Nem mágica, nem dom. Pedra a lapidar
Professores de ciências devem estimular diferentes habilidades nos estudantes de modo a auxiliá-los no desenvolvimento da criatividade. Segundo bióloga e educadora, é preciso valorizar a dedicação e o trabalho, mais do que simplesmente transmitir conceitos.
Por: Vera Rita da Costa
Publicado em 03/10/2013 | Atualizado em 03/10/2013
A inteligência e a criatividade frequentemente associadas à figura do cientista e do artista, como Beethoven (na imagem), não devem ser tratadas como dom e sim como fruto de trabalho e dedicação. (imagem: detalhe de quadro de Carl Schloesser)
São muitas as possíveis explicações para a origem do mito do cientista genial, excêntrico, louco e um tanto quanto desleixado. Há justificativas de caráter histórico, como o fato de a ciência institucionalizada ter sua origem nas catacumbas, na fuga das perseguições da Inquisição, e de os primeiros cientistas terem sua figura original associada aos alquimistas. Outras apontam a função arquetípica do mito, segundo ateoria junguiana, como observamos em comentários postados no nosso Facebooksobre o texto que publicamos anteriormente, ‘O cientista no imaginário popular’.
O fato é que o mito do cientista genial e excêntrico existe e ganhou (e ainda ganha) muita força com a popularização de biografias que destacam aspectos inusitados da vida desses personagens, assim como de suas imagens. Fotos de Albert Einstein com sua cabeleira desgrenhada, a língua de fora ou andando de bicicleta descabelado ajudaram, sem dúvida, a reforçar o mito, contribuindo para a consolidação do imaginário popular sobre o cientista.
Também serviram a essa função as caricaturas de Charles Darwin divulgadas logo em seguida à publicação de A origem das espécies. Nesse caso, no entanto, com outra intenção, muito mais consciente e agressiva – e com efeitos muito mais negativos para a imagem da ciência e do cientista.
Criatividade e inteligência
Do ponto de vista da educação e do ensino de ciências é interessante refletir sobre essas questões. Não apenas porque o mito do cientista genial e excêntrico influencia diretamente o trabalho desenvolvido com os alunos, mas também porque acaba por influenciar a própria concepção que se leva para a sala de aula do que é inteligência e, sobretudo, do que é criatividade.
Por conta desses estereótipos, não é raro, por exemplo, encontrar professores cujas concepções de inteligência e criatividade estão diretamente associadas às ideias de dom, de excentricidade e até de loucura. E, infelizmente, o que se constata é que essas ideias estão presentes muito mais do que o desejável, sobretudo quando o esperado é que os professores não discriminem seus alunos com base em dons ou outras características consideradas inatas.
Afinal, se consideradas dom ou excentricidade, por que investir na inteligência ou criatividade dos alunos? Basta rotular quem é quem (e, em geral, fazemos isso de forma inconsciente, quando não atentos para a questão) e investir em alguns ou até mesmo deixar a aprendizagem se desenvolver assim, de maneira espontânea e desesperançosa, ao sabor dos dons ou das características pessoais de cada um. Para quem é da área de educação esses posicionamentos são bem conhecidos. Pode-se não assumi-los publicamente, como posicionamentos conscientes, mas eles ainda estão muito presentes entre nós.
Ao contrário disso, no entanto, o que se espera de um bom professor, principalmente de ciências, é que estimule a inteligência e a criatividade de seus alunos, considerando-as um potencial presente e passível de ser desenvolvido em todos. É preciso planejar e intervir nessa direção, não se omitir.
Em seu livro A dinâmica da criação, lançado este ano no Brasil, o psiquiatra inglês Anthony Storr aponta para um item interessante: a inteligência e, principalmente, a criatividade associadas às figuras do artista e do cientista. Discute também a questão do gênio e da loucura ligada a esses personagens.
Insatisfação primordial
Em determinado momento, o autor traça um retrato do indivíduo criativo que é muito interessante para educadores. Diz ele que, no caldeirão de combinações que leva à criatividade, o que é comum a todos os humanos é a sensação de insatisfação, de frustração e de descontentamento que nos acompanha desde o nascimento.
Ou seja, não há dom, criatividade ou inteligência iniciais que condicione alguém a ser artista ou cientista. O que há é a frustração original de não ser atendido em todos os desejos e necessidades, por mais atenção que se tenha ao nascer. Na perspectiva de Storr, pessoas muito criativas são exemplos extremos de um fenômeno humano compartilhado por todos e uma consequência das frustrações próprias da infância.
Se alguns se tornam mais criativos que outros, escolhendo e destacando-se nas artes ou nas ciências, isso se deve às escolhas que fazem e à forma como lidam, em sua vida futura, com essa insatisfação primordial. Na arte e na ciência, por exemplo, grande parte dessa insatisfação é canalizada para realizações e satisfações abstratas e simbólicas.
Além disso, Storr sugere que arte e ciência, relacionadas com o estado de descontentamento original, podem se associar também a estados patológicos muito comuns, que caracterizam, por exemplo, os distúrbios depressivos e esquizoides. Do ponto de vista do autor, portanto, todos carregam da infância para a vida adulta o fardo de suas insatisfações e sofrem, em maior ou menor grau, de diferentes “psicopatologias”. A criatividade seria apenas uma das maneiras a que alguns recorrem para lidar com essas frustrações.
Como se pode perceber, também se encontra nas ideias do psiquiatra inglês uma possível explicação para os mitos relacionados às figuras do artista e do cientista, sobretudo buscam associá-los à excentricidade e à loucura. Segundo ele, a criação artística, assim como a científica, é importante fortaleza contra a ansiedade básica e tem, portanto, um enorme valor adaptativo para a espécie humana. A associação direta que se deve fazer, a seu ver, é a da arte e da ciência com a criatividade, não com a loucura. “Para certas pessoas, é a não criação que pode levar à loucura, não o contrário”, alerta.
Combinação de habilidades
Do ponto de vista da educação, a concepção de criatividade apresentada por Anthony Storr é também muito interessante. Diferentemente da ideia bastante disseminada de que a criatividade é um dom, considera-se aqui que a criatividade é uma combinação especial de habilidades a serem desenvolvidas.
Quais seriam elas? Justamente aquelas capazes de elevar o descontentamento humano de uma condição de ansiedade e insegurança frente ao mundo à condição de criação, na qual se confere ordem e se adquire segurança perante o desconhecido. Alguns exemplos dessas habilidades fundamentais à criatividade e ao seu desenvolvimento: o autocontrole, a autoaceitação, a tolerância, a responsabilidade, o domínio técnico e a eficiência intelectual.
É possível perceber, portanto, que mais uma vez entra em cena na educação e, sobretudo, na educação científica, a necessidade de valorizar o trabalho focado no desenvolvimento de habilidades e atitudes desejáveis, muito mais do que na transmissão pura e simples de conceitos. Longe de se considerar a criatividade um fato dado e estabelecido pela natureza, aponta-se para a necessidade de se investir nela ou, ainda, investir no conjunto de habilidades emocionais, sociais e cognitivas que caracterizam aquilo a que se costuma chamar de criatividade e se associa com frequência à originalidade e à genialidade do cientista.
A lição que se tira dessas ponderações é a de que não há mágica ou dom na criação ou na produção do conhecimento. Há, sim, uma grande dose de sofrimento e trabalho, tanto da parte do criador quanto daqueles que se dispõem a estimulá-lo.
Vera Rita da Costa
Ciência Hoje/ SP
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