 1983, o então presidente Raúl Alfonsín levou a julgamento as cúpulas militares, mas em 1987, ante as pressões golpistas, terminou promulgando duas leis de impunidade que protegiam o resto das forças armadas. Seu sucessor, o peronista tornado neoliberal Carlos Menem, indultou os chefes militares em 1990 consagrando uma impunidade praticamente absoluta para as violações de direitos humanos.
Este caminho foi desfeito a partir de 2003 com a posse de Néstor Kirchner e os dois governos posteriores de sua esposa Cristina Fernández. O primeiro passo foi revogar as leis de impunidade. Desde então, ocorreram 108 julgamentos, 520 condenações e 1.135 processados.
A curva ascendente é clara: entre 1983 e 2003 só havia 15 processos judiciais. Levando-se em conta que, sob a ditadura, desapareceram cerca de 30 mil pessoas e existiram mais de 300 campos de concentração em todo o país, se vê que não havia se avançado muito. Mas a mudança não foi só quantitativa: houve também uma nova perspectiva.
Se antes se considerava que o golpe de estado e as violações de direitos humanos eram uma questão puramente militar, com o kirchnerismo passou a se falar de golpe civil-militar para expor a trama de cumplicidades sociais e de setores beneficiados com a derrubada do governo de Isabel Martínez de Perón.
Esta rede de interesses agregou um novo elemento penal: a cumplicidade civil em casos concretos de desaparecimento. Até hoje há 297 civis investigados, cerca de 13% dos 2239 acusados. Segundo os dados do CELS, os funcionários judiciais e o pessoal civil de inteligência constituem 24% cada um, os apropriadores de crianças 13% (ainda há 400 netos apropriados não recuperados), os empresários 5% e os sacerdotes cerca de 3%. “Resta muito para investigar. Em 2010, foram tornadas públicas listas com milhares de nomes de civis vinculados à inteligência sem que ainda se tenha analisado este material em detalhe. Só um dos sete sacerdotes implicados está condenado”, assinala Lorena Balardini.
Neste conjunto de casos destacam-se dois grupos de ações. No campo econômico, os processos contra a multinacional Ford, a siderúrgica Acindar e a automotriz Mercedes Benz estão revelando a participação dos executivos dessas empresas na produção de listas de trabalhadores e delegados sindicais, suspeitos e indesejáveis, que logo foram desaparecidos pela ditadura.
A classe operária representou 30,2% dos desaparecidos: foi o setor da sociedade mais golpeado pela política da ditadura. Em alguns casos, se instalaram centros clandestinos de detenção nas mesmas fábricas. “Os processos se encontram em diferentes estágios. Em alguns, como no caso da Ford, estão confirmados os indiciamentos, mas em outros, como no caso da Acindar, estamos na etapa investigativa. Só um caso foi levado a julgamento por enquanto, o da transportadora “La veloz del Norte”. Mas acreditamos que 2014 será um ano muito importante”, explica Balardini.
No terreno da cumplicidade midiática, na semana passada o diretor do diário La Nueva Provincia, de Bahía Blanca, Vicente Massot, teve que depor na Justiça para explicar o desaparecimento de trabalhadores gráficos da empresa. O caso é emblemático pela maneira pela qual marca a continuidade passado-presente de alguns protagonistas. Massot foi vice-ministro da Defesa do governo de Carlos Menem, é colunista do jornal La Nación, ferrenho opositor do kirchnerismo, e habitual comentarista dos programas televisivos mais opositores.
O caso da empresa Papel Prensa também é paradigmático. Em 1976, este insumo básico estava nas mãos do Grupo Graiver. A pressão da Junta Militar e o sequestro e tortura de alguns membros do Grupo terminou com a cessão da Papel Prensa para uma empresa controlada pelos jornais Clarín e La Nación. Um juiz federal, dois promotores e uma Câmara de Justiça determinaram que devia ser investigado se existiram “ações ilegais diversas e articuladas para obter a transferência compulsiva de ações da empresa Papel Prensa”.
Segundo o secretário de Direitos Humanos da Nação, Martín Fresneda, o caso foi deixado de lado pela justiça sem que se ouvisse nenhum dos suspeitos envolvidos. “Este é um território muito novo que exige continuamente novos olhares. Pode haver casos de magistrados que retardem certos processos, mas a justiça também tem seus tempos próprios que incluem o direito à defesa. Estamos falando de casos complexos que requerem investigações de fatos ocorridos em muitas situações há mais de 40 anos”, disse Lorena Balardini à Carta Maior.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
Créditos da foto: Arquivo
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