| A Rússia voltou | ||
Enquanto
as revelações de espionagem sistemática dos aliados embaraçam
Washington, Moscou enfileira sucessos na cena internacional (Snowden e
Síria). Herdeira de uma diplomacia temida, mas enfraquecida após o fim
da URSS, a Rússia acredita ter finalmente retomado o posto de grande
potência
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| por Jacques Lévesque | ||
(Os presidentes Barack Obama e Vladimir Putin durante encontro do G8, em Lough Erne, Irlanda)
Nos últimos meses, o presidente russo Vladimir Putin teve dois grandes
sucessos na cena internacional. Em agosto, ofereceu asilo ao técnico em
informática norte-americano Edward Snowden, autor de vazamentos
retumbantes dos sistemas de vigilância digitais da Agência Nacional de
Segurança (National Security Agency, NSA). Ele pôde, assim,
vangloriar-se do fato de a Rússia ter sido o único Estado do mundo capaz
de resistir às exigências de Washington. Até mesmo a China havia tirado
o corpo fora, seguida pela Venezuela, Equador e até Cuba, que
multiplicaram o grupo que evitou se comprometer.
Paradoxalmente, as pressões exercidas pelo vice-presidente Joe Biden e
pelo próprio presidente Barack Obama junto aos governos tentados a
acolher o jovem norte-americano contribuíram amplamente para o sucesso
de Putin. Washington agiu como se Snowden representasse um risco para a
segurança quase compatível ao que encarnava o antigo dirigente da
Al-Qaeda, Osama bin Laden. Eles inclusive obtiveram de seus aliados que
interditassem seu espaço aéreo ao avião do presidente boliviano Evo
Morales,1 suspeito de transportar o técnico em informática.
Tal atmosfera contribuiu para colocar em evidência a “audácia” de Putin
tanto no panorama político russo quanto no internacional. Em Moscou,
muitos de seus oponentes felicitaram seu gesto, em nome da defesa dos
direitos e das liberdades civis.
Mas o verdadeiro sucesso, com um alcance muito maior, aconteceu no caso
sírio. Graças à promessa que Putin conseguiu arrancar de Bashar
al-Assad – destruir, sob controle internacional, todas as armas químicas
de seu país –, Obama teve de suspender “provisoriamente” os bombardeios
punitivos que cogitava. Até então, a Casa Branca havia ameaçado a
Rússia de isolamento internacional, difamando-a por seu apoio ao regime
de Damasco e sua oposição a todas as sanções da ONU. Agora, Putin
aparece como o homem de Estado que conseguiu evitar uma expedição
militar de consequências duvidosas.
Ainda nesse caso, sua vitória foi facilitada pelo cálculo equivocado da
administração norte-americana. Depois de ter engolido a recusa do Reino
Unido em se associar à operação que planejava, Obama estava prestes a
conhecer um segundo fracasso, com consequências imprevisíveis, em sua
tentativa de obter o aval do Congresso. Mesmo “inacreditavelmente
limitadas”, segundo os termos do secretário de Estado John Kerry,2 as represálias militares eram notoriamente repugnantes a ele. No dia seguinte ao acordo, o jornal Izvestiadava a seguinte manchete: “A Rússia socorre Obama” (12 set. 2013).
De modo prudente, o presidente russo não manifestou a mesma ironia
triunfalista que seus bajuladores. Em conjunto com sua diplomacia, ele
viu nesses últimos acontecimentos um sinal dos tempos e uma oportunidade
histórica que não podia ser desperdiçada de jeito nenhum.
Há dois anos, a atitude da Rússia no conflito sírio coloca em evidência
concomitantemente seus medos e suas frustrações, mas também seus
objetivos e suas ambições a longo prazo no panorama internacional. Ao
mesmo tempo, esclarece os problemas enfrentados por Putin internamente.
As duas guerras da Chechênia (1994-1996 e 1999-2000) deixaram muitas
sequelas. Mesmo que os atentados e ataques contra as forças da ordem não
tenham mais o mesmo alcance e não façam mais tantas vítimas, eles
continuam frequentes no Cáucaso do Norte e se propagam de forma lenta e
contínua em particular no Daguestão e na Inguchétia. Os grupos
militantes chechenos são menos coordenados, mais dispersos, mas sempre
presentes.
Sensação de rebaixamento
Tal qual o fazem observadores norte-americanos como Gordon Hahn,
pesquisador do Center for Strategic and International Studies (CSIS), em
Washington,3 grande parte da imprensa russa estima que
centenas de militantes vindos da Rússia combatam na Síria contra o
regime. Isso poderia explicar a continuidade das entregas de armas ao
governo de Al-Assad. Para Putin e seus aliados, um colapso do Exército
sírio faria do país uma nova Somália, mas com muito mais armas, numa
região bem mais perigosa e com possibilidade de oferecer uma base de
apoio aos combatentes que operam na Rússia. Foi preciso tempo para esses
temores começarem a ser partilhados em Washington, ou, então, a
resistência das forças fiéis a Al-Assad tinha sido subestimada.
No que tange aos objetivos da política internacional, com frequência se
reduzem os interesses russos no conflito sírio à preservação de Tartus –
a única instalação (mais do que base) militar naval da Rússia no
Mediterrâneo – e à manutenção no poder de um de seus clientes no mercado
armamentista. Sem serem totalmente negligenciáveis, essas considerações
não explicam a obstinação de Moscou, que procura sobretudo retomar um
lugar e um papel na ordem social pós-soviética.
Desde 1996, com a ascensão do acadêmico Evgeni Primakov ao Ministério
das Relações Internacionais, bem antes da chegada de Putin (que se
tornou presidente em 2000), um consenso se instalou no seio das elites
políticas. Desde então, ele não deixou de ser reforçado: os Estados
Unidos procuram impedir o reerguimento da Rússia como potência. Os
partidários de tal análise veem a prova disso nas ampliações sucessivas
da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para os países
bálticos e do Leste, e na vontade norte-americana de incluir a Geórgia e
a Ucrânia, em violação às promessas feitas a Mikhail Gorbatchev para
arrancar seu consentimento à integração da Alemanha unificada na
entidade. Washington, afirmam os diplomatas russos, procura diminuir a
influência de seu país até mesmo na região mais legítima de seus
interesses.
Para o Kremlin, a manobra do Conselho de Segurança da ONU pelos Estados
Unidos e seus aliados para a imposição de sanções internacionais e
ainda mais para guerras como a do Kosovo, em 1999, e do Iraque, em 2003,
constitui uma maneira de evitar qualquer renegociação numa base que
obrigaria Washington a tomar uma posição que não fosse marginal aos
interesses russos. Moscou expressa uma aversão profunda com relação às
operações militares externas e, pior, às mudanças de regime orquestradas
sem o aval do Conselho de Segurança.
Ao se opor a qualquer operação contra a Síria, a Rússia invocou
constantemente o precedente líbio de 2011. Ela se absteve quando do voto
da Resolução n. 1.973, cujo objetivo proclamado era proteger as
populações, mas que foi deformado para justificar uma intervenção
militar e a queda de Muamar Kadafi.
Em Moscou predomina hoje uma visão essencialmente geopolítica das
relações internacionais – velha tradição na Rússia. Desde 1996, o
objetivo central e oficial da política externa é reforçar a tendência à
multipolaridade no mundo. Realista quanto às capacidades atuais e até
mesmo futuras de seu país, Putin – como Primakov, antes dele – estima
que a Rússia precisa de parceiros para avançar nessa via multipolar.
A China tornou-se, então, o mais importante de seus parceiros
estratégicos. A união dos dois países no Conselho de Segurança é
permanente, principalmente no caso sírio, assim como foi no do Irã e da
Líbia, ou da guerra do Iraque de 2003. Mais paciente e confiante em seus
meios, Pequim deixa Moscou ocupar a cena principal na defesa de suas
posições comuns.
Desde o princípio dessa parceria, os analistas ocidentais predizem seu
desmoronamento, em razão dos temores das elites russas diante do peso
demográfico e econômico da China. No entanto, a cooperação não para de
crescer, tanto no plano econômico (exportação do petróleo e das armas
russas) como no político (acordos no seio da Organização de Cooperação
de Xangai)4 e militar: quase todo ano acontecem manobras e exercícios conjuntos implicando forças aéreas, terrestres e navais.
Reequilíbrio da ordem mundial
Claro, existem zonas de atrito, por exemplo, a respeito do comércio com
os países da Ásia Central pós-soviética, onde a China, desde 2009,
ultrapassou a Rússia. Mas Pequim até agora respeitou a preferência dos
interesses geopolíticos de seu vizinho e não procurou introduzir suas
bases. O governo chinês reconhece o Tratado de Segurança Coletiva
assinado entre Moscou e a maioria dos Estados da região.5 Por
outro lado, apesar das solicitações repetidas do Kremlin, que quer uma
cooperação entre a Otan e o Tratado de Segurança Coletiva como base da
cooperação no entorno do Afeganistão, os Estados Unidos sempre se
recusaram, preferindo tratar separadamente com cada Estado todos os
problemas, como a instalação de bases ou a passagem dos fornecimentos
para suas tropas.
Putin não busca uma competição a qualquer preço com os Estados Unidos,
para a qual ele, evidentemente, não possui meios. É certo que, se cada
um acusa o outro de adotar uma mentalidade de Guerra Fria, isso pode
gerar confusão. Mas quando a Rússia se alegra com as derrotas
internacionais de Washington, é mais por despeito do que por espírito de
revanche. Assim, ela não deseja uma derrota dos Estados Unidos no
Afeganistão nem sua retirada precipitada do país. Quanto ao
enfrentamento no caso sírio, isso diz respeito, em primeiro lugar, às
regras do jogo internacional. A Rússia procura um reequilíbrio da ordem
mundial que faria que suas relações com os Estados Unidos e com o mundo
euro-atlântico recomeçassem sobre uma base nova – o que não impede
também que haja uma competição feroz em alguns setores onde ela se
encontra bem armada: assim, ela tem grandes chances de ver seu projeto
de gasoduto South Stream ganhar do projeto Nabucco, apoiado por
Washington.6
Está na hora de o grande reequilíbrio perseguido obstinadamente pelo
Kremlin acontecer? Sua ambição de recuperar outro papel que não o de
subalterno estaria se realizando? O sucesso de Putin no caso sírio
alimenta o sentimento – ou talvez a ilusão – de que a multipolaridade
estaria se impondo a Washington. A deserção do Reino Unido, o aliado
incondicional dos Estados Unidos, seria um sinal dos tempos, assim como
os debates que se seguiram após o encontro do G20 em São Petersburgo,
onde uma oposição a qualquer aventura militar na Síria se expressou com
força.7 A aversão que se manifestou no Congresso norte-americano seria outra.
Para os analistas russos mais sóbrios, não se deve mirar nos
neoisolacionistas do Congresso, mas em Obama, ou seja, em quem não quer
um desengajamento desestabilizador, mas deseja um alívio dos conflitos
mais perigosos com base em compromissos internacionais – sendo os dois
conflitos mais ameaçadores os que dizem respeito à Síria e ao Irã (e que
estão estreitamente ligados), para cuja solução a Rússia estima poder
contribuir muito.
A aproximação entre Washington e Moscou no caso sírio começou bem antes
da espetacular reviravolta de setembro. Em maio de 2013, John Kerry
tinha expressado ao seu homólogo russo sua aprovação a respeito do
projeto de uma conferência internacional consagrada ao futuro da Síria,
continuando ao mesmo tempo a exigir a saída de Al-Assad. No encontro do
G8 de junho em Lough Eme, na Irlanda do Norte, uma declaração comum
sobre a Síria foi retardada para obter o aval de Putin. O compromisso de
Al-Assad de se desfazer de suas armas químicas, se for confirmado, dará
ao dirigente russo uma legitimidade junto às chancelarias ocidentais.
Moscou já insiste há meses para que Teerã participe da conferência
internacional planejada, a fim de que ela tenha uma chance de se
realizar. Até agora, estimulados por Israel, os Estados Unidos
recusaram. É por isso que a Rússia se empenha em ativar o diálogo
iniciado entre Obama e o novo presidente iraniano, Hassan Rohani. Mesmo
um princípio de compromisso no caso nuclear facilitaria uma dinâmica de
grupo. Moscou trabalha, inclusive, para reforçar suas relações com o
Irã, que se degradaram após seu alinhamento com numerosas sanções
solicitadas por Washington ao Conselho de Segurança em 2010. Na época,
Moscou anulou a entrega de mísseis de defesa antiaérea SS-300 a Teerã.
Oportunidade desperdiçada
Não é a primeira vez que Putin busca estabelecer uma relação forte com
os Estados Unidos, sobre a base de uma igualdade ao menos relativa. Isso
foi visto após os ataques de setembro de 2001, quando ele acreditou ver
a abertura de uma fresta de oportunidade. Sem condição prévia, ele
facilitou a instalação de bases militares norte-americanas em seus
aliados da Ásia Central para a guerra do Afeganistão. E para significar
sua vontade de ir ainda mais longe nesse abrandamento, ele fechou as
últimas instalações militares soviéticas de vigilância em Cuba (pouco
importantes, é verdade). Mas, nos meses que se seguiram, George W. Bush
deu o sinal verde final para a entrada das três repúblicas bálticas na
Otan e anunciou a retirada norte-americana do tratado de defesa
antibalística (ABM), que limitava estritamente as armas de defesa
antimíssil. O avanço chegou ao fim. Putin estima que agora seja possível
retomar uma cooperação mais bem-sucedida.
Uma hipoteca importante pesa, no entanto, sobre as chances de tal
evolução; e ela tem a ver com os negócios internos russos. Desde seu
retorno à presidência, em 2012, num contexto de manifestações populares
de oposição de grande amplitude em Moscou, Putin, para melhor
estabelecer seu poder, passou a cultivar o antiamericanismo como um dos
componentes do nacionalismo russo. Isso aparece principalmente nas leis
que obrigam as ONGs russas que recebem financiamentos do exterior, mesmo
que sejam poucos, a se declararem a serviço de interesses estrangeiros.
Encontra-se aqui um rastro de sua formação na KGB, que o leva a ver as
manobras e influências externas como a causa essencial dos problemas
internos e como fatores de instabilidade política. Um agravamento ou,
pelo contrário, uma correção do déficit de legitimidade de seu poder
pesará inevitavelmente na realização de suas ambições internacionais.
Jacques
Lévesque é professor da faculdade de Ciências Políticas e Direito da
Universidade de Québec, em Montreal, e autor, entre outros livros, de 1989,
la fin d'un empire: l'URSS e la libération de l'Europe de l'Est. [1989,
o fim de um império: a URSS e a libertação do Leste Europeu], Paris, Presses de Sciences Po, 1995.
Ilustração: Kevin Lamarque / Reuters 1 Ler “Eu, presidente da Bolívia, sequestrado em um aeroporto europeu”, Le Monde Diplomatique Brasil, ago. 2013. 2 Patrick Wintour, “John Kerry gives Syria week to hand over chemical weapons or face attack” [John Kerry dá uma semana para a Síria entregar as armas químicas ou enfrentar ataque], 10 set. 2013, TheGuardian.com. 3 Ler “The Caucasus and Russia’s Syria policy” [O Cáucaso e política russa para a Síria], 26 set. 2013. Disponível em: . 4 Organização criada em junho de 2001 e à qual aderiram China, Cazaquistão, Quirguistão, Uzbequistão, Rússia e Tadjiquistão. Entre os Estados observadores figuram Índia, Irã, Paquistão... 5 Os Estados-membros são, além da Rússia, a Armênia, a Bielorrússia, o Cazaquistão, o Quirguistão e o Tadjiquistão. 6 South Stream é um projeto de gasoduto que religa a Rússia à Europa, contornando a Ucrânia. Nabucco é um projeto que deveria religar os campos de gás do Mar Cáspio à Europa. 7 Ler Michael T. Klare, “A visão dupla dos Estados Unidos”, Le Monde Diplomatique Brasil, out. 2013. |
sexta-feira, 24 de janeiro de 2014
A Rússia voltou - Enquanto as revelações de espionagem sistemática dos aliados embaraçam Washington, Moscou enfileira sucessos na cena internacional (Snowden e Síria). Herdeira de uma diplomacia temida, mas enfraquecida após o fim da URSS, a Rússia acredita ter finalmente retomado o posto de grande potência
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