Quem foi Márcia Prado
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Mapa da Rota Cicloturística Márcia Prado |
A Rota Cicloturística Márcia Prado, ligando as cidades de São Paulo e Santos, já ficou bastante conhecida entre os ciclistas brasileiros. A ghost bike em sua homenagem já se tornou parte da paisagem da avenida símbolo da cidade de São Paulo, a Avenida Paulista. Mas nem todos sabem quem foi essa mulher, tampouco o motivo de tantas homenagens.
Quando Márcia Regina de Andrade Prado faleceu, muita gente me perguntava se eu não iria publicar nada aqui no Vá de Bike, já que eu a conhecia. Eu não tinha nem vontade de escrever sobre isso pois ainda estava abalado. Dei algumas entrevistas e escrevi comentários em matérias, reclamando de títulos tendenciosos – como o de uma matéria da Folha, que não convém nem citar o link. Então, depois de alguns dias, decidi publicar o texto abaixo.
A mulher debaixo do capacete
Conheci a Márcia na cicloviagem que participantes da Bicicletada de São Paulo fizeram até Ubatuba, em novembro de 2008. Até então, só tinha lido algumas mensagens dela na lista de discussão da Bicicletada e não a conhecia pessoalmente.
Durante o percurso da viagem, não conversamos muito, pois o grupo estava relativamente disperso na estrada. Foi chegando lá que realmente a conheci. Eu, ela e a Priscila, minha esposa, fomos tomar um café ótimo num lugar agradável e tranquilo. Ficamos ali por um bom tempo, conversando sobre a vida e sobre nossas histórias pessoais – enfim, assuntos que não tinham a ver com a bicicleta, mas com as nossas vidas.
E ali conhecemos um pouco da pessoa por trás dos e-mails e do capacete: uma mulher tranquila, ponderada, compreensiva e que amava e respeitava a vida.
A cicloativista
Márcia era bastante ativa no cicloativismo. Encontrava informações pela internet, pesquisava as leis, entrava em contato com órgãos públicos. Participava dos encontros na Praça do Ciclista, das ações, das viagens. Era muito presente na Bicicletada e nas manifestações diversas.
Era uma mulher muito tranquila que, apesar de se revoltar com a batalha inglória em defesa de nossos direitos e nossa segurança, não desanimava e nem desistia, tampouco perdia a paciência.
Como os demais participantes da Bicicletada, ela fazia isso porque acreditava em uma cidade melhor para todos. Acreditava que a bicicleta humaniza a cidade, direta e indiretamente, como já se provou em muitos lugares do mundo. Menos carros e mais pessoas, menos fumaça e mais pássaros, menos roncos de motor e mais sorrisos de crianças. Era nisso que ela acreditava.
Ela era uma das signatárias do Manifesto dos Invisíveis. Ao contrário do que alguns jornalistas desinformados divulgaram à época, o Manifesto não é um texto pedindo ciclovias. Muito pelo contrário! É um texto que pede que nosso direito de circulação seja respeitado, afirmando que não iremos esperar que a cidade tenha ciclovias em todas as avenidas para que possamos circular de bicicleta. Siga o link acima e entenda do que estamos falando.
Márcia uma pessoa muito querida no movimento, principalmente entre as meninas, que choraram bastante pela sua falta.
A Rota Cicloturística
O caminho que leva de São Paulo a Santos, passando pela Ilha do Bororé através de duas balsas e seguindo pela Estrada de Manutenção da Rodovia dos Imigrantes, é inspirado no trajeto da viagem que a ciclista Márcia Prado realizou em vida.
Trata-se de uma sugestão de rota cicloturística feita pelo Instituto CicloBR, para que as autoridades criem um meio atraente e seguro para o ciclista chegar ao litoral paulista.
O caminho é MUITO bonito, principalmente se feito por completo, passando pela Ilha do Bororé. É um passeio que vale muito a pena e ficará na sua memória para sempre.
A Rota Cicloturística Márcia Prado passa por diversos municípios. Na cidade de São Paulo, é oficializada pela Lei Municipal 15.094/2010 e regulamentada pelo Decreto 51.622/2010.
O “acidente” que tomou sua vida
Em janeiro de 2009, Márcia Prado foi morta por um motorista de ônibus, em plena Av. Paulista, enquanto se deslocava a trabalho em sua bicicleta. As notícias chegavam aos poucos e, a princípio, nos recusávamos a acreditar que fosse mesmo ela a vítima (leia aqui um relato desse dia). Sua morte foi logo classificada como “acidente” pela imprensa, que a culpava por ter sido surpreendida por um ônibus.
Passar com um veículo de 8 toneladas por cima de alguém que NÃO se jogou na sua frente de repente não é um acidente. Acidente é quando acontece algo inesperado, onde nada poderia ter sido feito para evitar.
A morte que ocorreu ali não foi inesperada. Ao mover 8 toneladas para cima de 80 quilos, deveria-se esperar o pior. Também não foi inevitável: se o motorista respeitasse a LEI (art. 201 do CTB), teria passado a 1,5m da ciclista ao ultrapassá-la e não a teria derrubado da bicicleta.
O automóvel desgasta a sociedade, torna as cidades menos humanas e as pessoas mais frias. A ponto do “acidente” que mais mata crianças ser o carro e isso não ser considerado um problema de saúde pública, resultando apenas em campanhas que colocam a responsabilidade nas crianças e não nos carros, além de propagandas que as mostram como inimigas dos veículos. Passa-se a afirmar que a rua é só dos carros e que bicicletas não devem fazer uso dela, a dizer que a ciclista é que estava errada de circular ali.
Essas falsas verdades, propagadas por poder público e imprensa, dão aos maus motoristas o aval moral para “assustar” o pedestre que não deveria atravessar a rua, acelerando sobre ele, ou “educar” um ciclista a sair da via tirando uma fina com o carro ou ônibus, um ato que pode tomar-lhe a vida ou deixá-lo com sequelas para sempre.
Causas e repercussão
Foi revoltante ver comentários – de cidadãos em notícias na internet, de jornalistas mal preparados publicando matérias distorcidas e até de “especialistas” em trânsito falando no rádio e na TV – afirmando que a ciclista morreu porque não deveria estar na rua, que a bicicleta é perigosa e que a Avenida Paulista “não é lugar de bicicletas”. Isso é um absurdo!
Em primeiro lugar, o art. 58 do código de trânsito diz que a bicicleta tem direito sim à rua, com preferência sobre os veículos automotores. Veja aqui.
Em segundo lugar, a bicicleta não é perigosa. A bicicleta não mata ninguém. O perigo está nos carros de uma tonelada ou mais que não respeitam seu espaço. Como algo que corre perigo pode ser o elemento perigoso? Como algo que subtrai vidas e coloca os outros em risco, em oposição a um veículo leve que mantinha sua trajetória sem interceptar a de ninguém, pode ser transformado em vítima nessa retórica absurda?
Em terceiro, em cidades como Londres há pistas de ônibus compartilhadas com bicicletas. Os acidentes diminuem e tudo funciona muito bem (inclusive os horários dos ônibus, conceito impraticável em São Paulo já que os ônibus sofrem com o congestionamento provocado pelos automóveis). Até Nova Iorque, principal cidade do país do automóvel, foi remodelada para se tornar mais humana através do uso da bicicleta e da retomada dos espaços públicos pelas pessoas, em contraponto ao modelo tradicional da prioridade do motor.
Em quarto lugar, o motorista ERROU ao passar tão perto da ciclista. O art. 201 do código de trânsito diz que a distância deve ser de 1,5m e isso tem seu motivo: uma encostada na ponta do guidão o vira de um jeito que derruba o ciclista em direção ao carro/ônibus/etc, podendo jogá-lo debaixo da roda. Ele não deveria ter feito isso NUNCA. E não há pressa, descaso ou preconceito contra ciclista que justifique isso.
Em quinto, ciclista não “atrapalha” o trânsito, ciclista é parte do trânsito. Alguém que troca seu carro pela bicicleta “atrapalha” muito menos que com o automóvel que utilizava – que ocupa oito metros quadrados de asfalto quando parado e pelo menos uns 20 em movimento. A rua não é exclusiva dos carros. O ciclista tem sua limitação de velocidade, que deve ser compreendida e aceita. Os motoristas devem ultrapassar de forma segura ou esperar, como fariam com qualquer outro veículo lento, como um ônibus ou um caminhão carregado.
E, por último, o motorista sabia que ia espremer a ciclista e muito provavelmente fez isso de propósito, para “puni-la” pelo que ele considerou errado: estar com a bicicleta na rua. Muitos motoristas fazem isso todos os dias, jogando o carro em cima do ciclista para puni-lo por estar usando a via. E, claro, fogem. Se o ciclista cair, que se dane, é só ir embora rápido que “não dá em nada”. Ninguém dirigindo um carro espreme um caminhão contra a calçada, pois não coloca a própria vida em risco. Não deveriam fazê-lo com o ciclista também, pois colocar deliberadamente em risco a vida de outra pessoa é muito mais que egoísmo ou falta de caráter: é crime.
As pessoas deveriam pensar melhor antes de sair divulgando na televisão ou nos jornais uma opinião infundada, incoerente, egoísta, limitada e preconceituosa, principalmente porque essa opinião vai ser absorvida por muita gente que não quer se esforçar para entender o que aconteceu e engolirá tudo sem mastigar, (de)formando sua opinião sobre o assunto.
Por mais que a ciclista estivesse errada, puni-la com a morte é um pouquinho demais, não é? Por mais que o motorista do ônibus a odiasse por um motivo qualquer, por mais que ela tivesse feito alguma maldade para ele um dia, nada justificaria o que ele fez. Muito menos o simples fato de estar ali, andando de bicicleta.
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