Crimes de guerra não são crimes no Brasil
Ao não incorporar a sua legislação os tratados internacionais que assinou, país não pode julgar acusados de crimes humanitários e de guerra
21/10/2013
Fernanda Balbino,
de São Paulo (SP)
O Brasil não está cumprindo a obrigação de incorporar a suas leis todos os tratados internacionais que já assinou. Isso permitiu, por exemplo, que as normas do direito internacional humanitário não estivessem em vigor em períodos cruciais, como a ditadura civil-militar iniciada em março de 1964. Quem dá o alerta é Tarciso Dal Maso Jardim, consultor legislativo do Senado na área de relações exteriores e defesa nacional. “Se [um crime] for cometido por um militar brasileiro em alguma missão de paz, não teremos condições de julgá-lo”, explica ele, enfatizando a gravidade dos vácuos na legislação humanitária do país.
O caso fica ainda mais sério se levarmos em consideração o alto número de militares brasileiros envolvidos em missões de paz. Segundo dados do Exército, as Forças Armadas brasileiras já participaram de 47 dessas missões. Atualmente, nossas tropas estão em países como Haiti, Equador, Peru, Colômbia, Saara Ocidental, Costa do Marfim, Libéria, Timor Leste, Chipre e Líbano.
O caso do Haiti é emblemático. Embora a ONU reconheça a importância do trabalho realizado pela Minustah, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, a intervenção humanitária está carregada de polêmicas. Além das críticas à excessiva militarização, houve diversas denúncias de violações aos direitos humanos por membros das tropas da ONU. Em 2011, militares brasileiros em ação no Haiti foram acusados de agressão e detenção, sem motivo, de jovens haitianos. No mesmo ano, cinco soldados uruguaios foram repatriados devido à acusação de violência sexual contra um adolescente haitiano. Justiça Global e Anistia Internacional, dentre outras organizações, apresentam relatórios que contêm denúncias de crimes praticados pelas tropas da Minustah.
A situação se torna ainda mais séria se lembrarmos que o Brasil é uma das nações que mais homens cedem à missão no Haiti. Aproximadamente 2 mil militares brasileiros atuam hoje naquele país e o comando militar da Minustah é de um brasileiro, o general Edson Leal Pujol. Em 10 de outubro último, o mandato da missão foi estendido por mais um ano, o que a levará a completar, em 2014, dez anos de operações em solo haitiano. A previsão é de que ela permaneça lá até 2016.
Uma das denúncias que pesam sobre a Minustah, gravíssima, é a da introdução do cólera no Haiti, atribuída a soldados nepaleses. Foi a maior epidemia do continente americano das últimas décadas. Em 9 de outubro, vítimas do cólera entraram com um processo na Justiça Federal de Nova York, responsabilizando a ONU por provocar a epidemia, que deixou mais de 8 mil haitianos mortos.
Casos assim mostram a importância de o Brasil cumprir seu dever e internalizar os tratados que assinou, incorporando-os a seu sistema legal. O problema é que parece não haver interesse político nessa internalização. Tarciso Dal Maso Jardim lembra que alguns crimes, como o genocídio, foram rapidamente implementados no país, ao passo que outros, como a tortura, ainda dependem da boa vontade da máquina federal. Se pensarmos na polêmica causada em meios militares e políticos durante os debates sobre a instalação da Comissão da Verdade, talvez tenhamos alguma pista dos motivos que levam alguns crimes humanitários e de guerra a permanecer fora do arcabouço legal brasileiro.
A internalização de acordos internacionais permite que eles passem a fazer parte do ordenamento jurídico do país e possam ser aplicados em território nacional. No caso brasileiro, exige-se a assinatura do chefe de Estado e em seguida o referendo do Congresso Nacional e do Senado. E é exatamente na passagem do Executivo para o Legislativo que a maior parte dos acordos se perde.
Enquanto na maioria dos países o prazo de tramitação não ultrapassa poucos meses, no Brasil esse processo pode levar anos. Isso faz com que tratados importantes, como as Convenções de Genebra, ainda não tenham sido incorporadas a nossas leis. As Convenções de Genebra e seus protocolos adicionais são a base do direito internacional humanitário. Definem a quem se deve proteger e quais os limites de conduta durante conflitos armados. A violação desses acordos por um Estado-parte configura crime de guerra e o caso pode ser levado ao Tribunal Penal Internacional (TPI), dependendo de sua magnitude.
A não internalização das Convenções de Genebra tem consequências graves: permite que muitos crimes de guerra não sejam considerados crimes no Brasil, e que criminosos fiquem impunes.
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