Europa: gentileza faz a diferença no trânsito
Um balanço da experiência de pedalar por nove países europeus, durante sete meses
Por Mobilize
Foto: Divulgação
Após 7 meses de pedal e quase 9 mil quilômetros rodados por 9 países
europeus, agora de volta ao Brasil é chegada a hora de fazer aquele
“resumão” da viagem e tentar compartilhar as impressões gerais que tive
nesse período, principalmente no que tange a mobilidade humana.
O simples fato de poder atravessar
boa parte da Europa ocidental utilizando apenas a bicicleta já diz muita
coisa, mas ficar só nisso seria manter uma discussão muito superficial.
Não poderia seguir com este texto sem tentar entender o que realmente
possibilita que uma pequena formiga como eu consiga se deslocar sozinho
tão facilmente por tamanha distância, em um ambiente estranho e cultura
extremamente diversa da nossa, com diferenças linguísticas, no relevo e
no clima, com uma moeda supervalorizada em relação ao real, entre tantas
outras novidades.
Já nos primeiros quilômetros,
pedalados em território holandês, comecei a acreditar que a
infraestrutura cicloviária era o principal fator que levava aquela
região a ter uma cultura ciclística tão forte. Em algumas partes do
país, novos loteamentos estão sendo construídos onde antes era o mar,
uma prática comum na Holanda há muitas décadas, e o que se vê muitas
vezes é a implementação de ciclovias e calçadas antes mesmo da
pavimentação das ruas. Claro que não é assim em toda parte, mas esse
exemplo só poderia existir em uma sociedade que entende a importância do
pedestre e do ciclista em sua dinâmica.
Com o tempo e as distâncias
percorridas, comecei a notar a forte presença dos trens, dos VLTs, de
uma infinidade de canais navegáveis e de uma rede de ciclorrotas capaz
de me conduzir por muitos quilômetros de bicicleta, sem me fazer gastar
nenhum centavo para isso.
Aos poucos minha euforia com
relação à estrutura cicloviária do país foi passando e eu já podia
enxergar o óbvio: a bicicleta era apenas um dos modais, que assim como
os outros, dotada de ótima infraestrutura e grande demanda por parte dos
cidadãos. Então comecei a entender que o buraco era mais embaixo, ou
seja, não é apenas a bicicleta que é levada a sério, mas o transporte
como um todo, seja ele coletivo ou individual, público ou privado.
Em poucos dias de pedal já entrava
na Alemanha e mesmo após cruzar a fronteira, o impacto não foi muito
grande. Claro que a língua mudou, assim como mudou a arquitetura, os
produtos nas prateleiras do supermercado entre tantas outras coisas, mas
o conforto e a segurança ao pedalar, continuaram em alto nível. Entrei
no novo país pela região chamada Renânia do Norte-Vestfália
(Nordrhein-Westfalen), passando pela Baixa-Saxônia (Niedersachsen),
Bremen (Bremen), Hamburgo (Hamburg), Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental
(Mecklenburg-Vorpommern), Brandenburgo (Brandenburg), Berlin (Berlin) e
Saxônia (Sachsen), antes de entrar na República Tcheca.
Fiz boa parte dos deslocamentos
neste país por pequenas estradas cortando fazendas, compartilhadas entre
tratores e bicicletas, sempre muito bem sinalizadas. Algumas vezes
cheguei a pegar estradas de rodagem, junto com carros de passeio,
traillers, ônibus e caminhões com limite de velocidade de 60, 70 ou 80
km/h, permitidas para ciclistas, de vez em quando sem acostamento. Assim
mesmo a viagem era tranquila, os motoristas respeitam demais os
ciclistas e em nenhum momento me senti ameaçado. Assim foi também na
República Tcheca e antes mesmo de entrar na Áustria estava tudo mais
claro: nos países por onde pedalara, os motoristas não são apenas
condutores que respeitam os ciclistas e outros condutores, mas pessoas
que respeitam pessoas. Ouvi da boca de moradores das cidades pelas quais
passei até ali que no trânsito eles jamais tomam atitudes que possam
colocar outros indivíduos em risco.
Concomitante ao comportamento mais
gentil no trânsito, notei uma presença muito grande de crianças, idosos e
cadeirantes nas ruas, calçadas, no comércio e praças, ora sozinhos, ora
acompanhados, mas sempre em condições de acessar equipamentos públicos
sem depender de ninguém. Então ficou claro que a gentileza no trânsito e
a infraestrutura que estes países construíram só foram possíveis com o
respeito ao indivíduo e suas necessidades, e não apenas iniciativas
voltadas a um pequeno grupo, mas para o maior número possível de
pessoas. Assim eu consegui entender que a Educação no Trânsito que
estava vendo agora não era resultado de uma cartilha bem elaborada,
campanhas de conscientização ou um sistema de avaliação absurdo para
conseguir uma habilitação, e sim do comportamento dos indivíduos com
relação aos outros e ao espaço que estão inseridos, neste caso as ruas.
Poderia me alongar muito na
discussão da valorização da vida, do respeito ao próximo e da
fundamental importância que estes fatores têm na dinâmica de qualquer
cidade, mas certamente este é um assunto que merece muito mais reflexão.
Agora sei que estas são as premissas básicas para a construção de um
ambiente coletivo, sem as quais não existe infraestrutura capaz de
suprir sua deficiência, e lamento que muitos aqui no Brasil ainda não
tenham percebido isso. Nesse sentido é quase impossível fazer uma
comparação de cidades europeias com os centros urbanos brasileiros, já
que não partimos das mesmas premissas; e banana se compara com banana,
laranja com laranja. Mas se não podemos comparar as cidades brasileiras
com as europeias, que tal colocarmos em foco o nosso comportamento,
principalmente quando dividimos com outros o espaço, seja ele público ou
privado?
É a partir desse conceito que
entendi a ocupação do espaço público e a mobilidade humana nestes meses
de viagem. Em maior ou menor escala o compartilhamento das vias, o
respeito aos pedestres e outros pontos fundamentais na construção de uma
sociedade inclusiva se repetiam também na Áustria, Suíça, França.
Espanha, Itália e Portugal, embora um pouco menos nestes dois últimos
países. A idéia de um espaço construído para atender às necessidades das
pessoas e o entendimento da coisa pública como algo de todos explica,
pelo menos em parte, o sucesso de cada um dos modelos de transporte
público, que não deve ser medido exclusivamente pela redução do tempo de
deslocamento, como vemos muitas vezes por aqui.
Atravessei a Áustria e entrei pelo
sul da Alemanha, seguindo o rio Danúbio, passando por Munique e chegando
ao Bodensee, onde cheguei na Suíça. O nível de organização suíço,
considerando a infraestrutura e a sinalização, não tinham precedentes
nesta viagem até o momento. Engraçado viajar por um país tão pequeno com
um território super fragmentado, onde em uma parte se fala alemão, na
outra o italiano, além do francês e uma pequena faixa onde se fala o
romanche. Assim mesmo o país tem uma unidade muito forte, especialmente
no que respeita ao transporte e à qualidade de vida. Depois disso entrei
na Itália e logo me sentia como se estivesse muito próximo do Brasil,
sensação que se repetiria em Portugal. Tanto os italianos quanto os
portugueses são extremamente apressados e salvo alguma exceção, são tão
imprudentes no trânsito como nós, brasileiros.
Poderia dizer que este é um
comportamento típico dos povos de origem latina, mas seria uma injsutiça
com a França e a Espanha, que não oferecem as mesmas condições para
pedalar do que a Holanda, Suíça e Alemanha, por exemplo, mas ainda assim
estão anos luz à frente de Portugal e Itália. A França não chega a ser
completamente ciclável, mas o povo francês é respeitoso, principalmente
no que se refere às liberdades individuais e aos direitos humanos. O
respeito ao próximo é onipresente, ou se existe algum tipo de
preconceito ele é bem disfarçado. Fato é que passei pelas regiões
do Vale do Jura, Borgonha, Ile de France, Central, Pays de la
Loire,Poitou Charentes, Aquitânia, Midi-Pirineus e Languedoc Roussilon e
além de pedalar bons trechos por ciclovias ou rotas ao longo de rios e
canais, quando tive que pegar estradas não encontrei nenhum problema. Em
menor escala, isso aconteceu também na Espanha, onde passei
pela Catalunha, Aragón, La Rioja, Castilla y Leon e finalmente
a Galícia, antes de chegar em Portugal.
Foi somente quando cheguei
à Galícia, onde a língua e os costumes do povo local são muito mais
parecidos com os de Portugal do que da Espanha, é que passei a sentir
uma certa agressividade no trânsito, o que na minha opinião é mais
desgastante do que subir uma montanha dos Alpes ou dos Pirineus. Pedalar
em um ambiente onde você se sente ameaçado o tempo todo cansa, gera uma
tensão enorme nos braços, nos ombros e nas costas, além da pressão
psicológica e do medo. Falo por experiência própria, é mais fácil subir
uma grande inclinação quando você está tranquilo e seguro do que pedalar
por pequenas elevações sentindo que a qualquer momento alguém vai jogar
toneladas de metal em cima de você!
Chegando em Portugal, a sensação é
que eu estava mesmo me preparando para voltar ao Brasil. Ainda é mais
fácil pegar a estrada de bicicleta em terras lusitanas do que no nosso
país tropical, mas assim mesmo não é seguro. Até aquele momento não me
lembrava de ouvir buzinas e xingamentos de motoristas que não queriam
dividir seu espaço com ciclistas, mas em Portugal eu ouvi. De certa
forma me senti um pouco em casa, e sabia que não só por uma questão
linguística ou geográfica, mas lá no fundo eu estava mais próximo do
Brasil. Seria leviano dizer que nosso comportamento nas ruas é uma
herança da colonização, mas qualquer semelhança também não pode ser
considerada coincidência. Após todos estes meses viajando sozinho, em
contato direto com o ambiente e com as pessoas, tive muito tempo para
refletir, e cheguei à conclusão de que se não temos recursos, tecnologia
ou infraestrutura capaz de suprir nossas necessidades, podemos pelo
menos começar com o mais importante: o respeito ao próximo e o
compartilhamento saudável das vias.
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