A invasão da Líbia pela Otan, a morte de Kadafi e a tragédia de Lampedusa
Relatórios do ONU indicam que “oficialmente”, nos últimos cinco anos, cerca de 6 mil imigrantes morreram afogados
09/10/2013
Achille Lollo
de Roma (Itália)
No
dia 5 de outubro, o governo italiano enviou a Lampedusa a ministra da
Integração, Cecile Kyenge, para fazer o balanço da tragédia; a seguir o
presidente da República, Giorgio Napolitano, mandou baixar a bandeira
nacional nos prédios públicos para homenagear os 363 africanos mortos no
mar. Nos campeonatos de futebol, basquete e vôlei as equipes dedicaram
um minuto de silêncio para lembrar as vítimas, enquanto os canais
estatais Rai-1, Rai2 e Rai-3 realizaram várias reportagens sobre o drama
da imigração.
Porém, dois dias depois, dia 7,
tudo voltou como era antes: o Parlamento Europeu não agendou o debate
sobre os programas para financiar a integração dos imigrantes na União
Europeia, enquanto o governo italiano repassava para o Alto Comissariado
das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) e outras agências
humanitárias o ônus dos imigrantes africanos.
Mais
do que isso, nenhum parlamentar “progressista” do partido do governo, o
Partido Democrático (PD), de Enrico Letta, tomou a iniciativa de lançar
uma proposta de lei para anular a Lei Bossi-Fini, que penaliza com
prisão e deportação os imigrantes considerados clandestinos.
Uma
lei que não faz nenhuma distinção entre as pessoas que fogem de confl
itos e aquelas que vêm de situações conjunturais dramáticas e que,
sobretudo, não tem um pingo de solidariedade com os jovens que fogem do
desemprego e da fome, sejam eles mulheres grávidas ou crianças.
Uma
lei que serve apenas aos interesses da União Europeia e que os governos
italianos introduziram em suas instituições esquecendo que essa mesma
Itália foi um país que, de 1870 até 1964, inundou o mundo com imigrantes
pobres, analfabetos e teimosos por querer trabalhar e, assim, construir
um mundo melhor.
Os imigrantes africanos
A
invasão da Líbia por parte das tropas do OTAN e a destruição do modelo
institucional criado por Kadafi , a Jamayria, se transformou em uma
verdadeira tragédia para os imigrantes africanos que estavam trabalhando
na Líbia. Um contingente que somava cerca de 1 milhão de homens, além
de 200 mil mulheres.
De fato, os vencedores e,
sobretudo, as brigadas salafitas da Cirenaica que se havia apoderado de
Benghazi e da capital Trípoli, começaram a praticar uma autêntica
limpeza étnica acreditando que os imigrantes africanos se juntariam aos
fiéis de Kadafi , ainda majoritários nas regiões de Sirte e da capital
Trípoli.
Por isso, e sob o olhar dos soldados da
OTAN, dos diplomatas europeus e dos empresários das transnacionais, em
Trípoli, e nas demais cidades da Líbia aconteceram horrendos massacres
de “Black People” (homens negros), acusados de terem sido soldados de
Kadafi .
Depois vieram as prisões em massa.
Muitos deles foram e continuam sendo torturados para se obter uma
confissão que permita as novas autoridades da Líbia justificarem um
tratamento tão desumano com pessoas cuja única culpa é serem negros e de
origem africana.
Calcula-se que nas prisões e
nos ditos “campos de controle” há, ainda, cerca de 150 mil africanos.
Outros 400 mil foram reintegrados nos trabalhos humildes e braçais que
os líbios se recusam fazer. Cerca de 50 mil foram mortos durante a dita
libertação, enquanto outros 200 mil foram obrigados a sair pelas
fronteiras do sul em direção ao Sudão, à Eritréia, ao Chade e ao Mali,
passando do mal para o pior. Restam na Líbia, aproximadamente, menos de
400 mil africanos que desde janeiro de 2012 tentam desesperadamente
atravessar o canal da Sicília para fugir de um país que virou um
inferno.
Todos esses africanos — que pagam de
2.000 até 3.500 euros por um lugar em velhos barcos de pesca
superlotados — vem, na maioria, de países destruídos por guerras civis
(Somália, Eritreia, Sudão), ou pela pobreza (Mali, Níger, Chade, Egito,
Tunísia, Marrocos).
Todos eles já pediram vistos
de entrada nos consulados e nas embaixadas dos países da União Europeia,
dos EUA e do Canadá. Mas seus pedidos foram sempre rejeitados.
De
fato, o sonhado carimbo verde no passaporte é concedido somente a quem
tem recursos para investir ou às “pessoas inteligentes e politicamente
adequadas às regras da democracia ocidental”. Isto é, os filhos das
burguesias que sustentaram e integraram os regimes corruptos,
autoritários e abertamente neocoloniais. Eles, sim, têm o direito de
desembarcar nos aeroportos dos países ditos de “Primeiro Mundo”. Para os
demais filhos do povo, inclusive aqueles com diplomas universitários, o
destino é o mar assassino do canal da Sicília. Depois, se conseguem
desembarcar há o inferno da dita integração nos “centros de acolhimento”
do sul da Itália.
A Lei Bossi-Fini
Nos
primeiros anos do século, Berlusconi se tornou o “engraxate de botas”
de Bush e depois de Putin por consolidar no exterior seu poder e os
sucessos eleitorais que suas televisões garantiram ao Povo da Liberdade
(PdL).
A seguir, foi bajular os principais
governantes europeus, nomeadamente Sarkozy e Angela Merkel, aos quais
ofereceu transformar o sul da Itália “na fronteira europeia da imigração
clandestina”. Foi com essa ênfase europeia que o governo Berlusconi
encarregou o pós-fascista Fini e o líder racista Ugo Bossi, da Liga
Norte, para que apresentassem ao Parlamento um Projeto de Lei contra a
imigração clandestina.
Uma lei que além de negar o
acesso à Itália a quem chega sem visto de entrada, os prende em
“centros de acolhimento”, sob a acusação de serem clandestinos,
potencialmente prepostos à deportação.
Tais
centros, na realidade, são autênticos campos de concentração onde os
africanos e os magrebinos ficam aí presos até o momento de serem
deportados. Por outro lado, essa lei penaliza juridicamente, também,
quem facilita a chegada dos clandestinos. Por exemplo, os pescadores que
salvam os imigrantes no mar quando os barcos deles afundam depois são
processados pelos tribunais como “cúmplices”.
Em
média, somente 5% dos “clandestinos” africanos que desembarcam na
Sicília são considerados “refugiados políticos”. Outros 25% são aceitos
porque lhes foi reconhecido o “refúgio por motivos humanitários”. Por
isso, todo mês se registram muitas evasões dos “centros de acolhimento”,
com centenas de fugitivos que tentam chegar nas grandes metrópoles
(Nápoles, Roma, Milão), onde a única alternativa é trabalhar na
“economia ilegal” das gangues mafiosas. Isto é: virar escravos dos
mecanismos da “economia ilegal”, até serem presos pela polícia ou pelos
carabineiros nas contínuas batidas, realizadas nos miseráveis guetos dos
subúrbios que agora hospedam apenas africanos e magrebinos — não é por
acaso que hoje nas prisões italianas há quase 10 mil africanos.
Desespero
É
claro que a sociedade italiana, afetada por uma crise desastrosa e com
uma taxa de desemprego que chegou ao limite máximo (13,5%), não consegue
mais integrar e absorver em sua economia os milhares de trabalhadores
africanos e magrebinos que chegam à Itália sonhando com um trabalho bem
remunerado.
Diante desse drama, um governo
“inteligente” teria pedido à União Europeia para que o ônus da imigração
africana e magrebina fosse partilhado. Infelizmente, os governos
formados por Berlusconi nunca foram inteligentes, enquanto o atual,
liderado por Enrico Letta, é apenas obsequioso com a União Europeia.
De
fato, 15 dias antes da tragédia de Lampedusa, o mar devolveu nas lindas
praias da Sicília, mais 15 corpos de imigrantes africanos, cujo barco
quebrou já no fim da travessia. Um acontecimento que mereceu apenas uma
nota na grande imprensa, enquanto as TVs, por sua vez, também
reproduziram somente uma parte da intervenção de Cecile Kyenge, a
ministra da Integração (uma africana originária do Congo que se
naturalizou italiana).
Depois, no dia 5 de
outubro apareceram mais 127 corpos. Outros 236 permanecem no fundo do
mar. Ou seja, dos 518 que embarcaram na Líbia, desafiando o tempo, o mar
e as balas dos policiais líbios, sobraram apenas 155 sobreviventes para
completar o já superlotado “centro de acolhimento” de Lampedusa.
Por
isso, Nicki Vendola, líder do pequeno partido de oposição SEL
(Socialismo, Ecologia e Liberdade), na sua intervenção no Parlamento,
apontou o dedo contra esse governo de “amplos entendimentos”.
Disse
ele: “Estamos enfrentando uma clara manipulação da realidade com as TVs
que mostram as lágrimas de um ministro do Interior que, na época, votou
a lei fascista Bossi-Fini. Lei que representa a vergonha de uma direita
que governou este país durante muitos anos. Lei que não foi contestada
como se devia e que hoje representa ainda os pressupostos culturais da
lógica das leis fascistas que a direita votou. Portanto, senhor
ministro, chega de peças comoventes e procure abrir o debate sobre as
leis da Itália pré-liberal que, hoje, no lugar de condenar os modernos
escravocratas, atacam as vítimas desses”.
Infelizmente,
somente os parlamentares do Movimento 5 Estrelas aplaudiram a
intervenção de Nicki Vendola. Os outros, direitistas, centristas e
progressistas do PD, que integram o governo de “amplos entendimentos”,
simplesmente “tomaram ato da intervenção do prezado colega”. E assim
tudo continua como era antes, tal como escreveu Giuseppe Tomasi di
Lampedusa no célebre romance O Leopardo.
Achille Lollo é jornalista italiano, correspondente do Brasil de Fato na Itália e editor do programa TV “Quadrante Informativo”.
Foto: Reprodução
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