Jogar à bola e trocar histórias de guerra nos intervalos
Aos sábados joga-se à bola nesta terra de fronteira turca. Os jogadores são sírios, têm 12, 13 e 14 anos, os treinadores também são sírios, têm 18, 25 e 27. Vieram de todo o país e viram de tudo na guerra, agora são refugiados.
DIMITAR DILKOFF/AFP
As hostilidades abrem às 11h mas meia hora antes já há miúdos de 12, 13 e 14 anos, fato de treino e bola na mão, nas imediações da Arena, o campo sintético da rua principal de Reyhanli onde não tarda se vai jogar futebol de sete.
Assim que a porta se abre começam os exercícios de aquecimento. Antes do apito todos podem andar por ali e os que não treinam - só vão jogar mais tarde - entretêm-se a tirar fotografias, dois a dois, com o telemóvel de um deles, poses de jogador da bola, equipamento às vezes também, há de tudo, camisolas do Cristiano Ronaldo, do Messi, fatos-de-treino, casacos de malha, calças de ganga, ténis, sapatos e chinelos.
Reyhanli é uma vila turca da província de Hatay que em 2012 tinha 60 mil habitantes. Reyhanli fica a 5 quilómetros da fronteira com a Síria e hoje ninguém sabe bem quanta gente aqui vive. As autoridades estimam que um terço da população seja síria. Muitos destes são crianças e é por causa delas que agora há três escolas sírias em Reyhanli. Reyhanli é uma vila turca mas hoje é sábado e o campo de futebol está cheio de sírios. Os miúdos são sírios e os três homens que chegaram com sacos cheios de garrafas de água, coletes fosforescentes, bolas, luvas e joelheiras também.
Reinas vai ser o árbitro do dia, Juan e Ahmad os treinadores de serviço. Reinas tira o apito de um saco e três cartões: verde, amarelo e vermelho. "O que é que faço com o verde?", brinca.
Os miúdos juntam-se perto de cada um dos treinadores e durante uns momentos toda a gente fala ao mesmo tempo, cada um com o seu sotaque, basta ser sírio para os distinguir, há miúdos de Alepo e miúdos de Idlib, as duas províncias do Noroeste, as que ficam mais perto de Reyhanli, mas também há miúdos de Homs, no Centro da Síria.
Juan, de 27 anos, é um cartoonista de Damasco, teve de fugir para não ser preso; Reinas, 18 anos, também nasceu na capital síria, mas só saiu quando Juan o convidou para trabalhar com crianças refugiadas; Mohamed tem 25 anos e nasceu em Latakia, estudou design de moda e há dois anos foi obrigado a cumprir o serviço militar e fugiu para não ter de fazer a guerra em nome de Bashar al-Assad. Todos têm família ainda na Síria, como muitos dos miúdos.
São 11h e começa o primeiro dos três jogos do dia, o dos miúdos do 8º ano como Ziad, 13 anos, muito magrinho e pequeno para a idade, fato de treino azul-escuro e chuteiras. Ziad é o guarda-redes da equipa de Juan, o guarda-redes da equipa adversária é bastante mais alto mas joga só com uma sapatinha, o outro pé em meias.
Ziad defende algumas boas oportunidades e o primeiro golo é da sua equipa. Sete contra sete, todos deixam tudo em campo. Corre-se, grita-se, dizem-se palavrões, há faltas e algumas até das feias, por trás, não há foras mas há cantos, há muitos, muitos risos. O empate chega antes do intervalo e merece um festejo daqueles mesmo a sério, camisola despida até ao pescoço e tudo, e está fresco neste sábado de Outubro. Antes do intervalo ainda Ziad tem tempo para pedir a Juan que o substitua na baliza, quer ir à frente.
"Vamos ganhar. Agora temos uma nova estratégia", diz Mohamed a rir, caderno na mão, enquanto os seus miúdos se sentam à sua volta no chão. Juan atravessa o campo para ir buscar o seu caderno e passa pelos adversários e os jogadores tentam tapar o seu treinador, enquanto Juan finge que deita um olho ao novo desenho que Mohamed vai tentar pôr em prática.
Durante o intervalo, há uma invasão de campo. Os miúdos que obedientemente tinham saído e assistido do lado de fora voltam a entrar para dar uns toques na bola e tentar alcançar o saco das garrafas de água - "Não. É só para beberem no fim do vosso jogo", diz e repete Juan. A um canto, alguns dos mais pequenos, 12 anos, fazem abdominais, com outros miúdos a segurarem-lhes nas pernas, são eles que vão entrar a seguir.
Onde está o irmão de Ziad?
O segundo tempo traz mais um golo para cada lado - Ziad lá conseguiu ir à frente, não marcou mas foi dele a assistência para o 2-2. Tudo será decidido nas grandes penalidades e Ziad vai voltar à baliza para acabar por ser ele a decidir o jogo. Mohamed bem tentou, mas a equipa de Juan leva a melhor.
As fotos da praxe e os miúdos do 8.º dão lugar aos miúdos do 7.º. Primeiro, os exercícios, definir as equipas, conversas com os treinadores, ainda há tempo.
Ziad veio há nove meses de Idlib, a cidade com o mesmo nome da província encostada a Hatay. Antes da revolução e da guerra, Ziad vivia com a mãe e com o pai, taxista, com o irmão, dois anos mais velho, e com a irmã, dois anos mais nova. Entretanto, quase tudo mudou. Ziad continua a gostar de Ronaldo "mais do que de todos os outros" e a querer ser jogador de futebol, mas até isso vai ter de esperar, as prioridades agora são outras.
Agora, Ziad vive em Reyhanli com a mãe e com a irmã, Shaad. É o homem da casa. O pai está na Síria, a combater com o Exército Livre, o primeiro grupo armado a aparecer na Síria, formado por civis e desertores durante o Verão de 2011. O irmão, Ziad não sabe onde está.
Foi no dia 9 de Setembro de 2012: "Os serviços secretos vieram a minha casa, eu estava a tomar banho e a minha mãe bateu à porta para me chamar. Levaram o meu irmão". Ahmad tinha 14 anos quando foi preso. "Um dos agentes foi simpático, encontrou o dinheiro que os meus pais guardavam numa gaveta e não o levou, fez um sinal à minha mãe com os olhos e deu-lhe o dinheiro", conta Ziad.
Ziad tem outras três irmãs, mais velhas, já casadas, ainda na Síria. Ele agora vive aqui, vai à escola e ao sábado joga futebol, tem jeito na baliza mas gosta mesmo é de jogar ao ataque. "Eu queria ir lutar com o meu pai, mas não posso, tenho de ficar a tomar conta da minha mãe e da minha irmã. Se a revolução não tiver acabado quando eu tiver 15 anos vou lutar com os mujahedin", diz, muito assertivo, para logo a seguir admitir que sente a falta do pai. "Não tenho medo, antes, se nos atirassem com uma pedra nós fugíamos, agora podem vir tanques e nós nem nos assustamos."
Enquanto não chegam os 15 anos, Ziad vai juntando dinheiro dos trocos das compras que faz para a mãe. "Já tenho o suficiente para 30 dólares, se continuar a juntar e trocar bem o dinheiro posso ter bastante no fim", explica, enquanto mostra a carteira, "foi uma prenda do meu irmão", onde vai guardando o tesouro, ao lado de um cartão com um número de telefone turco e com uma fotografia dele próprio. "É para ajudar os meus pais, se eles precisarem", diz, antes de admitir que o que queria mesmo era comprar uma bicicleta.
Ziad vai ficar por aqui até ao fim da festa, os jogos só acabam às 16h. Enquanto os mais pequenos se posicionam para começar a jogar, alguns dos maiores, já no 9º ano, juntam-se à conversa. Venham de onde vierem vêm todos de um país em guerra, todos têm um irmão ou um pai a combater, todos viram gente a morrer e bombas a cair em cima de casas, todos parecem exactamente aquilo que são, adolescentes um pouco rebeldes, a diferença é que em vez de contarem que baterem num colega ou que roubaram a namorada a um amigo contam coisas que só miúdos que vieram de um país em guerra podiam contar.
"O mais importante é estudar", diz ainda Ziad. E depois: "Não posso deixar a minha mãe e a minha irmã, mas não gosto de estar aqui. Os turcos não me percebem e eu não os percebo. Quero aprender a conversar em turco."
Farid e Mahmoud dizem que são primos mas não podiam ser mais diferentes. Farid é magro e muito moreno, tem cabelo liso escuro, um bigode a querer nascer e uma cabeça pequena para o corpo, a camisola de gola alta talvez contribua para a cabeça parecer ainda mais pequena; Mahmoud é gordinho, calças de fato de treino pretas e casaco de fecho e capuz azul claro, cabelo curto rente mas uma pequena popa à frente, ao lado do primo Farid parece do Norte da Europa de tão branquinho. Farid e Mahmoud são de Homs, a cidade mais castigada pelas forças de Assad. São de dois bairros diferentes mas viram quase o mesmo e durante muitos, muitos meses.
Ajudante de rebeldes
"O meu pai vendia pistácios, tinha uma loja pequena. O regime entrou e levou tudo, destruíram o que não levaram. O meu pai trabalhou durante anos", diz Mahmoud. Há um ano que a família deixou Homs, mas só há dois meses é que Mahmoud veio viver para Reyhanli. Quando saíram de Homs, Mahmoud, os irmãos e os pais instalaram-se em Termali, uma região rural no Sul da Síria. Depois, tiveram de se mudar outra vez. "Havia sete vilas xiitas à volta. Cercaram-nos e começaram a atacar. As explosões eram horríveis."
Ainda em Homs, conta Mahmoud, "fugia de casa de manhã às escondidas do meu pai". "Ia ajudar os rebeldes, levava águas e recarregava as armas." Mahmoud tem os mesmos 14 anos que Farid, mas é Farid, o primo magrinho, que garante: "Eu era um combatente. Tinha a minha Kalashnikov. O meu pai comprou-me a arma. Eu experimentei uma ou duas vezes e ele achou que eu podia combater". Farid podia ser só um grande fanfarrão, mas não tem nenhum problema em confessar que "uma vez, na frente, havia tantas bombas a caírem que me mandaram para casa, e eu fui".
Os dois primos repetem frases que ouvimos muitas vezes a sírios adultos e é difícil perceber se eles também as ouviram e agora as repetem ou se as diriam na mesma. "Já não há nada de que ter medo. Vamos morrer todos, de qualquer maneira", diz Farid, e levantas as calças, a mostrar o lugar onde já esteve a marca de uma bala que lhe acertou de raspão. "Não temos escolha. Não quero ficar à espera da morte", diz Mahmoud. "Eu sou procurado, o meu pai também, dá dinheiro à revolução", conta Farid.
O pai de Farid era electricista, o pai de Mahmoud tinha a loja e ainda um táxi. Agora, são refugiados.
É tempo de os mais crescidos entrarem em campo. Depois dos resultados das equipas anteriores, todos querem ser da equipa de Juan, entre os dois primos, o sortudo é Farid. Há menos faltas neste jogo do que nos dois primeiros, mas uma entrada muito feia acaba por resultar em expulsão. Todos dão o que têm e chegam ao fim vermelhos que nem tomates e a transpirar em bica. Mas com 1-1, vão ser os penaltis a decidir tudo outra vez.
Enquanto esperamos pelo resultado, as histórias sucedem-se do lado de fora do campo. Mohamed é de Alepo e conta que vivia perto da sede da Segurança da Força Aérea. "Todos os dias encontrava corpos na rua, homens que tinham sido torturados", diz Mohamed, de 13 anos. "Dois primos meus estavam lá presos, nunca mais soubemos deles." "Eu fui preso", diz Ali, 14 anos. "Só lá estive quatro dias, não me fizeram muito mal, só me queimaram com cigarros nos braços. Também me deram alguns murros."
São quase 16h e está a pôr-se fresco. A sorte sorriu à equipa de Farid nas grandes penalidades e ele corre à volta do campo a celebrar. Ri-se muito para a fotografia de grupo e depois corre de novo para vir contar como ajudou a sua equipa a ganhar. Às vezes os pais vêm assistir, conta Reinas, mais as mães, na verdade. Desta vez nenhum veio. Os miúdos fazem a festa sozinhos antes de voltarem às novas casas.
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