O nascimento do mundo “des-americanizado”
A intuição de Antonio Gramsci precisa ser atualizada: a velha ordem morreu, e a nova ordem está um passo mais perto de nascer
17/10/2013
Pepe Escobar,
Asia Times Online
É
isso. A China decidiu que “basta!” Tirou as luvas (diplomáticas). É
hora de construir um mundo “des-americanizado”. É hora de “uma nova
moeda internacional de reserva” substituir o dólar estadunidense.
Está tudo lá, escrito, em editorial da rede Xinhua,
saído diretamente da boca do dragão. E ainda estamos em 2013. Apertem
os cintos – especialmente as elites em Washington. Haverá fortes
turbulências.
Longe vão os dias de Deng Xiaoping de “manter-se discreto”. O editorial de Xinhua
mostra, em formato sintético, a gota d’água que fez transbordar o copo
do dragão: o recente ‘trancamento’ (shutdown) nos EUA. Depois da crise
financeira provocada por Wall Street, depois da guerra do Iraque, um
mundo “desentendido”, não só a China, quer mudança.
Esse parágrafo não poderia ser mais explícito:
“Sobretudo,
em vez de honrar seus deveres como potência liderante responsável, uma
Washington interessada só em si mesma abusa de seu status de
superpotência e gera caos ainda mais profundo no planeta, disseminando
riscos financeiros para todo o mundo, instigando tensões regionais e
disputas territoriais, e guerreando guerras ilegítimas, sob o manto de
deslavadas mentiras.”
A solução, para Pequim, é
“des-americanizar” a atual equação geopolítica – a começar por dar voz
mais ativa no FMI e no Banco Mundial a economias emergentes e ao mundo
em desenvolvimento, o que deve levar à “criação de uma nova moeda
internacional de reserva, a ser criada para substituir o dólar
estadunidense hoje dominante”.
Observe-se que
Pequim não advoga a sumária extinção do sistema de Bretton Woods – não,
pelo menos, já; quer, isso sim, mais poder para decidir. Parece
razoável, se se considera que a China tem peso apenas ligeiramente
superior ao da Itália, no FMI. A “reforma” do FMI – ou coisa parecida –
está em andamento desde 2010, mas Washington, como seria de esperar,
vetou todas as alterações substanciais, até agora.
Quanto
ao movimento para afastar-se do dólar estadunidense, também já está em
andamento, com graus variados de velocidade, especialmente no que diga
respeito ao comércio entre os países BRICS, as potências emergentes
(Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que já está sendo feito,
hoje, predominantemente, nas respectivas moedas. O dólar estadunidense
está lentamente, mas firmemente, sendo substituído por uma cesta de
moedas.
A “des-Americanização” também já está em
curso. Considere-se, por exemplo, a ofensiva de charme dos chineses pelo
Sudeste Asiático, que está acentuadamente começando a inclinar-se na
direção de mais ação com principal parceiro econômico daqueles países, a
China. O presidente Xi Jinping da China, fechou vários negócios com a
Indonésia, a Malásia e também com a Austrália, apenas umas poucas
semanas depois de ter fechado outros vários negócios com os ‘-stões’ da
Ásia Central.
A empolgação chinesa com promover a
Rota da Seda de Ferro alcançou nível de febre, com as ações das
empresas chinesas de estradas de ferro subindo à estratosfera, ante o
projeto de uma ferrovia de trens de alta velocidade até e através da
Tailândia já virando realidade. No Vietnã, o premiê chinês Li Keqiang
selou um entendimento segundo o qual querelas territoriais entre dois
países no Mar do Sul da China não interferirão com mais e novos
negócios. Pode-se chamar de “pivotear-se” para a Ásia.
Todos a bordo do petroyuan
Todos
sabem que Pequim possui himalaias de bônus do Tesouro dos EUA –
cortesia daqueles massivos superávits acumulados ao longo dos últimos 30
anos, mais uma política oficial de manter lenta, mas segura, a
apreciação do yuan.
E Pequim, simultaneamente,
age. O yuan está também lenta, mas em segurança, se tornando mais
conversível nos mercados internacionais. (Semana passada, o Banco
Central Europeu e o Banco do Povo da China firmaram acordo para uma
troca de moeda (orig. swap) de US$45-$57 bilhões, que aumentará a força
internacional do yuan e melhorará seu acesso ao comércio financeiro na
área do euro.)
A data não oficial para a total
conversibilidade do yuan cairá em algum ponde entre 2017 e 2020. A meta é
clara: afastar-se de qualquer respingo da dívida dos EUA, o que implica
que, no longo prazo, Pequim está-se afastando desse mercado – e, assim,
tornando muito mais caro, para os EUA, tomarem empréstimos. A liderança
coletiva em Pequim já fechou posição sobre isso e está agindo nessa
direção.
O movimento na direção da plena
conversibilidade do yuan é tão inexorável quanto o movimento dos BRICS
na direção de uma cesta de moedas que, progressivamente, substituirá o
dólar estadunidense como moeda de reserva. Até lá, mais adiante nessa
estrada, materializa-se o evento cataclísmico real: o advento do
petroyuan – destinado a ultrapassar o petrodólar, tão logo as
petromonarquias do Golfo vejam de que lado ventam os ventos históricos.
Então, o bate-bola geopolítico será outro, completamente diferente.
Pode
ser processo longo, mas é certo que o famoso conjunto de instruções de
Deng Xiaoping está sendo progressivamente descartado: “Observe com
calma; proteja sua posição; lide com calma, com as questões; esconda
nossas capacidades e aposte no nosso tempo; seja discreto; e jamais
reclame a liderança.”
Uma mistura de cautela e
escamoteamento, baseada na confiança que os chineses têm na história, e
levando em consideração uma grave ambição de longo prazo – era Sun Tzu
clássico. Até aqui, Pequim andou devagar; deixando que o adversário
cometa erros fatais (e que coleção de erros de multi-trilhões de
dólares...); e acumulando “capital”.
Agora,
chegou a hora de capitalizar. Em 2009, depois da crise financeira
provocada por Wall Street, ainda havia chineses que resmungavam contra
“o mau funcionamento do modelo ocidental” e, em suma, contra o “mau
funcionamento da cultura ocidental”.
Beijing
ouviu [Bob] Dylan (legendado em mandarim?) e concluiu que, sim, the
times they-are-a-changing [os tempos estão mudando].[2] Sem que se veja
nem sinal de avanço social, econômico e político – o ‘trancamento’
[shutdown] nos EUA seria outra perfeita ilustração, se se precisasse de
ilustração – de que os EUA deslizam tão inexoravelmente quanto a China,
pena a pena, vai abrindo as asas para comandar a pós-modernidade do
século 21.
Que ninguém se engane: as elites de
Washington lutarão contra, como se estivessem ante a pior das pragas.
Mesmo assim, a intuição de Antonio Gramsci precisa ser atualizada: a
velha ordem morreu, e a nova ordem está um passo mais perto de nascer.
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