O Brasil do carro e o do ônibus
Por: Fernando Neves | Em: Vida prática | 02/10/2013
No auge do mau humor geral diante da imobilidade urbana não é raro demonizarem o carro. Tem carro demais, o governo só pensa em carro, a prefeitura só faz rua para carro e por aí vai. Muito bem, não sou dado a superficialidade, prefiro entender melhor o que se passa. Vamos por partes, então. Comprar é a concretização de um legítimo desejo de consumo.
As pessoas compram para se locomover e também para ostentar sua ascensão social. Sim, carro é uma marca de prosperidade e o único dos bens de consumo que você desfila na frente de todo mundo sem que ninguém reclame (muito) da sua ostentação porque, afinal de contas, se comprou tem de usá-lo. Bom, mas e daí?
Não seria melhor então que a sociedade se tornasse menos consumista, deixasse de comprar carro e andasse só de ônibus? Sim e não. Sim, é bom ser menos consumista. Não, porque acho bobagem obrigar todo mundo a andar junto o tempo todo, sem ter o direito à locomoção individual. E atire a primeira calota aquele que topa deixar de usar seu carro para sempre em nome da coletividade e da mobilidade.
Pois é… As pessoas mais conscientes encaram bem o uso do transporte público em algumas ocasiões, mas daí a abrir mão de seu direito de consumo vai uma distância maior que o comprimento do rio Amazonas. É bom lembrar que comprar carro no Brasil é relativamente fácil. As taxas de juros são atraentes, as condições de entrada são encantadoras e há concorrência entre as marcas como nunca se viu antes.
Sem exagero, até porque são 13 empresas fabricantes de carros, picapes e SUVs, fora os importados, trazidos tanto por empresas sem fábrica no Brasil quanto pelas que produzem em nosso território.
E ônibus? Bom comprar é mais acessível ainda. Por ser bem de produção, o BNDES financia a juros de 4% ao ano. Para quem não está bem familiarizado, vai uma explicação simples: com inflação anual na casa dos 7%, a taxa de juros é negativa. Ou seja, o governo praticamente paga para as empresas comprarem ônibus. E tem mais, existem pelo menos três programas de incentivo à aquisição de ônibus, todos ainda em fase de adequação ou análise.
O mais conhecido deles é o Inovar Auto (Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores). O programa estabelece tributação mais baixa para os ônibus e micro-ônibus (e demais veículos automotores) produzidos no Brasil com peças, material produtivo e ferramental adquiridos majoritariamente no mercado local ou regional (Mercosul).
Os outros dois ainda tramitam pelo Congresso Nacional, são o PLS 242/2012 e o PLC 310/2009. O primeiro é iniciativa do Senado e o segundo da Câmara dos Deputados.
No PLS (Projeto de Lei do Senado) 242 fica estabelecido o Regime Tributário para o Incentivo à Modernização e à Ampliação do Transporte Coletivo de Passageiro (Retransp).
O programa isenta por cinco anos a cadeia produtiva do transporte de IPI, PIS, Pasep e Cofins. Ou seja, zero imposto na compra de ônibus e peças para beneficiar concessionários, permissionários ou arrendatários de transporte coletivo de passageiros.
A outra iniciativa é o PLC (Projeto de Lei da Câmara) 310/2009, que cria o Regime Especial de Incentivos para o Transporte Coletivo Urbano e Metropolitano de Passageiros (Reitup). Mais isenção – PIS e Cofins – dessa vez nas tarifas cobradas. A desoneração tributária completa, de acordo com o projeto, será maior se estados e municípios concordarem em abrir mão ou reduzirem, respectivamente, o recolhimento de ICMS e ISS.
Mas, então, com juros negativos e tanto interesse em facilitar a aquisição de ônibus por que raios há imobilidade urbana? Porque o problema não está no número de carros nem de ônibus. Está nas ruas propriamente ditas.
Vila Olímpia
Vamos dar uma olhada em um exemplo emblemático, o bairro de Vila Olímpia, em São Paulo. Para quem não conhece, trata-se de uma região com elevada concentração de prédios comerciais espalhados em ruas pequenas. Some a isso o fato de os horários comerciais serem praticamente os mesmos em todas as empresas, ou seja, as pessoas se locomovem para dentro e para fora desses prédios em grandes massas humanas em horários iguais. Uma parte dessas pessoas vai de transporte coletivo, outra de carro.
Vamos imaginar a saída dos funcionários de um edifício na Al. Raja Gabaglia (12 conjuntos comerciais de 260 metros quadrados cada), um outro na Rua Gomes de Carvalho (28 conjuntos de 215 metros quadrados) e o terceiro na Rua Tenerife (13 conjuntos de 308 metros quadrados). Antes, entretanto, vamos fazer umas contas. Em 24 metros quadrados podem trabalhar com folga quatro pessoas. Assim, no primeiro edifício teríamos aproximadamente 516 pessoas, no segundo umas 1.008 e no terceiro por volta de 663 funcionários.
Em apenas três prédios temos 2.187 pessoas. Se um terço for ao trabalho de carro e se considerarmos veículos de quatro metros de comprimento (comprimento de carro pequeno e muito vendido no mercado, ok?), são 2.916 metros de espaço linear na rua. Os outros vão de ônibus, mas não todos na mesma linha, claro. Então, vamos considerar umas 50 pessoas por ônibus – claro que na hora do rush viajam bem mais. Isso significa que para levar e retirar desses três prédios as mais de 1.400 pessoas serão necessários uns 29 ônibus. Com uns 8 metros de comprimento aproximado eles ocupam 232 metros lineares.
É bom lembrar que em cada uma dessas ruas tem mais de um prédio comercial e que o traço comum entre elas é que não são avenidas largas, mas vias de trânsito local. Assim, esses números estão propositadamente subestimados.
Agora, outra situação: Rio de Janeiro, zona sul, rua Bento Lisboa. Uma rua pequena que desemboca no Largo do Machado tem um condomínio com uns 860 apartamentos, cada um com uma vaga de garagem. Se metade sair de carro serão 1.720 metros lineares ocupados.
Pois é, então por que isso existe? Culpa dos carros? Da falta de ônibus? Não. Culpa da ausência de planejamento urbanístico. Não há plano diretor nas cidades grandes que permita a expansão de moradias e empregos sem causar monumentais congestionamentos.
Todo mundo tem direito a ir e vir sem se sentir uma sardinha em lata, todo mundo tem direito a realizar o sonho de comprar carro, de trabalhar em um lugar bacana e de morar onde achar melhor. O que falta é o poder público botar ordem na bagunça onde vivemos. Ou tentamos viver.
Fernando Neves é jornalista e sócio da Argonautas Comunicação & Design
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