Guerra na Síria: O Mediterrâneo não é o centro do mundo
4 setembro 2013
La Tribune
Paris
"O mapa do mundo de Ptolomeu por Nicolaus Germanus (1467). Varsóvia, Biblioteca Nacional."
As reticências das potências ocidentais em agir na Síria
ilustram um facto: o “Mare Nostrum” já não é o centro do mundo que foi
em tempos. A retirada progressiva dos Estados Unidos da região deixa um
vazio que a União Europeia não consegue preencher.
A volta de 180 graus
do Presidente norte-americano, Barak Obama, na decisão sobre uma ação
militar contra o regime de Bashar al-Assad, na Síria, reflete a
hesitação dos Estados Unidos em se envolverem firmemente no
mediterrâneo. É verdade que o Congresso norte-americano poderia dar luz
verde à ação, mas, para já, a rejeição da intervenção
pelo Parlamento britânico isolou os Estados Unidos. Além do Reino
Unido, a Alemanha, a Itália e a Polónia também anunciaram as suas
reticências, deixando assim a França isolada no xadrez europeu.
O facto de ninguém querer morrer pela Síria deve-se igualmente à alteração do estatuto do conjunto do Mediterrâneo. Epicentro
cultural, comercial e político do mundo durante séculos, esta é hoje
vista como uma região conturbada e sem um futuro uno, no quadro de uma
“globalização” que dita a nova marcha do mundo. Agora, é outro mar – o
da China – que impulsiona a dinâmica mundial.
São muitos os exemplos que ilustram essa perda de influência. A
começar pela evolução das “primaveras árabes”, que tantas esperanças suscitaram.
No Egito, um golpe de Estado militar, apoiado pela maioria da
população, derrubou o Presidente saído das fileiras da Irmandade
Muçulmana, que tendia a concentrar todos os poderes, em proveito do seu
partido. Mas, numa situação de grave crise económica, o futuro continua a
ser muito incerto. Na Síria, a guerra civil afunda-se na tragédia e
ameaça toda a região, e em especial o seu frágil vizinho Líbano. As
hipóteses de resolução do conflito israelo-palestiniano continuam a ser
mais uma esperança do que uma realidade. No Magrebe, a situação política
estagnou numa conjuntura funesta para o desenvolvimento económico. A
própria Turquia, até há pouco apresentada como exemplo de estabilidade,
tem sido palco de manifestações em alguns casos violentas.
Na margem norte, a situação é também difícil. Atingida pela crise da dívida, a Europa mediterrânica,
que pensava poder desenvolver-se graças à União Europeia, vê o seu
destino ser traçado por uma troika de entidades financiadoras
internacionais, cujas receitas passam por cima da subtileza de uma
reflexão sobre um desenvolvimento centrado numa dinâmica mediterrânica
regional.
Um espaço heterogéneo
É verdade que, na nova geografia aberta, desenhada pela globalização,
o Mediterrâneo parece fechado, com as suas três passagens estratégicas:
o Estreito de Gibraltar, a Oeste, o Canal do Suez e a sua rota de
petroleiros, a Sudeste, e o Estreito de Dardanelos, a Noroeste. Outrora,
esse caráter fechado, que tornava mais fácil o controlo do tráfego
marítimo, era uma vantagem estratégica importante. Hoje, isso não
acontece. À margem do centro de gravidade do mundo, o espaço
mediterrânico continua, além disso, a ser extremamente heterogéneo. A
população dos 22 países ribeirinhos é de 475 milhões de habitantes, com
origens religiosas e culturais diversas: cristãos, muçulmanos, judeus,
europeus, turcos, árabes, berberes, israelitas.
Militarmente, a norte do mar, a unidade é assegurada pela Aliança
Atlântica, dominada pelos Estados Unidos, cuja Sexta Frota desempenha um
papel preponderante em matéria de segurança do Mediterrâneo. Até
quando? Washington não esconde a vontade de se retirar, contribuindo
para acelerar a perda de influência da região.
Acontece que a Europa ainda está longe de ser capaz de preencher esse
vazio norte-americano. A UE desempenhou um papel importante na ajuda à
Europa de Leste, depois da queda da URSS, mas negligenciou o Sul. Essa
falha da liderança europeia teve por consequência o abandono de um
espaço regional fragmentado, cujo domínio é disputado por vários países:
Arábia Saudita, Irão, Turquia (membro da NATO e candidato à adesão à
União Europeia), Egito, num Médio Oriente onde Israel desempenha um
papel independente. No Magrebe, a rivalidade entre Marrocos e a Argélia
bloqueia qualquer cooperação regional.
No entanto, a Europa lançou algumas iniciativas, a mais ambiciosa das quais foi a criação da União para o Mediterrâneo (UPM),
que conta com nada menos de 43 membros (os agora 28 membros da UE, aos
quais há a acrescentar a Albânia, a Argélia, a Bósnia-Herzegovina, o
Egito, Israel, Jordânia, Líbano, Mauritânia, Mónaco, Montenegro,
Marrocos, Autoridade Palestiniana, Síria, Tunísia e Turquia)! Contudo,
devido à sua dimensão e à sua governação, a UPM não é operacional. Os
interesses dos seus membros são divergentes. O espaço Schengen divide o
Mediterrâneo, tal como o protecionismo agrícola.
Interesses geoestratégicos menores
Não haverá então qualquer esperança de o Mediterrâneo voltar a ser
uma potência económica? A curto prazo, não há indiscutivelmente, mas, a
longo prazo, tudo joga a favor disso. Porque as motivações que estiveram
na origem das “primaveras árabes”, tal como, em seu tempo, as que
levaram à adesão dos países europeus mediterrânicos à UE, se mantêm
inalteradas: um melhor nível de vida, num ambiente mais seguro e
democrático. Dado que os interesses geoestratégicos são hoje menores do
que há vinte anos, o Mediterrâneo pode, portanto, voltar a ser um
epicentro económico importante.
A primeira etapa poderia passar por uma união energética, que
garantisse a independência de toda a União para o Mediterrâneo, criando
uma parceria entre países produtores (de hidrocarbonetos e também de
energias renováveis) e países consumidores.
Isso teria a vantagem de reduzir a dependência europeia em relação à
Rússia. A UE é a única entidade capaz de organizar essa unidade e os
quadros de cooperação já existem. Convém reforçá-los; além dos recursos
naturais, existe um potencial agrícola importante e uma indústria
turística que pode ser desenvolvida de forma sustentável.
Impor o “hard power” não faz parte da sua natureza, mas a Europa pode
em contrapartida – e dispõe de recursos para isso – prosseguir esse
objetivo de paz, exercendo o “soft power”
para o qual tem vocação, através dos acordos bilaterais e multilaterais
existentes, que deverão ser progressivamente alargados a uma cooperação
à escala regional. Mas, para tal, a Europa tem de encontrar ela própria
a unidade que hoje lhe falta, devido às dúvidas a que a crise da dívida
deu origem.
Contudo, na situação atual, um tal projeto situa-se no domínio da
utopia, enquanto a luta entre as potências regionais – Arábia Saudita,
Turquia, Irão e respetivos aliados – da qual a Síria é hoje o palco
sangrento, ameaça destabilizar por muito tempo a margem sul do
Mediterrâneo.
Traduzido por Fernanda Barão
4 setembro 2013
La Tribune
Paris
"O mapa do mundo de Ptolomeu por Nicolaus Germanus (1467). Varsóvia, Biblioteca Nacional."
As reticências das potências ocidentais em agir na Síria
ilustram um facto: o “Mare Nostrum” já não é o centro do mundo que foi
em tempos. A retirada progressiva dos Estados Unidos da região deixa um
vazio que a União Europeia não consegue preencher.
O facto de ninguém querer morrer pela Síria deve-se igualmente à alteração do estatuto do conjunto do Mediterrâneo. Epicentro cultural, comercial e político do mundo durante séculos, esta é hoje vista como uma região conturbada e sem um futuro uno, no quadro de uma “globalização” que dita a nova marcha do mundo. Agora, é outro mar – o da China – que impulsiona a dinâmica mundial.
São muitos os exemplos que ilustram essa perda de influência. A começar pela evolução das “primaveras árabes”, que tantas esperanças suscitaram. No Egito, um golpe de Estado militar, apoiado pela maioria da população, derrubou o Presidente saído das fileiras da Irmandade Muçulmana, que tendia a concentrar todos os poderes, em proveito do seu partido. Mas, numa situação de grave crise económica, o futuro continua a ser muito incerto. Na Síria, a guerra civil afunda-se na tragédia e ameaça toda a região, e em especial o seu frágil vizinho Líbano. As hipóteses de resolução do conflito israelo-palestiniano continuam a ser mais uma esperança do que uma realidade. No Magrebe, a situação política estagnou numa conjuntura funesta para o desenvolvimento económico. A própria Turquia, até há pouco apresentada como exemplo de estabilidade, tem sido palco de manifestações em alguns casos violentas.
Na margem norte, a situação é também difícil. Atingida pela crise da dívida, a Europa mediterrânica, que pensava poder desenvolver-se graças à União Europeia, vê o seu destino ser traçado por uma troika de entidades financiadoras internacionais, cujas receitas passam por cima da subtileza de uma reflexão sobre um desenvolvimento centrado numa dinâmica mediterrânica regional.
Um espaço heterogéneo
É verdade que, na nova geografia aberta, desenhada pela globalização, o Mediterrâneo parece fechado, com as suas três passagens estratégicas: o Estreito de Gibraltar, a Oeste, o Canal do Suez e a sua rota de petroleiros, a Sudeste, e o Estreito de Dardanelos, a Noroeste. Outrora, esse caráter fechado, que tornava mais fácil o controlo do tráfego marítimo, era uma vantagem estratégica importante. Hoje, isso não acontece. À margem do centro de gravidade do mundo, o espaço mediterrânico continua, além disso, a ser extremamente heterogéneo. A população dos 22 países ribeirinhos é de 475 milhões de habitantes, com origens religiosas e culturais diversas: cristãos, muçulmanos, judeus, europeus, turcos, árabes, berberes, israelitas.Militarmente, a norte do mar, a unidade é assegurada pela Aliança Atlântica, dominada pelos Estados Unidos, cuja Sexta Frota desempenha um papel preponderante em matéria de segurança do Mediterrâneo. Até quando? Washington não esconde a vontade de se retirar, contribuindo para acelerar a perda de influência da região.
Acontece que a Europa ainda está longe de ser capaz de preencher esse vazio norte-americano. A UE desempenhou um papel importante na ajuda à Europa de Leste, depois da queda da URSS, mas negligenciou o Sul. Essa falha da liderança europeia teve por consequência o abandono de um espaço regional fragmentado, cujo domínio é disputado por vários países: Arábia Saudita, Irão, Turquia (membro da NATO e candidato à adesão à União Europeia), Egito, num Médio Oriente onde Israel desempenha um papel independente. No Magrebe, a rivalidade entre Marrocos e a Argélia bloqueia qualquer cooperação regional.
No entanto, a Europa lançou algumas iniciativas, a mais ambiciosa das quais foi a criação da União para o Mediterrâneo (UPM), que conta com nada menos de 43 membros (os agora 28 membros da UE, aos quais há a acrescentar a Albânia, a Argélia, a Bósnia-Herzegovina, o Egito, Israel, Jordânia, Líbano, Mauritânia, Mónaco, Montenegro, Marrocos, Autoridade Palestiniana, Síria, Tunísia e Turquia)! Contudo, devido à sua dimensão e à sua governação, a UPM não é operacional. Os interesses dos seus membros são divergentes. O espaço Schengen divide o Mediterrâneo, tal como o protecionismo agrícola.
Interesses geoestratégicos menores
Não haverá então qualquer esperança de o Mediterrâneo voltar a ser uma potência económica? A curto prazo, não há indiscutivelmente, mas, a longo prazo, tudo joga a favor disso. Porque as motivações que estiveram na origem das “primaveras árabes”, tal como, em seu tempo, as que levaram à adesão dos países europeus mediterrânicos à UE, se mantêm inalteradas: um melhor nível de vida, num ambiente mais seguro e democrático. Dado que os interesses geoestratégicos são hoje menores do que há vinte anos, o Mediterrâneo pode, portanto, voltar a ser um epicentro económico importante.A primeira etapa poderia passar por uma união energética, que garantisse a independência de toda a União para o Mediterrâneo, criando uma parceria entre países produtores (de hidrocarbonetos e também de energias renováveis) e países consumidores.
Isso teria a vantagem de reduzir a dependência europeia em relação à Rússia. A UE é a única entidade capaz de organizar essa unidade e os quadros de cooperação já existem. Convém reforçá-los; além dos recursos naturais, existe um potencial agrícola importante e uma indústria turística que pode ser desenvolvida de forma sustentável.
Impor o “hard power” não faz parte da sua natureza, mas a Europa pode em contrapartida – e dispõe de recursos para isso – prosseguir esse objetivo de paz, exercendo o “soft power” para o qual tem vocação, através dos acordos bilaterais e multilaterais existentes, que deverão ser progressivamente alargados a uma cooperação à escala regional. Mas, para tal, a Europa tem de encontrar ela própria a unidade que hoje lhe falta, devido às dúvidas a que a crise da dívida deu origem.
Contudo, na situação atual, um tal projeto situa-se no domínio da utopia, enquanto a luta entre as potências regionais – Arábia Saudita, Turquia, Irão e respetivos aliados – da qual a Síria é hoje o palco sangrento, ameaça destabilizar por muito tempo a margem sul do Mediterrâneo.
Traduzido por Fernanda Barão
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