Esse Estado não existe
Os EUA dizem querer a paz com Israel. Verdade? E Netanyahu quer?
por Gianni Carta — publicado 06/11/2013
Os assentamentos israelenses continuam, em Jerusalém Leste e na Cisjordânia
Talal, quarentão robusto, sorri com um compreensível desdém quando falo do processo de paz entre Palestina e Israel, supostamente iniciado no fim de julho último pelo secretário de Estado John Kerry. Estamos em Balata, o maior campo de refugiados ao norte da Cisjordânia, nas cercanias de Nablus. Na sala modesta, sentados em sofás de couro puído estão dois irmãos, a mãe com véu e o tradutor.
Tomamos chá cercados de fotos e pôsteres de cinco irmãos de Talal mortos na Segunda Intifada (revolta contra Israel), de 2000 a 2005. São todos considerados “mártires” pelos palestinos. Talal tinha dez irmãos. Talal e os demais quatro vivos passaram anos presos e foram torturados. Pedreiro, Talal ficou com o braço esquerdo imobilizado atingido por vários tiros quando foi capturado pelos soldados israelenses. Passou nove anos atrás das grades. Como Talal, os outros irmãos sobreviventes têm algum problema físico e todos estão desempregados. Vivem de bicos em um lugar onde cerca de 50% dos residentes não têm emprego. Dezoito pessoas moram na casa de quarto e sala. “O senhor quer saber o que penso do processo de paz?” “É uma piada de mau gosto.” E Talal conclui: “O senhor quer saber o que penso dos israelenses? Roubaram nossas terras e hoje somos refugiados”.
Em Balata, 30 mil almas vivem no espaço de 1 quilômetro quadrado. As casas, várias com pôsteres de mártires estampados nas suas entradas, parecem empilhadas umas sobre as outras. Crianças jogam futebol em ruelas. A polícia israelense, na região para proteger os colonos israelenses, costuma fazer visitas para prender ladrões de carro, comerciantes de armas ilegais e traficantes de drogas. Enquanto isso, a situação não é melhor em outros campos de refugiados, onde prisões e mortes de residentes são frequentes. E o fato de as Nações Unidas terem feito drásticos cortes na Palestina dificulta o quadro.
No entanto, em Balata sobrevive alguma esperança graças ao trabalho de pessoas iluminadas. Uma delas chama-se Abdullah Kharoub, administrador e professor de língua árabe no Centro Cultural Yafa. Fundado em 1996, o centro depende do financiamento de organizações estrangeiras. Os funcionários são voluntários por um tempo, e depois passam a receber salário. “Nosso objetivo principal é mostrar que os palestinos não são um bando de terroristas, eles são gente normal e querem viver como qualquer um”, diz Kharoub. O centro oferece debates, cursos de árabe, música, informática, teatro e psicólogos para mães e crianças com traumatismos. O centro quer dar um norte para essas crianças que um dia habitarão (talvez) um Estado nacional.
A caminho de Ramallah, a capital da Cisjordânia, pergunto a mim mesmo: mas qual é o destino deste povo sem Estado? John Kerry, que costumava frequentar o palácio de Bashar al-Assad, resolveu há escassos meses selar a paz entre israelenses e palestinos. Nove meses. Faz, diga-se, 22 anos que negociações de paz fracassaram. E as negociações haviam cessado três anos atrás. Ademais, o premier israelense Benjamin Netanyahu continua a encorajar novos assentamentos em Jerusalém Leste e na Cisjordânia, territórios palestinos onde a colonização israelense é proibida e condenada pela chamada “comunidade internacional”. Mas Kerry diz que o importante é continuar a negociar com ou sem assentamentos.
Sobre a mesa dos encontros secretos as questões mais prementes são: um, estabelecer um Estado palestino sobre as terras anexadas por Israel na Guerra de Seis Dias, de 1967; dois, o futuro dos assentamentos; três, a questão dos refugiados que tiveram de deixar suas terras na guerra de 1948, quando Israel foi criado; quatro, o status de Jerusalém. Netanyahu sabe que tem de levar adiante as colonizações, caso contrário a frágil coalizão, na qual figuram numerosos políticos favoráveis à colonização (e a não ceder em qualquer uma das questões acima citadas), implodiria. É o compromisso que assume para poder soltar 104 prisioneiros em nove meses, segundo o programa das negociações.
A contínua colonização da Cisjordânia enfraquece Mahmoud Abbas, também conhecido como Abu Mazen, o presidente da Autoridade Palestina (AP). O motivo? Durante dois anos frisou que não negociaria com Netanyahu, caso ele não cessasse os assentamentos. Abbas disse na semana passada que várias questões estão sendo discutidas. Enquanto isso, Ismail Haniyeh, o premier de Gaza, pede um fim para as negociações de paz e convida o povo a se preparar para uma terceira Intifada. Para Haniyeh, Israel estaria envolvido nessas negociações somente para “melhorar sua imagem” no Oriente Médio. Haniyeh, que ao se tornar premier no pleito de 2006, candidato pelo partido islâmico Hamas, rompeu com a legenda laica Fatah, liderada por Abbas. Eclodiu uma guerra civil entre o Hamas e o Fatah, este foi expulso de Gaza, e hoje Haniyeh administra o Estreito e rompeu com a AP e Abbas. No entanto, na nova insurreição, Haniyeh e o Hamas querem se unir a Abbas e ao Fatah.
Para vários observadores, Haniyeh quer realizar novas eleições gerais na Palestina, incluindo Gaza e Cisjordânia, porque está isolado. De saída, o Hamas tomou, segundo a mídia, posição contrária à Síria de Bashar al-Assad. O líder sírio é defendido pelo Hezbollah, movimento político e armado xiita libanês e financiado pelo Irã. O Hamas, que, como o Fatah, também é um movimento político com braço armado, perdeu, assim, importantes aliados. Perdeu também a preciosa aliança com Mohamed Morsi no Egito e a chegada dos militares, que destruíram mais de mil túneis entre Gaza e Egito. Os túneis eram fontes para impostos cobrados pelo governo de Gaza sobre mercadorias comerciadas. Além disso, o governo egípcio fechou o terminal para Rafah, única opção para os residentes palestinos saírem de Gaza, além do quase impenetrável terminal de Erez, do lado israelense. No entanto, Abbas parece não ter levado em conta a proposta de Haniyeh.
Em Ramallah, a cientista política Nadia Abu Zaher, que trabalha no Conselho Legislativo Palestino, afirma “não acreditar na relação entre os líderes do Fatah e do Hamas”. A razão? “O Fatah não quer abrir mão de seu poder na Cisjordânia e o Hamas em Gaza. Além disso, um partido é religioso e o outro é laico.” Na Universidade Hebraica de Jerusalém, o cientista político Dan Avnon concorda que o Hamas está isolado e por isso precisa se unir ao Fatah. Mas Avnon avança mais três teorias para explicar o motivo que levou Kerry a reiniciar as negociações. “As mudanças da política nuclear no Irã podem ter levado Israel a julgar propício o momento para negociar com a Palestina.” Acrescente-se a isso que talvez Netanyahu esteja de fato pensando que é o momento de “reposicionar Israel em relação à Palestina”. O acadêmico, no entanto, parece demasiado otimista em relação aos assentamentos, os quais, sustenta, não parecem tão negativos visto que haverá trocas de terras e alguns assentamentos serão desmantelados.
O doutor Hamad Ghazi, vice-premier de Gaza, certamente não concorda com Avnon. “Os Estados Unidos apenas administram a crise.” “Veja”, prossegue o vice-premier, “tenho 48 anos, meus pais nasceram em Tel-Aviv e eu vivo como um refugiado.” Enquanto isso, Israel abre as portas para imigrantes. “Quero voltar para a terra de meus pais, aquela de 1948. Não devemos desistir.” Ghazi continua: “Gaza é a maior prisão do mundo”. Indago se a luta armada é a única solução. “Claro que é. Uma intervenção militar não é proibida contra o invasor.” Mas seria possível o Hamas se unir ao Fatah? “Claro que sim.” De fato, ataques individuais contra soldados israelenses e colonos têm aumentado de um ano para cá. E esses ataques encorajam mais ataques e podem virar um movimento de massa.
Mahmoud al-Zahar também concorda que a única solução contra Israel é a luta armada. “Começamos a negociar em 1991, em Madri, mas nunca houve um processo de paz, e sim um apoio à ocupação israelense”, diz o ex-ministro do Exterior e um dos fundadores do Hamas. Aponta-se para Al-Zahar como o líder, mas, por questões de segurança contra ataques israelenses, ele faria parte apenas do conselho do Hamas. Tudo leva a crer, porém, que esse médico, que já sofreu atentados, é de fato líder do Hamas. Em um dos atentados, seu filho Khaled e um segurança foram mortos quando um F16 israelense lançou uma bomba sobre sua casa.
De todo modo, aos 68 anos, Al-Zahar é considerado um terrorista pelas forças israelenses. Outro filho seu, cujo pôster está pendurado ao lado de sua cadeira, foi morto durante um confronto armado. Indago a Al-Zahar na imponente sala de estar da sua casa, onde as várias poltronas sugerem tratar-se de centro de encontro, se o movimento não estaria isolado agora sem o apoio do Egito, da Síria, do Irã, do Hezbollah e até do Líbano. “Isso é pura invenção da mídia”, retruca Al-Zahar. “Nós não nos metemos em nenhum desses países. Nosso único objetivo é defender Gaza.”
Qualquer que seja o caso, Gaza foi certamente afetada pela mudança de regime no Egito. E pelos cortes feitos por Israel principalmente para a indústria de construção. Isso nem o ministro da Economia, Ala Al-Rafati, nega para CartaCapital. “Com a destruição dos túneis para o Egito nossa economia perde cerca de 230 milhões de dólares ao mês, ou um décimo do nosso PIB”, esclarece. O nível de desemprego está na faixa dos 40%. Israel impôs restrições nas exportações de cimento e aço e, assim, a indústria de construção que ia de vento em popa está sofrendo. A escassez de gasolina torna o transporte mais caro, e os preços estão em ascensão.
No porto de Gaza City, há poucos pescadores. Falta combustível e os barcos mal conseguem atingir as 3 milhas, onde podem chegar para pegar peixes maiores. Antes as milhas eram 12, mas Israel cuidou de encolher brutalmente o espaço. “Conseguimos pescar apenas algumas sardinhas”, diz um pescador. Naqueles poucos quilômetros de costa mediterrânea, a decrépita Gaza é linda. Um monumento em homenagem ao barco Mavi Mamara, que em maio de 2010 fazia parte de uma flotilha para romper um bloqueio israelense e nove cidadãos turcos foram mortos, ocupa uma posição central do pequeno porto. Uma bandeira turca ao lado do monumento tremula com a leve brisa.
Antes de voltar para casa, o tradutor Hussem telefona com o celular para Ismail Haniyeh, o premier. “Ele vai nos receber para uma entrevista?” Haniyeh: “Jornalistas estrangeiros, eles distorcem tudo”. Hussem: “Mas este é honesto”. Haniyeh: “Todos dizem que são honestos. Mas fala para ele vir apertar minha mão no campo de futebol, quero conhecê-lo”. Minutos depois, vejo um homem de cabelos brancos, elegante, caminhar em minha direção em um campo de futebol. Ele brinca: “Minhas ligações com o Brasil são futebolísticas e nos conhecemos em um campo de futebol”. Ele não quer falar de política. “Vamos falar do Pelé, do Ronaldo.” Ele joga em que posição? “Sou meio-campista. Jogo bem, sim. Fica para ver.”
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