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segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A militarização da sociedade brasileira precisa ser enfrentada não apenas nas ruas, mas sobretudo no interior das fábricas, dos escritórios, das agências bancárias, dos hospitais, das escolas, das grandes propriedades de terra e etc.

Missão dada é missão cumprida?


A militarização da sociedade brasileira precisa ser enfrentada não apenas nas ruas, mas sobretudo no interior das fábricas, dos escritórios, das agências bancárias, dos hospitais, das escolas, das grandes propriedades de terra e etc.

23/09/2013
Christian Gilioti,

Não era o Capitão Nascimento. Todavia, a imagem frontal do Subsecretário de Segurança Pública da Bahia puxando o gatilho de sua pistola poderia muito bem ter saído das telas do cinema. Estampada nos “principais” jornais e sites do país há poucos dias, a fotografia deu o que falar – muito embora, talvez não o suficiente.
Ainda que levemos em conta o caráter extremo da situação, a foto registra algo da miséria humana contemporânea. Não exatamente a miséria socioeconômica, aquela que entre outros fatores figura como a própria causa originária do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Mas sim uma miséria existencial, sobretudo por parte daquele que permanece praticamente invisível ao longo da vida, mofando no interior das repartições públicas e que, por uma confluência de fatores, subitamente incorpora as mais terríveis contradições da história: na hora “H”, o ex-delegado de polícia Ari Pereira misturava pânico e ferocidade enquanto disparava na direção de militantes do MST que acabavam de ocupar o prédio da secretaria em busca de respostas sobre o assassinato de Fábio Santos, uma liderança do movimento.
Ninguém foi atingido. Mesmo assim, o prédio foi ‘evacuado’ – como se diz em linguagem policial... Mas a despeito de seu cargo e de seu gesto, não encontramos nada que aproxime Ari da aura “reluzente” e “heroica” encarnada pelo ator Wagner Moura quando vestido com o uniforme negro do BOPE. Ao contrário, exatamente como manda o figurino dos vilões que pululam nos dois “Tropas de Elite” de José Padilha, ao observarmos a imagem, além da abertura bucal em flagrante desmedida, ganha destaque o ‘dourado’ do relógio e o ‘amarelo’ da gravata (cores que, inesperadamente, evocam outra gravata, mais precisamente a do “Governador Gelino”, personagem de “Tropa de Elite 2” que, momentos antes de ser fotografado durante campanha de reeleição, cisma com a coloração estapafúrdia da indumentária masculina escolhida a dedo por seu marqueteiro). Enfim, coisas do cinema nacional.
Contudo, mudando de filme, mas não exatamente de assunto, deixemos provisoriamente a periferia tropical em desenvolvimento e lancemos nossa imaginação ao centro desenvolvido da civilização.
Embora tendo como foco principal o julgamento – ocorrido em meados dos anos 60 – do nazista Adolf Eichman, o filme Hannah Arendt (Margareth Von Trotta, 2012), em cartaz há pouco mais de um mês, talvez seja mais revelador dos dilemas do mundo de hoje do que de cinco décadas atrás. Em que pese alguns defeitos, trata-se de um cinema que nos permite refletir sobre as atuais afinidades entre os ‘campos de trabalho’ e os ‘campos de batalha’, entre o ‘bureau’ e o ‘bunker’, quando as técnicas de ‘gestão militar’ e ‘gestão de negócios’ se mostram praticamente irmãs de sangue.
A história gira em torno do período em que Hannah Arendt foi contratada pela The New Yorker para cobrir o destino de Eichman, em Israel. Na época, muitos acreditavam que a filósofa alemã seria a mais indicada para relatar, com riqueza de detalhes, o julgamento de um dos maiores criminosos do século. O nazista estava ali para ser responsabilizado pela morte de milhares de judeus. Entretanto, o que quase ninguém previa é que embora de origem judaica, Arendt estava ali não exatamente para corroborar com o transe coletivo e sim disposta a compreender o que realmente se passava na cabeça do participante confesso do Holocausto.
Com efeito, a conclusão da filósofa consegue ser simples e ao mesmo tempo precisa: as atitudes de Eichman durante a Segunda Guerra não foram monstruosidades engendradas pelo ódio em relação a um povo específico, mas, acima de tudo, expressão de um tempo histórico: no banco dos réus não havia exatamente um único homem, aquele que cometeu crimes contra a Humanidade, mas sim a própria Humanidade que, arruinada pelo império da burocratização militarizada, se torna capaz de produzir, em série, milhões de “Eichmans”.
Sociedades nas quais é possível conviver sem propriamente raciocinar – eis o resultado do processo civilizador do Ocidente. O ponto alto do filme está na relação de espelhamento entre a frieza “racionalista” de Eichman diante de seus acusadores e a irracionalidade enfurecida deles e dos leitores da New Yorker após o início das publicações de Arendt. Enquanto o réu entendia (sic) o conjunto de suas ações apenas como o cumprimento de uma missão que se efetivava inicialmente através das ordens de seus superiores (e, depois, por pura dedicação ao “trabalho”), os indignados da New Yorker, na condição de meros consumidores, sentiam-se ao mesmo tempo donos do veículo e entendiam que a filósofa não estava cumprindo – com a devida eficiência – outra missão, por assim dizer “humanitária”, e que passava necessariamente pela transformação do nazista em bode expiatório do massacre perpetrado contra os judeus.
Dito isto, podemos retornar ao solo tupiniquim. Tomando de empréstimo a perspectiva da filósofa, além constituir uma versão nacional do caráter regressivo do Progresso do Ocidente, o rosto perturbador do Subsecretario de Segurança Pública baiano é nada mais nada menos do que a expressão viva da feição militarizada da sociedade brasileira. Nossa tradição autoritária, que no limite remonta ao escravismo, jamais foi superada. Entretanto, a face mais emblemática desse autoritarismo precisa ser decifrada levando-se em conta a cada vez mais contemporânea articulação do aparato repressivo do Estado com os imperativos de acumulação capitalista. Um fenômeno que, em termos genéricos, pode ser descrito como uma espécie de contaminação da lógica militar no ambiente de trabalho.
É fato que, espalhados pelo Brasil, incontáveis “Amarildos” e “Fábios” continuarão sendo assassinados por forças policiais ou milícias clandestinas que atuam a serviço da propriedade privada (a lista só cresce, e nela também temos os nomes de Ricardo, Maria de Fátima, Alessandra, entre tantos outros...). Em São Paulo, a proposta da “bancada da bala” de homenagear com a “Salva de Prata” a Rota foi aprovada na Câmara dos Vereadores. No Rio de Janeiro, assim como no Distrito Federal, o uso de máscaras durante as manifestações foi oficialmente criminalizado, sendo que entre os cariocas já estão ocorrendo mandatos de busca, apreensão e até prisão contra jovens que teriam supostamente incitado práticas de desobediência civil nas redes sociais. Sem falar do PL 728/2011 que, definitivamente, poderá tipificar os protestos como ‘ações terroristas’.
Pela via institucional ou através da força bruta, trata-se sem dúvida de uma sequência de golpes violentíssimos contra setores organizados da sociedade que nos últimos vinte anos vêm enfrentando politicamente o status quo e, especialmente, após as ‘jornadas de junho’, pretendem intensificar, em diferentes frentes, a luta contra as mais diversas formas de exploração e opressão.
Por outro lado, também existe algo de bélico nas dinâmicas motivacionais direcionadas aos operadores de telemarketing, nas preleções que antecedem as partidas de futebol, nas palestras voltadas ao público empresarial, assim como nos livros de autoajuda ou mesmo nas ‘sessões de descarrego’ que vêm se generalizando em diferentes vertentes da prática religiosa – incluindo o catolicismo. Forçosamente, isso tudo aponta na direção dos imperativos da produtividade capitalista irrevogável, afinal, em diferentes escalas da divisão social do trabalho, ela anda exigindo – ao mesmo tempo – horizontalidade e hierarquia, automatismo e criatividade, submissão e liderança, competitividade e colaboração, coragem e medo.
Por isso, a militarização da sociedade brasileira precisa ser enfrentada não apenas nas ruas, através dos movimentos sociais que exigem a reestruturação das instituições policiais e a reorientação das políticas de segurança pública, mas sobretudo no interior das fábricas, dos escritórios, das agências bancárias, dos hospitais, das escolas, das grandes propriedades de terra e etc. Na verdade, trata-se hoje de uma tarefa que diz respeito a todas as dimensões da vida humana.
Christian Gilioti é professor de filosofia no ensino médio e mestrando em filosofia na FFLCH-USP. Pesquisa as formas artísticas de parte do cinema nacional da última década e suas imbricações com a cultura e a política contemporâneas.

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