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segunda-feira, 31 de março de 2014

"50 ANOS DO GOLPE" - Há 50 anos do terror - Foi o golpe civil-militar de 1964 que deu inicio à implantação de ditaduras que constituiriam um círculo de terror como nunca a América Latina conhecera.

Há 50 anos do terror



Foi o golpe civil-militar de 1964 que deu inicio à implantação de ditaduras que constituiriam um círculo de terror como nunca a América Latina conhecera.


por Emir Sader em 27/03/2014

Emir Sader

O golpe civil-militar de 1964 no Brasil deu inicio à implantação de ditaduras que constituiriam um círculo de terror como nunca a América Latina conhecera. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, com o inicio da Guerra Fria, os Estados Unidos promoveram no continente a Doutrina de Segurança Nacional, sua ideologia da luta "contra a subversão" que desembocaria na instauração dessas regimes.
A Doutrina, elaborada pelo Departamento de Estado dos EUA e propagada pela Escola das Américas e por cursos ministrados diretamente por oficiais norte-americanos, propugnava a militarização dos Estados, que se tornariam Estados-maiores, conduzidos pela oficialidade das forças armadas latino-americanas, no combate a todas as forças que a Doutrina considerasse que colocavam em risco a "democracia" no continente.
A concepção totalitária da Doutrina se materializou, na época da ditadura civil-militar brasileira, no slogan: "Ame-o ou deixe-o", isto é, ou te identificas com o regime ou deves ir embora do país. É coerente com a concepção ideológica segundo a qual toda forma de conflito era um vírus externo, inoculado de fora para dentro no corpo nacional, para sabotar, subverter seu bom funcionamento.

Bem ao estilo das concepções positivistas importadas da biologia, segundo as quais o bom funcionamento da sociedade se assemelharia ao funcionamento de um corpo saudável fisicamente, em que cada célula funciona em função da totalidade. Qualquer parte do corpo que deixa de funcionar assim, representa uma doença, a introdução de um vírus externo, que tem que ser extirpado.
Os regimes militares do Cone Sul agiram dessa forma em relação a qualquer forma de expressão que lhes parecesse sabotar o bom funcionamento do corpo social. Era uma concepção totalmente intolerante em relação às diversidades, às divergências, aos conflitos sociais. A eliminação física dos opositores ou dos considerados opositores tinha essa origem, de "depuração democrática" de elementos considerados subversivos.
Quando se instaurou a primeira ditadura civil-militar, a brasileira, há 50 anos, se desenvolvia uma luta por modelos para um continente que via esgotar o impulso econômico das décadas anteriores. A Revolução Cubana radicalizou o horizonte de alternativas, ao colocar a possibilidade de ruptura da dominação norte-americana e do próprio capitalismo.
Os EUA tentaram forjar uma alternativa a Cuba com a chamada Aliança para o Progresso, que teve no governo do chileno democrata cristão Eduardo Frei seu exemplo mais importante, com a proposta de uma "revolução em liberdade". Sua reforma agrária fortaleceu os pequenos proprietários no campo, com objetivo de evitar vitórias dos novos movimentos guerrilheiros que se expandiam para a Venezuela, o Peru, a Guatemala, a Colômbia.
O golpe brasileiro seria modelar no sentido de que conseguiria derrotar de forma mais ou menos rápida a resistência armada. Inclusive porque foi um golpe prematuro, que pegou a um movimento popular brasileiro ainda em processo de constituição. Essa precocidade ajuda também a entender o motivo de seu sucesso econômico: pôde desfrutar ainda do final do longo ciclo expansivo do capitalismo no segundo pós-guerra, para canalizar grande quantidade de investimentos que permitiram a diversificação da dependência brasileira.
Mas o santo do chamado "milagre econômico" brasileiro foi a intervenção militar em todos os sindicatos e o arrocho salarial, os quais promoveram uma lua de mel entre o governo e as grandes empresas nacionais e estrangeiras, baseada na superexploração dos trabalhadores.

O sucesso da ditadura civil-militar no Brasil, com sua capacidade de impôr – baseada numa feroz repressão – a ordem e retomar a expansão econômica, fez dela referência para os outros regimes de terror que se implantariam em seguida na região. Foi o período mais terrível da historia desses países e de toda a história latino-americana. Tudo começou há 50 anos, com o golpe de primeiro de abril de 1964.

Seca histórica agrava disputa por água no oeste dos EUA

Seca histórica agrava disputa por água no oeste dos EUA

A seca de proporções históricas que vem castigando o oeste americano há três anos tem exacerbado um problema comum na região: os conflitos pelo controle da água.
Nos últimos meses, uma série de batalhas jurídicas vem chamando a atenção para a intensidade do problema. O Texas está processando o Novo México e o Colorado pelo uso das águas do Rio Grande, que passa pelos três Estados, em um caso que chegou à Suprema Corte (maior instância da Justiça dos EUA).
Em disputa semelhante, o Kansas acusa o Colorado e o Nebraska de desviar indevidamente as águas do Republican River. Nos Estados, dentro e fora dos tribunais, a briga pela água vem colocando município contra município, fazendeiros contra moradores urbanos, cidades contra ambientalistas.
“Sempre houve escassez de água no oeste americano, e sempre houve disputas. O que se vê agora, com esta seca, é o aumento da intensidade dessas disputas”, disse à BBC Brasil o advogado Stuart Somach, especialista em recursos naturais e direitos de uso da água.
Somach cita como exemplo a ação movida pelo Texas contra os Estados vizinhos.
“Essa disputa vinha se arrastando há pelo menos 10 anos, mas foi a seca que motivou a ação judicial”, afirma Somach, que representa o Estado do Texas no processo.
Califórnia – Na Califórnia, Estado mais castigado pela seca, o governador Jerry Brown pediu que os habitantes reduzam o uso da água em 20%, e alguma cidades já adotam o racionamento. Muitos moradores afirmam terem deixado de lavar os carros, molhar os jardins e até mesmo reduzido o número de banhos.
A crise vem gerando disputas curiosas no Estado. Produtores de maconha medicinal são acusados de colocar em risco a população de determinadas espécies de peixe, que habitam rios dos quais é retirado o grande volume de água usado nessas plantações.
No Vale Central, onde estão algumas das principais áreas agrícolas da Califórnia, fazendeiros que tentam cavar novos poços enfrentam a oposição de pescadores e ambientalistas, temerosos de que a ação reduza ainda mais os níveis das águas.
Proibidos de usar águas de rios e riachos em determinadas regiões, agricultores que não têm dinheiro para pagar pela irrigação de suas lavouras estão reduzindo a área plantada, e criadores de gado vêm se desfazendo de parte dos rebanhos, já que não têm como cultivar o pasto necessário para alimentar os animais.
Calcula-se que as dificuldades causadas pela seca no setor agropecuário irão resultar em um rombo de bilhões de dólares na economia da Califórnia, alta de preços para os consumidores e aumento na taxa de desemprego.
Incerteza – Os problemas se repetem em todo o oeste americano. No Texas, o Estado está impedindo que produtores de arroz usem determinadas reservas de água para irrigar as lavouras, com medo de que isso coloque em risco o abastecimento de cidades grandes, como Austin.
Ambientalistas e ativistas de Nevada e Utah tentam impedir na Justiça o envio para Las Vegas de água de um aquífero na divisa entre os dois Estados.
“A seca tem agravado todos esses conflitos antigos entre usuários de água”, disse Heather Cooley, diretora do programa de agua do Pacific Institute, um dos principais institutos de pesquisa sobre o tema do mundo, com sede na Califórnia.
“E é bom lembrar que ainda estamos em março (início da primavera no Hemisfério Norte). A intensidade e a magnitude da seca continuam incertas, ainda não sabemos quanto tempo vai durar ou quanta água estará disponível neste ano”, afirma.
Cooley observa que a região ainda está no que seria sua estação chuvosa. “Tivemos um pouco de chuva em fevereiro, mas os níveis continuam muito ruins, entre os piores da história da Califórnia”, diz.
Leis – Alguns criticam as leis que regulam os direitos sobre água na região, datadas do século 19, durante a corrida do ouro na Califórnia.
Com variações dependendo de Estado para Estado, os direitos sobre as águas costumam ser concedidos a quem primeiro os reivindicou. É possível vender esses direitos, o que sustenta um mercado de água muito dinâmico em Estados como Califórnia ou Colorado.
Somach costuma rebater as críticas sobre a legislação. “Por ser um sistema nascido da seca e da escassez de água, ele é muito eficaz nessas situações”, afirma.
“Na minha opinião, mudanças nessas regras desestabilizariam todo o sistema de direitos sobre a água, o que teria impacto negativo na economia e na base social desses Estados”, diz o advogado.
Sem previsão de chuvas fortes o suficiente para acabar com a seca, a expectativa é de que os conflitos se tornem ainda mais frequentes nos próximos meses.
“À medida que o verão se aproxima e as pessoas que não conseguem água sofrem prejuízos econômicos, vamos ver um maior número de ações judiciais”, prevê Somach.
“Já que não é possível fabricar água, serão ações por danos. Os prejudicados vão tentar substituir com dólares a água que não têm.”

Mapa inédito coloca o Brasil em 3º lugar em conflitos ambientais

Mapa inédito coloca o Brasil em 3º lugar em conflitos ambientais



Em um projeto inédito, a Universidade Autônoma de Barcelona mapeou conflitos ambientais em todo mundo. No mapa, o Brasil aparece em terceiro lugar (ao lado da Nigéria) em número de disputas, enquanto a mineradora brasileira Vale ocupa a quinta posição no ranking de empresas envolvidas nessas questões.
O mapa (Clique aqui), uma plataforma interativa, é o resultado do trabalho de uma equipe internacional de especialistas coordenados pelos pesquisadores do Instituto de Ciência e Tecnologia Ambiental da universidade espanhola.
Entre os 58 conflitos ambientais em curso no Brasil há disputas agrárias como o caso de Lábrea, cidade no Amazonas próxima à fronteira com o Acre e Rondônia, onde agricultores são vítimas da ameaça de madeireiros e grileiros.
Há ainda diversos conflitos indígenas, disputas por recursos hídricos e por reservas minerais.
No caso da Vale, 14 das 15 disputas em que a empresa está envolvida ocorrem na América Latina, especialmente no Brasil, mas há casos também na Colômbia, no Peru e no Chile. O mapa cita ainda um conflito entre a mineradora e agricultores em Moçambique.
Segundo o artigo do pesquisador da Fiocruz Marcelo Firpo Porto mostrado na seção sobre o Brasil, apesar de o país ter passado por um processo de industrialização e não ser mais exclusivamente agrário, seu modelo de exportação "reproduz o padrão da América Latina e continua concentrado na exploração dos recursos naturais, com commodities crescendo em importância em relação a produtos manufaturados nos últimos anos".
"Conflitos ambientais no Brasil que aparecem no mapa do EJOLT (Environmental Justice Organizations, Liabilities and Trade, um projeto europeu de organizações de justiça ambiental) refletem esse modelo de desenvolvimento adotado pelo governo brasileiro", afirma o pesquisador.
Porto afirma que vários conflitos estão associados à expansão da agricultura, mineração, hidroelétricas e exploração de petróleo em áreas de terras altas e no litoral - e destaca entre as áreas afetadas os territórios de comunidades tradicionais que, historicamente, viviam de forma sustentável.
"Essas populações continuam vivendo à margem do sistema político e sem políticas públicas que reconheçam e garantam sua subsistência e territórios. Conflitos de terras envolvem disputas entre setores econômicos e índios, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas (como o seringueiro assassinado Chico Mendes), pescadores artesanais e um grande número de comunidades rurais que tradicionalmente exploram coletivamente a terra e os recursos das florestas."
O pesquisador aponta que muitos conflitos também estão associados à construção de obras de infraestrutura e geração de energia, como estradas, ferrovias, oleodutos, complexos portuários, hidroelétricas e termelétricas, e até fazendas de energia eólica.
E na lista de conflitos ambientais no Brasil apontados no mapa do EJOLT estão empreedimentos como o gasoduto Urucu-Coari-Manaus, da Petrobras, o complexo petroquímico de Itaboraí, no Rio de Janeiro, a usina hidroelétrica de Aimorés, a exploração de petróleo e gás em Coari, no Amazonas, entre outros.
Classes média e alta
O mapa foi apresentado na quarta-feira em Bruxelas, pela Delegação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.
"O mapa mostra como os conflitos ecológicos estão aumentando em todo o mundo, devido a demanda por materiais e energia da população mundial de classe média e alta", afirmou Joan Martínez Alier, diretor do EJOLT.
"As comunidades mais impactadas por conflitos ecológicos são pobres, frequentemente indígenas e não têm poder político para ter acesso à justiça ambiental e aos sistemas de saúde", acrescentou.
O mapa permite que os usuários localizem e visualizem conflitos por tipo de material (minerais, hidrocarbonetos, água ou resíduos nucleares), por companhias envolvidas e por países.
Na América Latina o maior número de casos documentados pelo mapa estão na Colômbia, com 72 casos, Brasil, com 58, Equador, 48 conflitos ambientais, Argentina, 32, Peru, 31, e Chile com 30 casos.
A iniciativa, que contou com a participação de 23 universidades e organizações de justiça ambiental de 18 países, tem vários objetivos. Entre eles, tornar mais acessível a informação e dar mais visibilidade a estes problemas.
Os criadores do projeto esperam que novas organizações civis e especialistas contribuam para preencher os espaços ainda vazios no mapa com mais pontos de conflito e informações.
Por enquanto, apesar de os milhares de conflitos assinalados ainda despertarem pessimismo, os responsáveis pelo mapa apontam para sinais positivos.
"O mapa mostra tendências preocupantes como a impunidade de companhias que cometem crimes ambientais ou a perseguição dos defensores do meio ambiente, mas também inspira esperança", disse Leah Temper, coordenadora do projeto. "Entre as muitas histórias de destruição ambiental e repressão política, também há casos de vitórias na justiça ambiental."
Temper afirma que este é o caso em 17% dos conflitos analisados: ações foram vencidas na justiça, projetos foram cancelados e bens foram devolvidos para algumas comunidades.
Matéria originalmente publicada no portal da BBC Brasil

domingo, 30 de março de 2014

"50 ANOS DO GOLPE" - As filhas e os filhos das vítimas da ditadura militar no Brasil

As filhas e os filhos das vítimas da ditadura militar no Brasil



A clandestinidade salvou, talvez, milhares de filhas e filhos de vítimas da ditadura militar no Brasil de cair nas mãos de torturadores e da repressão.


Milton Pomar

Arquivo do SNI


Quando Carlos Alexandre Azevedo, filho de Dermi Azevedo e Darcy Andozia, suicidou-se em fevereiro de 2013, e sua trágica história foi amplamente divulgada, muita gente se espantou ao saber que no Brasil, na década de 1970, crianças foram levadas para os locais (DOPS, DOI-CODI etc.) onde seu pai ou sua mãe (ou os dois) estava(m) sendo torturado(s), para assistirem o sofrimento e servirem de pressão adicional – a ameaça de também serem torturadas desmontava de vez os presos, que acabavam falando o que os criminosos queriam saber.
  
Milhares de militantes políticos de esquerda, em março de 1964, tinham filhas e filhos ainda pequenos. Vários, dentre os mais conhecidos, tinham também netos e netas. Quando ocorreu o golpe militar, de 31 para 1º de abril, essas milhares de crianças  tornaram-se alvo da repressão, e ingressaram em um mundo novo, de medo, fuga e perseguições – cheio de segredos sussurrados, senhas, codinomes, “ponto”, “aparelho”, “queda” e outras variáveis importantes, que constituíam a terminologia da clandestinidade, espécie de universo paralelo ao qual a maioria desses militantes e suas famílias submeteram-se para poder continuar vivendo e atuando no país.



Pouco depois do golpe, meu pai e outros militantes foram presos em Iaçu, interior da Bahia, e levados para um quartel do Exército em Salvador, no bairro de Amaralina. Minha mãe conseguiu um habeas-corpus para ele, superando enormes dificuldades, e algum tempo depois nos reencontramos. Eu estava com cinco anos de idade, e havíamos regressado (minha mãe, meu irmão mais velho e eu) de Iaçu, na Bahia, para o Rio de Janeiro, pouco antes dos generais e coronéis derrubarem o presidente eleito João Goulart.


Vivemos daí em diante para lá e para cá, em casas de parentes e amigos, nunca muito tempo em lugar nenhum. Já havíamos passado pelo Rio, Minas, Bahia e São Paulo, quando, em 1966, fomos morar em Goiânia. Foi lá que fiquei sabendo por meus pais que teria um novo nome: Milton, bem mais adequado aos tempos de intensa perseguição que sofríamos, do que o meu nome original (Vladimir).
Mudaram nossos nomes e sobrenomes e locais de nascimento, e assim passei a ser natural de Goiânia, e, aos sete anos de idade, totalmente clandestino.



A clandestinidade salvou, talvez, milhares de filhas e filhos de vítimas da ditadura militar no Brasil. Quem já leu a respeito do que os militares argentinos fizeram durante a ditadura de 1976/82 com as crianças (inclusive centenas de bebês) e adolescentes, filhas e filhos de militantes políticos, presos, torturados, assassinados e/ou desaparecidos, pode estimar o que teria sido de nós, se não estivéssemos clandestinos.


Os militares argentinos tinham como lema matar os comunistas, seus parentes e amigos. 


(Ler sobre os feitos da repressão promovida pelas ditaduras militares no Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Perú, ... é traumatizante, tal a covardia e crueldade dos torturadores e assassinos – todos servidores públicos, com salários e previdência pagos pelo Estado – e a quantidade de casos de sofrimentos inacreditáveis de militantes políticos de esquerda.)


Quando meu pai foi preso pela segunda vez, em dezembro de 1976, meu avô Pedro Pomar foi assassinado, em episódio (conhecido como Massacre na Lapa) no qual morreu também Ângelo Arroyo, dirigente operário e líder da guerrilha do Araguaia. Durante os interrogatórios (e as torturas) a que meu pai foi submetido, uma das questões nas quais os militares insistiam era justamente onde nós (os filhos) estávamos.


Fiquei um ano sem vê-lo, e quando consegui visitá-lo, em dezembro de 1977, no presídio do Barro Branco, em São Paulo, onde ficavam presos os militantes políticos de esquerda julgados pela ditadura militar, eu estava às vésperas de cumprir serviço militar obrigatório. No início de janeiro de 1978, ingressei como recruta em um quartel do Exército, no qual permaneci (clandestino...) até o início de 1979.


Quando veio a Anistia, em 1979, algumas pessoas voltaram à identidade original, mas a maioria não acreditou que a ditadura acabara, e preferiu aguardar até considerar seguro sair da clandestinidade – eu inclusive, que defini como critério na época somente acreditar no fim da ditadura quando votasse para presidente da República, algo que demorou dez anos para acontecer. Em 1990, entrei com ação judicial para recuperar a minha identidade. Recebi a sentença favorável somente em 1993, e assim, 27 anos de clandestinidade depois, voltei a utilizar a minha certidão de nascimento verdadeira.


Mas muitos descendentes das milhares de vítimas da ditadura brasileira não conseguiram recuperar suas identidades; por receio, dificuldade de provar a clandestinidade, falta de recursos para a ação judicial, e até por não acreditarem que conseguiriam.


Todos(as) que sobrevivemos à ditadura militar de 1964/1985, militantes e descendentes, convivemos até hoje com os traumas adquiridos naquela época, independentemente de terem sofrido torturas físicas. Foram tantas as pessoas conhecidas atingidas, presas, torturadas, exiladas, assassinadas e desaparecidas, que a vida continuou, mas marcada pela ditadura militar. E a vida, naqueles longos 21 anos, foi uma tensão permanente. Viver sob terror de Estado, por tanto tempo, é algo realmente difícil de suportar e de descrever.


Adquire-se hábitos de segurança que o tempo não desfaz, de sempre olhar à sua volta, para avaliar quem está em qualquer ambiente, prestar atenção a todas as pessoas em qualquer ambiente, a prestar atenção, quando voltava para casa, se a luz da varanda estava acesa, ou em outro detalhe


 A propaganda permanente contra nós, estilo “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”, perturbava, não era fácil ser criança e sentir-se criminoso, portador de um segredo perigoso etc. Além dela, havia também a propaganda anti-comunista boçal, disseminada entre a população, que a repetia com freqüência, obrigando-nos a manter-se em alerta total, para não despertar suspeitas. Alguém que fosse chamado de “melancia” (vermelho por dentro...), em alguns ambientes, corria o risco de ser detido e torturado, até provar que não era “vermelho”.


O estresse resultante daquela situação opressiva, certamente contribuiu para adoecer muitas mães, filhos e filhas, não diretamente envolvidas, mas de fato na linha de frente, se fossem pegas sofreriam muito – como ocorreu com centenas delas.


Muitos desses filhos e filhas nasceram durante a ditadura. Já nasceram clandestinos, sem ao menos saber que seu pai e sua mãe levavam uma vida “diferente” da dos vizinhos, e que seus parentes tinham outras identidades. Muitos(as) não possuem amigos(as) daquela época, tal a frequência com que mudavam de casa e escola, e a impossibilidade de contar a verdade e fornecer o novo endereço a tais amigos(as) ou namoradas(os).


Durante o período em que a ditadura espalhava cartazes de “procurados”, com dezenas de fotos de militantes políticos que ela acusava de “terroristas”, o terror de muitas dessas crianças era encontrar ali a foto de seu pai, mãe, avô ou avó.


Há o trauma de dezembro, mês preferido pela repressão para atacar quem tentava visitar suas famílias: muitos militantes foram capturados assim. E naquela época, capturados significava presos, torturados, mortos, desaparecidos. Por isso, o Natal sempre nos deixa tristes, tanto tempo depois.


Essas questões voltaram agora com força, dada a proximidade dos 50 anos do golpe militar no Brasil. É emocionante ver nas redes sociais as fotos de muitas das vítimas da ditadura militar, algumas das quais conhecemos, nos anos 1960/70. Dói lembrar que há muitas vítimas que permanecem anônimas, ou das quais muito pouco se sabe. Pessoas corajosas, determinadas, generosas, que enfrentaram a ditadura militar como puderam, e por isso não estão aqui conosco, vivenciando o país muito melhor que nos legaram. Para pessoas como eles e elas, o poeta alemão Bertold Brecht  escreveu “Aos que virão depois de nós”, uma bela homenagem a quem tombou na luta por um mundo melhor.


Nós, os milhares de filhas, filhos, netos e netas desses(as) militantes, que sobrevivemos aos 21 anos de terror de Estado, e até hoje continuamos na batalha, apesar do sofrimento, dos traumas, e da saudade de nossos parentes, mortos e desaparecidos pela ditadura militar, não aceitamos a impunidade dos torturadores e assassinos.


A ditadura militar no Brasil foi cruel e covarde, como todas são, mas foi derrotada. E agora em 2014, coincidindo com os 50 anos do golpe militar, há de ser também a eleição do 4º mandato consecutivo das esquerdas na Presidência da República, e, por ironia da história, a reeleição de uma ex-presa política da ditadura, barbaramente torturada.


Adiante, que ainda há muito o que fazer para melhorarmos a vida do povo.



Créditos da foto: Arquivo do SNI


Argentina começa a julgar responsáveis civis de crimes da ditadura

Argentina começa a julgar responsáveis civis de crimes da ditadura



A 38 anos do golpe de Estado de 1976 na Argentina os julgamentos de violações de direitos humanos entraram em uma nova e definitiva fase histórica.



Marcelo Justo

Arquivo


A 38 anos do golpe de Estado de 1976 na Argentina os julgamentos de violações de direitos humanos entraram em uma nova e definitiva fase histórica: o processo envolvendo os responsáveis civis dos crimes de lesa humanidade. “Os atores civis dessa cumplicidade criminal são diversos: funcionários dos poderes Executivo e Judiciário, profissionais da Saúde, pessoal civil de inteligência, integrantes da Igreja Católica, empresários e apropriadores de menores”, explica à Carta Maior Lorena Balardini, coordenadora da área de investigação do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), dirigido por Horacio Verbitsky.


O caminho da justiça nestas três décadas de democracia tem sido sinuoso. Com o fim da ditadura em 1983, o então presidente Raúl Alfonsín levou a julgamento as cúpulas militares, mas em 1987, ante as pressões golpistas, terminou promulgando duas leis de impunidade que protegiam o resto das forças armadas. Seu sucessor, o peronista tornado neoliberal Carlos Menem, indultou os chefes militares em 1990 consagrando uma impunidade praticamente absoluta para as violações de direitos humanos.


Este caminho foi desfeito a partir de 2003 com a posse de Néstor Kirchner e os dois governos posteriores de sua esposa Cristina Fernández. O primeiro passo foi revogar as leis de impunidade. Desde então, ocorreram 108 julgamentos, 520 condenações e 1.135 processados.


A curva ascendente é clara: entre 1983 e 2003 só havia 15 processos judiciais. Levando-se em conta que, sob a ditadura, desapareceram cerca de 30 mil pessoas e existiram mais de 300 campos de concentração em todo o país, se vê que não havia se avançado muito. Mas a mudança não foi só quantitativa: houve também uma nova perspectiva.


Se antes se considerava que o golpe de estado e as violações de direitos humanos eram uma questão puramente militar, com o kirchnerismo passou a se falar de golpe civil-militar para expor a trama de cumplicidades sociais e de setores beneficiados com a derrubada do governo de Isabel Martínez de Perón.


Esta rede de interesses agregou um novo elemento penal: a cumplicidade civil em casos concretos de desaparecimento. Até hoje há 297 civis investigados, cerca de 13% dos 2239 acusados. Segundo os dados do CELS, os funcionários judiciais e o pessoal civil de inteligência constituem 24% cada um, os apropriadores de crianças 13% (ainda há 400 netos apropriados não recuperados), os empresários 5% e os sacerdotes cerca de 3%. “Resta muito para investigar. Em 2010, foram tornadas públicas listas com milhares de nomes de civis vinculados à inteligência sem que ainda se tenha analisado este material em detalhe. Só um dos sete sacerdotes implicados está condenado”, assinala Lorena Balardini.


Neste conjunto de casos destacam-se dois grupos de ações. No campo econômico, os processos contra a multinacional Ford, a siderúrgica Acindar e a automotriz Mercedes Benz estão revelando a participação dos executivos dessas empresas na produção de listas de trabalhadores e delegados sindicais, suspeitos e indesejáveis, que logo foram desaparecidos pela ditadura.


A classe operária representou 30,2% dos desaparecidos: foi o setor da sociedade mais golpeado pela política da ditadura. Em alguns casos, se instalaram centros clandestinos de detenção nas mesmas fábricas. “Os processos se encontram em diferentes estágios. Em alguns, como no caso da Ford, estão confirmados os indiciamentos, mas em outros, como no caso da Acindar, estamos na etapa investigativa. Só um caso foi levado a julgamento por enquanto, o da transportadora “La veloz del Norte”. Mas acreditamos que 2014 será um ano muito importante”, explica Balardini.


No terreno da cumplicidade midiática, na semana passada o diretor do diário La Nueva Provincia, de Bahía Blanca, Vicente Massot, teve que depor na Justiça para explicar o desaparecimento de trabalhadores gráficos da empresa. O caso é emblemático pela maneira pela qual marca a continuidade passado-presente de alguns protagonistas. Massot foi vice-ministro da Defesa do governo de Carlos Menem, é colunista do jornal La Nación, ferrenho opositor do kirchnerismo, e habitual comentarista dos programas televisivos mais opositores.


O caso da empresa Papel Prensa também é paradigmático. Em 1976, este insumo básico estava nas mãos do Grupo Graiver. A pressão da Junta Militar e o sequestro e tortura de alguns membros do Grupo terminou com a cessão da Papel Prensa para uma empresa controlada pelos jornais Clarín e La Nación. Um juiz federal, dois promotores e uma Câmara de Justiça determinaram que devia ser investigado se existiram “ações ilegais diversas e articuladas para obter a transferência compulsiva de ações da empresa Papel Prensa”.


Segundo o secretário de Direitos Humanos da Nação, Martín Fresneda, o caso foi deixado de lado pela justiça sem que se ouvisse nenhum dos suspeitos envolvidos. “Este é um território muito novo que exige continuamente novos olhares. Pode haver casos de magistrados que retardem certos processos, mas a justiça também tem seus tempos próprios que incluem o direito à defesa. Estamos falando de casos complexos que requerem investigações de fatos ocorridos em muitas situações há mais de 40 anos”, disse Lorena Balardini à Carta Maior.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer



Créditos da foto: Arquivo


"50 anos do golpe" - Editorial: 50 anos do golpe, início de uma tragédia brasileira

Editorial: 50 anos do golpe, início de uma tragédia brasileira



Que essas lições nos ajudem a evitar erros do passado. E que a classe trabalhadora se conscientize, se organize melhor na construção de processos que levem a uma sociedade mais justa, verdadeiramente democrática e igualitária

25/03/2014
Editorial da edição 578 do Brasil de Fato 
A década de 1960 foi marcada na historia do Brasil por uma crise econômica e política. A economia brasileira patinava no seu falso modelo de industrialização dependente do capital estrangeiro. Crescia a inflação e o desemprego. Mas por outro lado, havia um governo popular do presidente João Goulart e a classe trabalhadora vinha de um longo período de reascenso do movimento de massas desde a segunda guerra mundial. 
Essas circunstâncias levaram a que as forças populares e o governo Goulart apresentassem à nação uma saída para a crise: as reformas de base. As reformas propostas significavam adotar um novo modelo de desenvolvimento fundado na indústria nacional, na distribuição de renda e a melhoria das condições de vida da população brasileira. 
Para isso, seria necessário controlar o capital financeiro através de uma reforma bancária. Repotencializar a indústria brasileira, com uma reforma industrial que reorganizasse a indústria para o mercado interno e para as necessidades do povo. 
Uma reforma educacional para eliminar o analfabetismo e colocar todos os jovens nas escolas, em todos os níveis. E uma reforma agrária que garantisse terra e desenvolvimento no meio rural, gerando produção, emprego e renda ao meio rural. A proposta de reforma agrária de Goulart foi a mais ousada até hoje, quando propôs desapropriar todas as fazendas acima de 500 hectares, localizadas 10 km de cada lado das rodovias, ferrovias e margens de lagos e açudes. 
Essas propostas uniam as forças populares que estavam nas ligas camponesas, sindicatos, quartéis, campos e construção (como diz a música de Geraldo Vandré) com um governo popular que tomava iniciativa das mudanças. 
Porém, as forças do capital se articularam com o império estadunidense – como bem demonstra o imperdível filme de Flávio Tavares O Dia que Durou 21 Anos – ou o livro deRené Armand Dreifuss (1964: a conquista do Estado. Ação Política, Poder e Golpe de Classe, Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro, 1981 – e organizaram um golpe de Estado. 
Sempre que a burguesia, em todo o mundo, se sente ameaçada nos seus privilégios, joga na lata de lixo as leis, a Constituição, a democracia, sua própria ordem burguesa e apela para as armas, para a força bruta, para recompor seu controle sobre o Estado e sua vontade política de classe. E assim foi aqui no Brasil. Dia 1 de abril de 1964, dia da mentira, se perpetuou um golpe militar e se implantou uma ditadura empresarial-militar que durou 21 anos! 
Na economia, a burguesia imperialista dos Estados Unidos socorreu o Brasil trazendo seus dólares. Injetaram bilhões como investimento externo, que produziram um “milagre brasileiro” de retomada do crescimento da economia, baseado em grandes obras e deixando como saldo a maior dívida externa de todos os tempos, que iria estourar anos mais tarde, na década de 1980. 
E assim a economia se transformou ainda mais dependente do capital estadunidense e das empresas transnacionais em geral. Para impor sua ordem, nos primeiros tempos a repressão se abateu contra todas as formas de organização da classe trabalhadora: ligas camponesas, sindicatos, central sindical e setores progressistas das igrejas. E se voltou contra todos os militares progressistas que apoiavam o governo Goulart e as reformas de base. 
Depois, a partir de 1968, a repressão se aprofundou com a criação dos Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), financiado por empresas. A partir daí, se cometeu todo tipo de crime – torturas, assassinatos, ocultação de cadáveres etc. –, que atingiram a juventude, o movimento estudantil e as formas de resistência armadas que as organizações políticas haviam adotado. 
A repressão se amplia com o cerco à guerrilha do Araguaia (1973- 75) e nova onda de pressão nas cidades. Mas foi também o início de sua queda. Pois a partir das greves de 1978/79, a classe trabalhadora retoma as mobilizações de massa, a campanha pelas Diretas Já, e finalmente, a primeira eleição para presidente em 1989, que representaram o fim e derrota da ditadura empresarial- -militar. 
Nesses anos todos, além da falta de liberdade, da instalação de um regime ditatorial, de políticos medíocres, tivemos milhares de brasileiros perseguidos, exilados, torturados e assassinados. Nunca poderemos nos esquecer deles! A Lei de Anistia de 1979 serviu apenas para esconder os responsáveis, que agora a Comissão da Verdade não consegue recuperar e nem realizar a justiça necessária. 
Nessa semana que marca os 50 anos do golpe – início dessa tragédia social e política que a sociedade brasileira viveu – certamente se multiplicarão eventos e oportunidades em debates, livros e filmes, para recuperar a memória e refletir sobre as lições dessa trágica história. 
O jornal Brasil de Fato se junta nessa recuperação histórica, sobretudo para a nova geração de lutadores da juventude brasileira, para que conheçam a nossa história, para que conheçam a sanha do capital e as perversidades do que é capaz de fazer a burguesia brasileira para não perder seus privilégios. 
Que essas lições nos ajudem a evitar erros do passado. E que a classe trabalhadora se conscientize, se organize melhor na construção de processos que levem a uma sociedade mais justa, verdadeiramente democrática e igualitária. Situação que ainda estamos longe de conquistar, diante das mazelas econômicas, sociais e políticas que colocam a sociedade brasileira entre as mais injustas e desiguais de todo o planeta.

Quem trará a paz ao Oriente Médio?

Quem trará a paz ao Oriente Médio?


Oriente Médio, mapa

É um engano ou uma provocação perigosa dizer que o Oriente Médio mergulhou num mar de conflitos inter-religiosos e interétnicos. Já há muitos anos que, em vez de se lutar contra o desespero e a miséria, as autoridades locais preferem levar a cabo uma guerra infindável e desesperada com suas consequências inevitáveis que são as revoltas e o terrorismo.

O derrube dos regimes ditatoriais com o apoio das forças ocidentais não trouxe a mudança, o povo agora não vive melhor. A violência gerou mais violência. Em vez da resolução dos problemas socioeconómicos, se verificou apenas o reforço do aparelho repressivo.
A última cúpula da liga dos Estados Árabes demonstrou que a política dos EUA na região irrita até os seus aliados mais próximos. A OPEP não gosta que, ao controlar as exportações do petróleo iraquiano, os EUA façam baixar os preços do “ouro negro”. O Catar não vê com bons olhos que, ao desenvolver o seu projeto de gás de xisto, Washington queira expulsá-lo do mercado europeu do gás. Daí o resultado – a já esperada declaração que a guerra na Síria só pode ter uma solução política.
As negociações relativas a conflitos internos também são confiadas a forças externas. Para algumas delas, o objetivo das negociações é apenas demonstrar a todo o mundo que os países e povos dessa região nunca poderão chegar a um acordo. Isso foi claramente visível durante as fracassadas negociações sobre a Síria. Paralelamente, Washington tenta resolver de uma forma bastante peculiar o problema dos programas nucleares do Irã, cujo cancelamento teria como contrapartida o levantamento das sanções contra Teerã.
Ainda em novembro o secretário de Estado dos EUA John Kerry declarou ao Congresso: “Têm de acreditar em mim: as sanções serão aliviadas de forma limitada e poderão ser repostas a qualquer momento”.
Elas ainda não terão sido repostas, mas paralelamente às difíceis negociações os EUA já anunciaram por duas vezes novas sanções. Da última vez, em fevereiro, elas abrangeram ativos financeiros iranianos na Turquia, em Espanha, na Alemanha, na Geórgia, no Afeganistão e em uma série de outros países.
Será que a destruição da Síria, a desagregação do Iraque e a asfixia do Irã com sanções irão continuar? Não se deve permitir que o Oriente Médio fique definitivamente atrasado em relação a um mundo que se desenvolve com dinamismo.
Talvez se deva deixar de chamar, para resolver os problemas internos, mediadores dos países cuja política para o Oriente Médio e Próximo é acertadamente considerada como neocolonialista. Os problemas de relacionamento e da vida quotidiana dos sunitas e xiitas, dos persas, curdos, árabes e afegãos não serão resolvidos pelas afirmações dos aliados em que só eles podem resolver esses problemas, enquanto na realidade eles esperam encomendas incessantes que fazem funcionar a indústria do armamento de países longínquos.
Por qualquer razão não se ouve falar da possibilidade de os países da região poderem chegar a acordos entre si sozinhos, e poderem cooperar eficazmente. As razões são óbvias. O Irã, o Paquistão e a Índia já teriam construído há muito tempo o “gasoduto da amizade” se não fossem as sanções contra o Irã. Com a ajuda financeira da Índia já se encontra em funcionamento na costa sudeste iraniana o porto de Chabahar, que ofereceu ao Afeganistão novas possibilidades para seu comércio externo e trânsito de mercadorias.
Os destacamentos das forças armadas dos Emirados Árabes Unidos realizaram a desminagem de um território enorme no sul do Afeganistão e garantiram, sem sofrerem baixas, a segurança da região mais problemática do país.
Um dos oficiais árabes disse na altura aos jornalistas: “Sabem, nós já cá estávamos antes de este problema ter começado, como vizinhos árabes que somos. Nós iremos permanecer como vizinhos muito depois de a coalizão e a ISAF terem saído. Nós podemos não conseguir oferecer uma solução, mas podemos, como muçulmanos, pelo menos iluminar o caminho para que os afegãos encontrem a sua própria via”.
A opinião do autor pode não coincidir com a opinião da redação

O povo detém a soberania. Falta definir quem é o povo

O povo detém a soberania. Falta definir quem é o povo



O direito de decidir do povo catalão estaria fundado na soberania a residir do seu povo ou do povo espanhol? Por Luiz Guilherme Arcaro Conci

por Luiz Guilherme Arcaro Conci — publicado 29/03/2014

Na semana passada, meu artigo tratou da questão das manifestações plebiscitárias a ocorrer na Escócia e na Catalunha e a já ocorrida na Crimeia.
Há dois pontos que quis sublinhar, essencialmente. Primeiro, que sob a ótica do direito (constitucional e internacional), nem toda manifestação majoritária se coloca como lícita, ainda que alcançada mediante mecanismos de democracia participativa ou direta. Segundo, para o caso da Crimeia, a razão principal da ilicitude da sua anexação à Federação Russa decorre – diametralmente diferente do que ocorreu em  Kosovo – da ausência de violação em massa de direitos humanos sem a devida proteção do Estado de origem, o que permitiria abrir argumentos e razões jurídicas contra a análise meramente formal baseada na primeira premissa. Ou seja, o desrespeito ao direito interno somente poderia ser ponderado pela imprescindível proteção da pessoa humana (princípio pro homine).
Na terça-feira, tivemos mais um lance no jogo que propusemos na semana passada, agora com a Catalunha.
O Tribunal Constitucional da Espanha – órgão que detém o monopólio da interpretação definitiva da Constituição daquele Reino – entendeu que não se pode realizar a decisão plebiscitária no segundo semestre na Catalunha, pois é inconstitucional.
Sintetizemos o caso.
O Parlamento da Catalunha, em 23 de janeiro de 2013, aprovou “Declaração de Soberania e do Direito de Decidir do Povo da Catalunha”, com nove princípios, com o objetivo de legitimar democraticamente o processo de decisão popular a respeito da independência catalã.
Dentre estes princípios, dois deles são mais importantes no momento: o primeiro, que afirma o direito de soberania do povo catalão e o segundo, sobre o direito de decidir. O primeiro fundamenta o segundo, ou seja, o direito de decidir do povo catalão estaria fundado na soberania a residir no seu povo (catalão) e não no povo espanhol.
Alguns meses depois, foi criado o Conselho Assessor para a Transição Nacional, o qual auxiliaria o governo da Generalitat a impulsionar o processo de consulta popular para a independência.
Em julho de 2013 o Tribunal Constitucional decidiu suspender a Declaração catalã até análise final, ocorrida nessa semana.
Agora, o Tribunal Constitucional procedeu a uma interpretação bastante interessante.
Não nega o direito de decidir do povo catalão. Inclusive afirma está contido no ordenamento jurídico daquele país, mas fixa as suas condições, todas decorrentes da Constituição: a lealdade constitucional e o dever de auxílio recíproco entre comunidades autônomas e estado.
Todavia, quanto à soberania residir no povo catalão, o TC impõe uma derrota aos interesses da comunidade autônoma. Isso porque o artigo 1.2 da Constituição espanhola afirma que pertence a “soberania nacional ao povo espanhol”, fundamento da ordem constitucional. Sendo assim, a soberania do povo catalão somente poderia ser entendida a partir da Constituição, pois é ela que reconhece o caráter de comunidade autônoma à Catalunha.
Dependeria de uma reforma constitucional desse artigo para a realização do pleito sem depender do parlamento nacional. O povo catalão não é titular da soberania. Somente o povo espanhol, que se reuniu para elaborar a Constituição de 1978, a detém, por isso a exigência de reforma constitucional para alterar o status catalão. Os artigos 1.2 e 2 são obstáculos ao processo que se pretende para o segundo semestre. Tudo isso depende de uma manifestação do Parlamento espanhol e não, unicamente, do parlamento catalão.
Ou seja, não há soberania fragmentada, mas há um direito de decidir com previsão constitucional.
Os efeitos da realização da manifestação plebiscitária, na Catalunha, já podem ser antevistos. Caso se realize, e, eventualmente, ganhe o sim, estará ocorrendo em desrespeito ao direito espanhol que fixa, na sua Constituição, proteção contra decisões futuras. Esse direito decorre de decisões populares, especialmente, daquela exarada no processo constituinte criador da Constituição de 1978.
Muitas vezes, as constituições funcionam como amarras para o futuro. A própria constituição fixa proteções contra alterações precipitadas da ordem política e jurídica do estado nacional, ainda que fruto de decisões populares. A soberania popular não se resume a uma decisão majoritária, total ou parcial do povo. Se resume também a respeitar o decidido quando da elaboração da constituição. Nem tudo que provém de uma maioria parlamentar ou popular deve estar de acordo com o Direito, pois em uma democracia diversos são os instrumentos de controle dessas maiorias. O veto legislativo nas mãos dos chefes de estado ou governo e o poder de os juízes declararem as leis inconstitucionais são apenas dois deles.
Em último grau, em democracias constitucionalmente protegidas, foi o próprio povo, quando se reuniu em Assembleia Constituinte, que formulou essas amarras às suas decisões futuras. Há legitimação democrática nesses instrumentos contramajoritários.
Qualquer decisão outra a ser tomada pela Catalunha que não seja a paralização do processo de consulta popular marcada para o segundo semestre, levará  a uma difícil relação com a comunidade internacional .
Aderir à União Europeia dependerá da vontade afirmativa de todos os seus membros, o que faz com que a Espanha venha ser sua inimiga.
Não há, como em Kosovo – o que inexistiu na Crimeia – violação de direitos humanos sem a proteção do estado de origem. Não se está a falar em proteção à pessoa humana como fonte de decisão de independência.
O “sim”, na verdade, não seria uma vitória.  Se o povo detém a soberania, importa definir quem é o povo. No caso, não é o povo catalão, mas o espanhol que poderia proceder à autorização, mediante seus representantes, do processo catalão.

Luiz Guilherme Arcaro Conci, doutor em Direito Constitucional, é professor e coordenador acadêmico do curso de Pós Graduação Lato Sensu em Direito Constitucional da Faculdade de Direito da PUC-SP e professor titular da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É presidente da Coordenação do Sistema Internacional de Proteção de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB.