Ler por querer
Educadora propõe olhar renovado e contemporâneo à leitura, que respeite o interesse dos jovens e dê a eles elementos para conectar passado e presente e exercer a crítica. Em entrevista, ela defende o uso da tecnologia a favor dessa “prática social”.
Por: Thiago Camelo/ Ciência Hoje On-line
Publicado em 19/12/2012 | Atualizado em 19/12/2012
Segundo educadora, ler por obrigação é desagradável sempre. Ela diz que a escola teria meios para estimular o gosto pelos livros. (foto: Thiago Camelo)
“A leitura é interação.” Essa é a primeira frase de artigo publicado recentemente na revista acadêmica Nonada. A autora do texto é Ana Mariza Filipouski, professora de crítica literária da Faculdade Porto-Alegrense, RS. Mas a leitura não seria, justamente, um dos gestos mais solitários do ser humano – comparado inclusive com o ato de pensar, que de tão individual Drummond chegou a cotejá-lo com o nascimento e a morte?
Filipouski não vê a literatura dessa forma. Ao contrário, a enxerga como “prática social” e o livro como “suporte concebido para se comunicar com o leitor”. Entusiasta da divulgação dos livros entre os jovens, com a publicação de diversos artigos e duas obras que propõem estratégias para formar novos leitores, a professora cobra atitude contemporânea dos professores. Em outras palavras: gostaria que os educadores assumissem seus papéis de mediadores e considerassem o imaginário ficcional do estudante da atualidade – segundo ela, mais imagético e ligado às novas mídias.
No artigo, a professora cita a obra A invenção de Hugo Cabret, de Brian Selznick, como um dos possíveis livros que podem estimular esse novo imaginário ficcional. Por quê? Porque o livro teria forte apelo visual e uma adaptação para o cinema, além de apresentar um personagem da vida real (Georges Méliès), que poderia ser investigado num movimento pós-leitura. No texto, a professora destaca ainda a linguagem híbrida do livro, que remete às HQs e às tecnologias de comunicação familiares aos jovens.
Em entrevista ao ‘Alô, Professor’, Filipouski discorre sobre a formação de leitores, sobre o papel da escola e dos professores nesse processo e sobre como usar as novas tecnologias a favor da leitura. Ela fala também da ‘raiva de ler’ entre jovens, da relutância dos docentes às obras contemporâneas, de A invenção de Hugo Cabret, entre outros assuntos.
‘Alô, Professor’: A primeira frase do seu artigo é "ler é interagir". Você poderia discorrer mais sobre isso?
Ana Mariza Filipouski: Literatura se faz de linguagem, sua função comunicativa é fundamental e ler é uma prática social. Mesmo quando o leitor está solitário, em contato com um livro, ele está em interação com um suporte que foi concebido para se comunicar: o escritor pretendeu dizer alguma coisa e lançou mão de recursos textuais para isso e – especialmente no caso da literatura infantojuvenil, mas não só – se assessorou de uma equipe que pensou o livro como objeto a ser consumido. O texto que é produzido tem origem no contexto social, quer dizer alguma coisa a respeito do que o autor pensa sobre si ou sobre os outros, não é uma viagem egocêntrica.
Você cita comunidades em redes sociais que apregoam o ódio à leitura. Isso sugere não só um movimento de afastamento da leitura como também um movimento mais ativo, de raiva de ler. Como se desenvolve essa ‘raiva de ler’?
Quem declara que odeia literatura revela que não tem um contato prazeroso com ela, ainda que possa produzir, a partir dessa relação passional, textos escritos muito criativos, como ilustram algumas comunidades virtuais que existem com esse nome. Muito disso tem a ver com a escolarização da leitura e com a relação que, por meio dela, os jovens estabelecem com o texto literário. Ler sem motivação, porque alguém decidiu e sequer se preocupou em contextualizar a leitura, é desagradável sempre. Mas é pior ainda quando ‘quem manda ler’ não é reconhecido como um ser de cultura ou um leitor. Ao falar de si, os professores frequentemente demonstram que vão pouco ao teatro, não veem filmes no cinema, quase nunca são percebidos como alguém que se entusiasmou com uma leitura em curso. Além disso, para justificar algumas indicações usam argumentos de autoridade do tipo “é programa deste ano letivo”, ou “cai no vestibular”... A ‘raiva de ler’ parece ter a ver com rejeição ao que a escola representa de autoritarismo e distanciamento da vida cotidiana...
Nesse cenário, de ‘leitura como interação’ e ‘raiva do livro’, qual é o papel da escola?
O papel da escola é dar sentido renovado à leitura, especialmente a literária, sem colocá-la em conflito com a vida. Ao contrário, a escola deve habilitar leitores em formação a compreender que a literatura faz parte da vida e não tem como existir a não ser a partir de uma intensa relação que seu produtor estabelece com a realidade, seja para interrogá-la ou para fantasiá-la. A partir do uso da língua, as pessoas agem no mundo social, constituem a si mesmas como sujeitos e constroem uma compreensão de mundo. Dar a conhecer como essa função ficou registrada na história e na cultura, por meio de um trabalho estético sobre a linguagem, é função da literatura e tarefa da escola.
Isso não é fácil, porque supõe, antes de tudo, que a literatura seja compreendida dessa maneira pelos professores, que cada vez menos se constituem como leitores. Supõe também que os educadores entendam que ler é um ato de liberdade, não de obediência.
Ao conhecerem histórias que apresentam valores, personagens que vivenciam conflitos e situações limites de vida, os leitores podem problematizá-las, trocar ideias com outros leitores, mediados pela interlocução que o professor pode estabelecer com eles a partir da ficção.
No artigo, fala-se de um "professor mediador", um profissional que precisaria de estratégias para ajudar o jovem a ler melhor...
Para ser eficaz, a leitura na escola deve partir de uma problematização relevante para o estudante, de uma pergunta que faça sentido para o leitor e sirva como suporte à interlocução com outros leitores. Essa leitura precisa ser acompanhada de diferentes tarefas ou mediações do professor capazes de enriquecer a visão do contexto, ampliar a compreensão do problema, explorar suas possibilidades de repercussão sobre vidas coletivas ou individuais. Isso é muito diferente de passar um livro com data marcada para ser lido e para sua leitura ser avaliada, em geral para atribuir nota.
Você diz que o professor deve ter "competência leitora", "conhecer obras motivadoras" e "compreender noções de tradição e ruptura". A seu ver, em que estágio se encontra a formação do professor de português e literatura das escolas brasileiras? Quais são as qualidades básicas que esse professor deve ter para servir plenamente como esse mediador que você evoca?
A formação do professor como leitor ocorre nas mesmas bases indicadas para a formação dos jovens, sempre salvaguardando a fruição do texto e a liberdade do leitor para atribuir sentidos ao lido. Do contrário, entra a obrigação e morre a literatura. Um professor que tem competência leitora já construiu uma história de leitor, conhece o cânone literário e também as motivações e interesses que movem os jovens. Pode então conquistá-los para a leitura literária, seja canônica ou não. Nesse processo, é importante que ele apresente elementos do contexto social das obras, do movimento cultural da época, do público e das ideias que circulavam quando foram produzidas, habilitando o leitor jovem a questioná-las e a aproximá-las do presente. Também é preciso orientar os alunos a estabelecer relações com outros textos, verbais e não verbais, literários e não literários, da mesma época ou de outras, colocando-os em diálogo. Talvez não existam muitos cursos de Letras no Brasil que deem início a esse processo formativo pensando na formação do professor, mas a formação de leitores na escola só será eficaz quando mais professores forem leitores competentes.
Você afirma que o imaginário ficcional do jovem mudou, ele seria sobretudo mais imagético. Há quem critique e veja a TV e a internet como adversários da leitura. Há outra forma, menos competitiva e mais colaborativa, de lidar com essas novas tecnologias?
Estamos em um caminho sem volta em relação às novas mídias, o que não é mau, desde que elas também sejam vistas criticamente. A mesma passividade que a escola pode exigir de um leitor ao esperar que ele apenas reproduza o que leu também pode se repetir diante de outros suportes. Muitos professores que se indignam ao verificar cópias da internet acham que faz sentido propor cópia do quadro ou transcrição de textos lidos... Os alunos que copiam da internet não terão aprendido que copiar é um valor para a escola? O que nos assegura que o esforço físico imponha reflexão sobre o que é copiado? Nesse caso, as novas tecnologias apenas simplificam o trabalho...
O trabalho sistemático com textos curtos em sala de aula serve para o professor experimentar com os alunos modos de ler literatura. Já os textos longos não cabem no tempo de aula e se prestam ao estabelecimento de contratos de leitura, combinados que supõem a leitura fora da escola e que preveem, de tempos em tempos, breves paradas para a socialização das experiências, desafiando os alunos a ler por prazer. A soma desses dois movimentos tem potencial para formar leitor e o compartilhamento dos sentidos que cada um atribuiu à leitura investe na socialização do lido entre o grupo. É interessante, especialmente nesse momento, recorrer às novas tecnologias, propor a construção de videoclipes a partir do que leram, desenvolver blogues com comentários da turma sobre o lido ou outros recursos contemporâneos que coloquem as novas tecnologias a favor da formação de leitores na escola e reforcem a prática social da leitura.
No artigo da Nonada, você cita A invenção de Hugo Cabret como obra que estimula a intertextualidade, por dialogar com outras histórias – inclusive reais –, com o cinema e com outros livros de linguagem análoga. Qual é a importância desse movimento intertextual para o estudante?
A intertextualidade é uma característica muito presente na literatura e tem a ver com o extravasamento de limites que se colocam para as linguagens e as artes em geral. É um diálogo entre textos e está ligada ao conhecimento de mundo compartilhado por seus produtores e receptores. A intertextualidade enriquece a leitura e a relação do texto com os contextos de produção. Amplia também a possibilidade de atribuição de sentidos. As questões ligadas à intertextualidade influenciam tanto o processo de produção como o de compreensão de textos e podem ter consequências no trabalho pedagógico com a literatura.
Em entrevista recente, o escritor Daniel Galera diz ter ficado feliz por um de seus livros, Mãos de cavalo, ter sido adotado em colégios de Porto Alegre. Ele disse que, quando convidado, visita os colégios com prazer para falar do livro. Não seria estimulante para o estudante que um escritor contemporâneo – talvez jovem como o Galera – fosse com mais frequência à escola falar de seu livro? Por que parece haver entre os professores certa resistência aos contemporâneos?
Fico muito tentada a responder essa questão de forma bastante simplista: porque os professores em geral desconhecem os escritores contemporâneos. A leitura na escola não pode ignorar o presente, o que interessa ao leitor de hoje. Isso não desqualifica ou banaliza o passado, ao contrário, dá suporte para conhecer o que veio antes. As questões de memória, perda e culpa que propiciam a construção de Mãos de cavalo também proporcionam incursões em textos canônicos da literatura brasileira e universal e esse romance pode ser motivador para conhecer como, em outros tempos, elas repercutiram na vida social. A formulação dessas propostas supõe professores leitores, que construíram uma história pessoal de leitor e têm clareza da função formadora da literatura.
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