Páginas

terça-feira, 17 de setembro de 2013

40 anos depois da morte de Allende, deveríamos agradecer: Obrigada Washington, por nos livrar do perigo vermelho! Amém.

Obrigada, Washington


40 anos depois da morte de Allende, deveríamos agradecer: Obrigada Washington, por nos livrar do perigo vermelho! Amém.

13/09/2013
Bruna Muriel*

Na edição noturna do Jornal da Cultura da última quarta feira, 11 de setembro, o comentarista Luis Felipe Pondé afirmou que se o presidente chileno democraticamente eleito Salvador Allende não tivesse sido assassinado pela ditadura de Pinochet 40 anos atrás e houvesse permanecido no poder, teria fracassado. Porque, afinal, todo governo socialista fracassa.
Em seguida entraram os comerciais.
Meus olhos fitaram a tela entre cansados e instigados e, sobre minha cabeça, surgiu um balão com a seguinte interrogação: “Isto quer dizer que os governos liberais e neoliberais impostos a partir de golpes militares em distintos países da América Latina... São exitosos?”
E a opressão vivida pela oposição nos momentos posteriores ao golpe? E a intensificação das contradições sociais em escala nacional e internacional, experimentadas pelas experiências capitalistas, que expandiram o abismo entre indivíduos e países ricos e pobres? E que concentraram rendas e terras, intensificaram as guerras, a exclusão social, o tráfico, a alienação política, o impacto ambiental, a cultura do consumo e a violência armada?
É interessante como sabemos pouco sobre a trágica história deste país “hermano” sul-americano. Sabemos que produz ótimos vinhos - obrigado, senhor, pela existência do Concha y Toro! - e sabemos que possui montanhas nevadas, já que todo inverno a capa da Caras divulga as caras –e as bundas, se o Ziraldo me permite o trocadilho - das divas brasileiras que vão lá esquiar. Mas pouco sabemos sobre o quão próximo o Chile esteve de transformar-se em um país socialista.
Pelo menos este era o projeto de grande parte da população que apoiou o governo de Allende. Um presidente que tentou superar a situação de dependência externa, desigualdade social e a falta de participação democrática através de ações como: a nacionalização das indústrias, o diálogo com as organizações sociais, a implantação de novas experiências de participação popular e a criação de mecanismos de redistribuição da renda nacional, até então hiper-concentrada. E, como se não bastasse tamanho atrevimento, pasmem! Aprofundou a reforma agrária.
Ou seja, tudo aquilo que deixava – e ainda deixa - a elite, a classe média, a Igreja, os militares e os Estados Unidos de cabelos em pé. E, por isso, foi brutalmente assassinado em 1973 durante o bombardeio que destruiu o Palácio de La Moneda, em Santiago do Chile. A ação foi o momento inicial do golpe militar comandado pelo general Pinochet, cuja ditadura, apoiada por Washington, incluia criação de campos de concentração, mais de 3.200 mil mortos e outras 38 mil vítimas entre presos, torturados e exilados.
Fato é que, por pouco, a cidade de Santiago do Chile não vivencia um percurso politico, econômico e ideológico parecido com o de uma outra Santiago. A cidade-xará, mais caliente e rumbera, Santiago de Cuba, capital de uma guerrilha que levou o país a um percurso histórico que parece radicalmente distinto e distante do resto dos países da América Latina. O que não se fala é que, não fosse o suporte organizacional, financeiros, logístico, militar, dado pelos Estados Unidos às forças contrarrevolucionarias, a história de Nuestra América teria sido outra.
Aliás, é interessante notar que, ao sintetizar a multiplicidade de preconceitos (classistas, ideológicos, raciais, geográficos) imbricados à elite nacional, a vinda dos médicos cubanos para o Brasil através do programa Mais Médicos gerou uma reação da reação de tal modo extremada, que fez a maioria da população se solidarizar com os estranhos habitantes desta ilha caribenha, misteriosa e desconhecida, que – sabe-se lá por que - insiste em permanecer isolada e socialista. E por socialista, leia-se - ou leia na Veja - um regime antidemocrático, ditatorial, escravocrata e atrasado. Onde muito provavelmente, como em qualquer comunismo que se preze, se cortam as mãos dos opositores e se devoram criancinhas.
Teria sido melhor se o Chile houvesse permanecido sob um governo eleito democraticamente e vivenciado a fundo as experiências de transformação ansiadas por grande parte da população? Não sei.
É claro que as experiências do socialismo real distam muito daquilo que foi idealizado pelos seus teóricos e militantes. Hoje em dia, ninguém deseja viver em um sistema onde se cerceiam liberdades básicas (de expressão, opinião e políticas), onde a internet é controlada e onde permanece a pena de morte. Como em Cuba. Mas é o desejo de todo mundo (ok, quase todo mundo) viver em uma sociedade mais igualitária, povoado de pessoas alfabetizadas e saudáveis, que praticamente desconhecem a violência, o crack e a existência de meninos de rua. Pois é. Acabo de voltar de Cuba, e lá é exatamente assim.
Passou da hora de que o Brasil e o resto do mundo deixem de lado este olhar enviesado em relação à Cuba e às experiências dos governos progressistas da América Latina – os da década de 60 e 70, e os atuais. Olhar este constantemente reforçado pela propaganda falaciosa de um sistema que, através da retórica da liberdade, da democracia, do progresso e do desenvolvimento, encobre a expansão, em escala global, de lógicas comerciais perversas e de um modelo já intolerável de desenvolvimento baseado na exploração. De uns povos sobre outros, de uns seres humanos sobre outros e destes sobre a natureza.
Dialoguemos, portanto! Dialoguemos com as práticas de transformação social pela via pacífica do Chile de Allende. E dialoguemos com Cuba e sua corajosa experiência histórica. Caminhemos em busca de novas possibilidades de existência social, mais igualitárias e, ao mesmo tempo, mais libertárias. Dialoguemos, também, com os médicos cubanos cuja experiência, tanto em termos de medicina quanto em projetos de solidariedade internacional, tem muito a ensinar a uma cultura individualista e mercantilista, que vê a troca com o outro ser ou nação pelo viés do lucro, ainda quando o que está em jogo é a vida humana.
Vale lembrar que o programa de Ajuda Internacional Cubana parte de princípios éticos, filosóficos e ideológicos difíceis de compreender para os que estão acostumados a um modelo de cooperação internacional baseado na velha fórmula de “dar e receber”, onde a “ajuda” depende de acordos comerciais que, ou vinculam o país receptor a empresas multinacionais do país doador ou que acabam por gerar novas dívidas externas em países já fragilizados economicamente. É outra a percepção em relação à humanidade, à saúde e à vida. Dialogar com os médicos cubanos, portanto, pode contribuir para o resgate de uma medicina mais humana e holística, baseada na relação pessoal entre o médico e o paciente, fundamentada no conhecimento humano e não somente na alta tecnologia. Até porque a medicina em Cuba teve que se desdobrar em força e criatividade como forma de superar a carência de equipamentos high tecs, embargados devido ao bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos algumas décadas atrás.
O programa de colaboração sistemática e gratuita aos países subdesenvolvidos, como parte da política do estado revolucionário, foi incluído no projeto político nacional a partir de 1963, quando o médico argentino Ernesto Che Guevara encabeça a primeira missão de ajuda médica a Argélia. A este país seguiram outros da África, América, Ásia... Até chegarmos, em julho de 2013, a um total de 39.918 profissionais da saúde colaborando em 58 países, o que a faz ser reconhecida mundialmente. Exceto pela máfia do colarinho branco do Brasil.
Mas a primeira experiência de ajuda humanitária cubana teve início logo após a revolução de 1959. Nem bem um ano havia se passado desde a derrubada do ditador Fulgêncio Batista, quando uma importante brigada médica partiu rumo a um Chile devastado pelo terremoto mais forte de sua história, el sismo de Valdivia. Mais de 5 mil mortos, com seus 9,5 pontos de escala Richter.
Neste momento, as duas Santiagos – de Cuba e do Chile - se encontraram. Uma, seguiria um caminho duro, mas autônomo e independente. A outra, sofreria a intervenção militar mais cruel e sanguinária de todas as experiências cruéis e sanguinárias que foram os golpes de estado na América Latina.
Mas... Diante do sucesso das experiências capitalistas na América Latina e uma vez que o socialismo estava destinado ao fracasso mesmo... Acho que, 40 anos depois da morte de Allende, deveríamos agradecer.
Obrigada, Washington, por nos livrar do perigo vermelho! Amém.

*Bruna Muriel Huertas Fuscaldo é doutoranda pelo Programa de Pós Graduação emIntegração da América Latina da Universidade de São Paulo, PROLAM-USP.

Nenhum comentário:

Postar um comentário