Vantagens comparativas
Artigo analisa os caminhos trilhados pela ciência do Brasil e da Coreia do Sul e indica espaços para parcerias
FABRÍCIO MARQUES |
Edição 211 - Setembro de 2013
Num artigo publicado na revista Scientometrics,
um grupo de pesquisadores do Brasil e da Coreia do Sul investigou a
evolução recente da produção científica dos dois países – que são
antípodas não apenas na geografia, mas também em seus modelos de
desenvolvimento. A conclusão foi que os sul-coreanos, apesar de sua
vocação para a tecnologia, conseguiram na década passada melhorar o
equilíbrio na distribuição de artigos por outros campos do conhecimento,
enquanto os brasileiros melhoraram em áreas em que já eram fortes, como
ciências agrárias e naturais. “O Brasil parece ter perdido uma
oportunidade de investir mais em áreas capazes de dar suporte ao setor
produtivo, como engenharias e computação”, diz Daniel Fink, autor
principal do estudo, que é chefe do setor de ciência e tecnologia da
Embaixada do Brasil em Seul. “A ciência do Brasil ainda tem dificuldade
em interferir na política industrial, ao contrário do que acontece na
Coreia do Sul.” O artigo, escrito em parceria com três pesquisadores
sul-coreanos, é resultado do doutoramento de Fink no Instituto Avançado
de Ciência e Tecnologia da Coreia (Kaist), na cidade de Daejeon.
Os sistemas de ciência e tecnologia do Brasil e da Coreia do Sul
desenvolveram-se nas últimas décadas com investimentos concentrados em
certas disciplinas. O Brasil segue um modelo semelhante ao de países
desenvolvidos, com grande destaque para a medicina e um peso
significativo de disciplinas como química, física, botânica e zoologia –
uma especificidade brasileira é que as ciências agrárias ocupam um
espaço superior ao da média mundial. Já a Coreia do Sul segue o chamado
modelo japonês, com um papel mais proeminente das engenharias –
incluindo a ciência da computação – e da química, com destaque para a
ciência de materiais. O estudo liderado por Fink buscou comparar o que
aconteceu com a quantidade e a qualidade da produção científica dos dois
países em dois períodos distintos, de 2000 a 2004 e de 2005 a 2009. A
análise foi feita com base nos National Science Indicators, da empresa
Thomson Reuters, que contêm dados agregados por países. As variáveis
incluíram o número total de publicações e citações do Brasil, da Coreia
do Sul e do mundo de 2000 a 2009 – em seguida, os dados foram divididos
por campos do conhecimento. O estudo concentrou-se em parte desses
campos e excluiu alguns, como ciências sociais e economia, cuja produção
na forma de artigos científicos não foi considerada representativa – há
mais tradição na publicação de livros e capítulos nessas áreas.
Ambos os países aumentaram o número de artigos publicados e viram
crescer seu quinhão na produção mundial. A participação da ciência
brasileira avançou na maioria das áreas, exceto em algumas como ciência
da computação e física, enquanto a Coreia cresceu em todas as áreas sem
distinção. No caso da agricultura, a participação do Brasil subiu de
3,1% do total mundial no primeiro período para 6,8% no segundo. Também
avançou em áreas como zoologia e botânica, ambiente e ecologia, e
farmacologia e toxicologia, reforçando sua posição num modelo conhecido
como “bioambiental”. Mas perdeu espaço em ciências espaciais e física.
“Embora os pesquisadores brasileiros nas áreas de física e ciências
espaciais tenham mantido o mesmo nível de publicações em números
absolutos, perderam terreno em termos comparativos. Isso porque não
conseguimos acompanhar o ritmo do aumento de produção de outros países”,
diz Fink. Em campos da ciência em que o Brasil já não tinha vantagens
comparativas, como ciências da computação, engenharias e ciência dos
materiais, a produção retroagiu. “O Brasil dificilmente conseguirá
ganhar força em tecnologia da informação e na indústria de manufaturas
num futuro próximo”, afirma o autor. Em relação a citações, o Brasil
melhorou também em agricultura, botânica e zoologia, e farmacologia e
toxicologia, e piorou numa área em que era forte, a matemática. Em
ecologia e ambiente, a visibilidade da ciência brasileira diminuiu,
apesar do aumento da produção. Reveses semelhantes foram observados nas
citações de engenharias, ciência dos materiais e ciências da computação.
Em
relação à Coreia do Sul, não foram observados grandes saltos. Em
relação à produção científica, as áreas em que houve maior crescimento
foram ciência da computação, seguida de agricultura e farmacologia e
toxicologia. Mas foram mantidas as características do chamado modelo
japonês. Em comparação com a produção científica global, a Coreia não
conseguiu acompanhar o crescimento em engenharias, química e ciência de
materiais, embora tenha mantido a competitividade nesses campos. Mas o
país conseguiu amenizar seus pontos fracos com desempenho melhor em
áreas como ciência espacial, biologia molecular e genética. Em relação a
citações, perdeu desempenho em áreas como ciência de materiais,
engenharias, física e ciência da computação. Mas aumentou o impacto em
agricultura, ciência espacial, microbiologia e biologia molecular e
genética. “Essa transição mostra que a Coreia está conseguindo alcançar
um estágio mais equilibrado, aprimorando áreas deficientes sem deixar de
ser referência em áreas onde já possuía competência”, diz Fink.
A estrutura disciplinar da produção científica relaciona-se com as
estratégias de desenvolvimento econômico de cada país, observa Peter
Schulz, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp, que
publicou no ano passado na mesma revista Scientometrics um artigo sobre a evolução do perfil dos sistemas de ciência e tecnologia de diversos países (ver Pesquisa FAPESP nº 198).
Segundo ele, contudo, algumas das conclusões do artigo de Fink precisam
ser confirmadas por novos estudos antes de serem tomadas como
tendências. Ele lembra que aumentou o número de revistas científicas
brasileiras indexadas na base Thomson Reuters na segunda metade da
década de 2000. Isso pode ter criado um viés sobre a percepção de que o
Brasil ficou mais forte em algumas áreas, sem que a especialização
tenha, de fato, aumentado. “O artigo mostra uma estagnação da produção
brasileira na área de física, que é consistente com outros indicadores.
Mas a percepção pode ter sido reforçada pelo fato de haver poucas novas
revistas de física brasileiras indexadas na década passada, em
comparação com o que ocorreu em outras áreas”, afirma Schulz. Ele também
observa que a perda relativa do desempenho da Coreia do Sul em áreas
consolidadas, como ciências de materiais, pode ter sido influenciada
pelo aumento da produção científica da China nessas disciplinas, que fez
crescer o total mundial de artigos. Feitas tais ressalvas, Schulz
afirma que o estudo de Fink tem o mérito de levantar áreas do
conhecimento em que os dois países se complementam. “É importante
sabermos em quais áreas os dois países são fortes ou estão aumentando
sua produção e impacto para estimular parcerias”, afirma.
Essa,
aliás, é uma das preocupações da pesquisa de Daniel Fink. Também como
resultado de seu doutorado, ele se dedica a esquadrinhar as colaborações
científicas entre o Brasil e a Coreia. O primeiro artigo em coautoria
de pesquisadores dos dois países foi publicado em 1991 e, até 2000, não
mais do que 10 papers com autores brasileiros e sul-coreanos
eram publicados por ano. Em 2011 o número chegou a 72 artigos. As
colaborações foram impulsionadas de duas maneiras diferentes. A
principal é a inserção de grupos de pesquisa brasileiros e sul-coreanos
em grandes colaborações internacionais, em geral lideradas por
norte-americanos. A segunda delas é composta por colaborações
bilaterais, formadas pelo interesse de pesquisadores dos dois países em
trabalharem juntos. Grupos da Universidade de São Paulo se destacam em
todo tipo de colaboração, mas nas bilaterais há uma frequência maior de
grupos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em áreas como
química e ciências de materiais. “As colaborações bilaterais ocorrem
quando há excelência dos dois lados. Já as colaborações multilaterais
podem atingir áreas em que os dois países ainda buscam se consolidar e
se associam a pesquisadores de um terceiro país, em geral os Estados
Unidos, para ganhar experiência”, afirma o pesquisador. Uma colaboração
recente envolveu o grupo do físico Marcelo Knobel, professor da Unicamp,
que trocou amostras e dados com pesquisadores da Universidade Nacional
de Changwon, em artigos sobre nanoestruturas magnéticas publicados no Journal of the Korean Physical Society.
A ponte entre o Brasil e a Coreia, nesse caso, foi o indiano Surender
Kumar Charma, que fez seu pós-doutoramento no grupo de Knobel entre 2007
e 2011 com bolsa da FAPESP, e tinha vínculos com os sul-coreanos. “É
uma área em que os dois países têm tradição”, diz Knobel, que já
publicou outros artigos em colaboração com pesquisadores da Coreia do
Sul. “Creio que a tendência é ter cada vez mais colaborações, não só
pela clara presença coreana aqui no Brasil como também pela importância
crescente dos dois países no cenário mundial da ciência.”
As colaborações entre brasileiros e sul-coreanos envolvendo grandes
empresas ainda não tiveram impacto na produção científica dos dois
países. “A Samsung, por exemplo, tem um laboratório dentro da Unicamp,
mas o impacto é pequeno na geração de artigos”, diz Daniel Fink. Marcelo
Knobel lembra que a presença de empresas coreanas no Brasil ainda é
recente e ressalta que nem tudo o que é pesquisado vai para a empresa.
“Os laboratórios, como o da Samsung na Unicamp, estão se estabelecendo, e
os resultados demoram um tempo para acontecer, não são imediatos”,
afirma. Existe uma tendência de intensificar as relações entre a ciência
dos dois países a partir de pequenas e médias empresas sul-coreanas,
observa Fink. Um exemplo é a HT Micron, joint-venture brasileira e coreana de encapsulamento de chips
que abriu uma fábrica na cidade gaúcha de São Leopoldo, aproveitando
incentivos fiscais. “Eles se comprometeram em investir 5% em pesquisa e
desenvolvimento, sendo que 1% vai para uma universidade, a Unisinos, na
criação de um instituto de semicondutores”, diz Fink. O interesse da
Coreia no Brasil deve estimular esse tipo de aliança nos próximos anos,
afirma o pesquisador.
Formado em engenharia elétrica pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul, Daniel Fink mudou-se para a Coreia do Sul em 2006,
ao obter uma bolsa oferecida pelo Kaist. “Há uma carência enorme de
brasileiros nas universidades coreanas e fui um dos primeiros a vir”,
afirma ele, que já no mestrado iniciou uma linha de pesquisa comparando
os sistemas de tecnologia do Brasil e da Coreia. Em 2007 escreveu um
artigo num jornal local falando das oportunidades para empresas e
pesquisadores coreanos com a implantação da TV digital no Brasil. O
embaixador brasileiro em Seul chamou-o para conversar e desse contato
surgiu um convite para se tornar assessor em ciência e tecnologia na
embaixada. Nos próximos meses, ele e pesquisadores sul-coreanos de seu
grupo virão ao Brasil entrevistar cientistas brasileiros com
colaborações com colegas da Coreia do Sul para investigar a dinâmica
dessas parcerias.
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