O escândalo da Globo
Sonegação, paraíso fiscal, roubo de documentos… Mensalão da Globo ainda terá muitos capítulos pela frente. Poderia ser roteiro de novela. Ou de um filme B. Mulher em férias vai ao local de trabalho com uma sacola e sai com milhares de páginas de um processo que envolve a cobrança de R$ 615 milhões.
Por Luiz Carlos Azenha, do blog Viomundo
CASO GLOBO: ENREDO DE NOVELA
Seis anos depois, um homem tenta vender mos papéis comprometedores, no submundo da informação, por 200 mil reais. Como todo roteiro de thriller sobrevive graças à tensão da dúvida, neste caso a incerteza é: a mulher agiu para ajudar ou prejudicar a empresa da qual era cobrada a fortuna? O caso envolvendo a Globopar, controladora da TV Globo, ilustra o impacto da internet na Era da Informação. Num passado não muito remoto, os documentos relativos à autuação pelo Fisco do maior grupo de comunicação do Brasil provavelmente ficariam dormentes nas gavetas de repórteres investigativos de empresas concorrentes por causa do pacto de silêncio que vigora entre quase todos os homens brancos, ricos e reacionários que controlam a grande mídia.
Agora, o cerco foi rompido por um blog – logo apelidado carinhosamente de “Organizações Cafezinho”. Miguel do Rosário, que toca O Cafezinho, é blogueiro sujo. Foi dele o furo sobre a existência do processo de sonegação da Globopar. Sob o título Bomba! O Mensalão da Globo, Miguel escreveu: “A emissora disfarçou a compra dos direitos de transmissão dos jogos da Copa do Mundo de 2002 como investimentos em participação societária no exterior”. A notícia foi compartilhada por mais de 2 mil pessoas nas redes sociais e deu início a um típico turbilhão “internético”. Em algumas horas, havia sido replicado ou comentado em dezenas de blogs. A versão original e as que se inspiraram nela foram disseminadas rapidamente nas redes sociais – a reprodução publicada no Viomundo foi compartilhada por 10 mil leitores no Facebook. Uma repercussão à altura do Jornal Nacional.
Tanto que a Globopar foi forçada a emitir notas oficiais apresentando sua própria versão, algo inédito. Nêmesis dos Marinho, neste caso, Miguel do Rosário escreveu durante 15 anos sobre café numa newsletter criada pelo pai, José Barbosa do Rosário, que por ironia foi repórter de O Globo. Isso explica o nome do blog mantido por ele, que viu a audiência saltar de 5 para 50 mil leitores diários nas últimas semanas.
Miguel tem cerca de 300 assinantes (calcula em 36 mil reais seu faturamento em 2012, contra 12,6 bilhões de reais das Organizações Globo). O Cafezinho exibe um único anúncio, da Rede Brasil Atual, enquanto as Organizações Globo abocanham mais de 45% de todas as verbas publicitá-rias do governo federal, acumulado de 5,9 bilhões de reais entre 2000 e 2012. A força dele e de outros blogs “sujos” reside na horizontalidade. Em tese, não existe hierarquia entre blogueiro e comenta-ristas: eles frequentam diferentes espaços na blogosfera, fazendo sugestões de conteúdo, críticas e debatendo com outros leitores. Atuam como abelhas polinizadoras. Tudo muito distante da hie-rarquia verticalizada das Organizações Globo, em que a família Marinho manda e quem tem juízo obedece. Talvez os globais tenham sido pegos de surpresa pela repercussão da denúncia. Quem lida com a blogosfera, não. Foram os próprios leitores, de forma voluntária, que fizeram o trabalho de formiguinhas. As 12 páginas de documentos em papel timbrado da Receita Federal – parte do pro-cesso contra a Globo – compartilhadas por Miguel no site de hospedagem Slide Share, logo bateram em 160 mil visualizações.
O que dizem os documentos? Na versão da Receita, a Globo simulou uma operação de investimento nas ilhas Virgens Britânicas, refúgio fiscal do Caribe, através de uma em-presa de fachada de nome Empire. Objetivo: deixar de recolher os impostos devidos no Brasil na compra dos direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002. Por conta disso, a Receita cobrou, em outubro de 2006: 183 milhões de reais em imposto sonegado, 157 milhões de reais em juros de mora e 274 milhões de reais em mul-ta, totalizando 615 milhões de reais.
O auditor fiscal Alberto Sodré Zile, que assinou a representação fiscal para fins penais, na qual foi nomeado um dos irmãos Marinho, José Roberto, escreveu que em tese houve crime contra a ordem tributária, cometido pela Globopar ao “omitir informação ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias”. A julgadora Maria de Lourdes Marques Dias, encarregada de avaliar o recurso final da empresa, escreveu que a fiscalização “constatou a existência de simulação”. Nas palavras dela, a Globo adquiriu “em aparência, uma pessoa jurídica com sede nas Ilhas Virgens Britânicas; no entanto, menos de um ano depois, a sociedade é dissolvida e seu patrimônio vertido para que a TV Globo obtivesse a licença que a permitiria transmitir os jogos da Copa do Mundo de 2002”.
Numa de suas notas oficiais a respeito do caso, a Globopar negou irregularidades e afirmou que apenas escolheu “uma forma menos onerosa e mais adequada no momento para realizar o negócio, como é facultado pela legislação brasileira a qualquer contribuinte”. A empresa também asse-gurou que não tinha dívidas com a Receita por ter aderido ao Refis – programa que permite parce-lamento e abate valores da dívida. Segundo a legislação brasileira, quitação de dívida com o Fis-co extingue a possibilidade de processo criminal.
Apesar das declarações públicas da Globopar, militantes digitais passaram a exigir algum tipo de comprovante do pagamento. Estranhavam o fato de o processo 18471.000858/2006-97, nas consultas feitas através do site do Ministério da Fazenda, aparecer com o movimento congelado em 29 de dezembro de 2006. O que teria acontecido para permanecer parado por mais de seis anos? A resposta foi dada pela própria blogosfera. No caso do Viomundo, por um repórter investigativo que não quer se identificar. Ele foi um dos internautas que descobriram que uma agente administrativa da Receita Federal, Cristina Maris Meinick Ribeiro, tinha sido condenada a 4 anos e 11 meses de prisão no início de 2013 pelo sumi-ço dos processos da Globo, que tramitavam conjuntamente – a representação para fins penais e a cobrança dos 615 milhões.
Dias depois, o mesmo repórter levantou na Justiça Federal do Rio de Janeiro que Cristina responde ou respondeu a outros 14 processos, a maioria por fraudes eletrônicas no sistema da Receita que benefi ciaram empresas endividadas com o Fisco. Em todos os casos, proprietários, sócios ou funcionários das empresas supostamente beneficiadas por Cristina se tornaram reús ou pelo menos foram chamados a testemunhar. A notável exceção foi a Globopar. Se Cristina agiu sistema-ticamente para benefi ciar devedores, por que te-ria feito diferente no caso da Globo?
“A Globo Comunicação e Participações não é parte no processo [contra Cristina], não conhece a funcionária e não sabe qual foi sua motivação”, afi rmou a empresa dos Marinho em nota. Além disso, a Globopar disse ter ajudado a Receita a recompor os processos, que teriam voltado a tramitar – sugerindo, assim, que não tirou nenhum proveito do que chamou de “extravio”. Mas o blogueiro Fernando Brito, de O Tijolaço, fez uma cro-nologia do caso e cravou que o sumiço do processo benefi ciou a Globopar. Ele escreveu: “1– A Globo é autuada em 16 de outubro de 2006 por sonegação de impostos devidos pela compra dos direitos de transmissão da Copa de 2002. To-tal da autuação: 615 milhões de reais. 2 — No dia 7 de novembro, José Américo Buentes, advogado da Globo, passa recibo de que recebeu cópia da autuação. 3 – No dia 29 deste mesmo mês, a Globo apresentou uma alentada defesa, de 53 páginas, pedindo a nulidade da autuação. 4 — No dia 21/12/06, a defesa da Globo foi rejeitada pelos auditores. 5 — No dia 29/12/2006, o processo é remetido da Delegacia de Julgamento I, onde havia sido examinado, para o setor de Sistematização da Informação, de onde são expedidas as notifi cações. Uma sexta-feira, anote. 6 — Sábado, 30; Domingo, 31; Segunda, 1° de janeiro, feriado. Dia 2, primeiro dia útil depois da remessa do processo ao setor, a servidora Cristina Maris Meirick Ribeiro, que estava de férias, vai à repartição, pega o processo, enfi a numa sacola e o leva embora. 7 — Até o simpático Inspetor Clouseau concluiria, portanto, que ela foi mandada lá com este fim. Estava só esperando chegar lá o processo. Chegou, sumiu. 8 — Não é preciso ser um gênio para saber a quem interessava que o processo sumisse antes da notificação, para que não se abrisse o prazo de decadência do direito de recorrer e conservar a regularidade fiscal”. Ou seja, Brito responde com “Globopar” quando se faz a per-gunta clássica: a quem interessava o crime? Mas, como se trata de uma novela, a trama pode ser mais complicada do que parece.
Depois de uma temporada no Rio de Janeiro, o repórter investigativo Amaury Ribeiro Jr. apurou que a íntegra do processo da Globo na Receita está sendo oferecida no mercado clandestino da informação por 200 mil reais, o que sugere que o sumiço da papelada pode ter sido ação de uma quadrilha de achacadores interessada em extorquir a Globo. Negociações para entrega dos documentos teriam resultado até em tiroteio e morte, uma versão para a qual não existem provas ma-teriais ou testemunhas dispostas a falar.
Por sua vez, o blogueiro Rodrigo Vianna, de O Escrevinhador, que trabalhava na Globo como repórter em 2006 – assim como o autor deste texto – testou outra hipótese. Lembrou-se de que a cobertura das eleições presidenciais daquele ano foram marcadas por mudança de postura da Globo. Na temporada que antecedeu o primeiro turno, a emissora adotou pauta dominada por fortes ataques ao candidato Lula, beneficiando o candidato tucano Geraldo Alckmin. Rodrigo escreveu que “a cobertura global da eleição mudou completamen-te no segundo turno, tornando-se mais ‘suave’. Em novembro de 2006, um colega que também era repórter da Globo e que mantinha bons con-tatos com Marcio Thomaz Bastos (então ministro da Justiça de Lula) disse-me: ‘Rodrigo, agora eles sentaram pra conversar, o governo e os Marinho’”.
A especulação de Vianna ganha alguma credibilidade por conta das datas: o primeiro turno foi em primeiro de outubro de 2006, a Globo foi autuada em 16 de outubro, Lula se reele-geu em 29 de outubro de 2006 e, esgotado o trâmite interno na Receita, o processo em que a Globopar era cobrada em R$ 615 milhões sumiu no dia 2 de janeiro de 2007. Tanto a tese da ação de achacadores quanto a de um acordo pelo qual gente ligada ao governo Lula teria interesse em ajudar a Globopar são, por enquanto, meros exercícios de especulação. O caminho natural para desvendar a trama seria ouvir a funcionária condenada da Receita, Cristina Ribeiro.
O Ministério Público do Rio de Janeiro, pelo menos no papel, disse que tentou fazê-lo. “O MPF ofereceu várias oportunidades para que a servido-ra cooperasse com as investigações e indicasse os eventuais co-autores do delito, porém a ré optou por fazer uso de seu direito constitucional ao si-lêncio”, afirmou em nota. Em sua nota de 10 de julho, a Globo Comunicação e Parti-cipações reiterou não ter “qualquer dívida em aberto com a Receita”. Ou seja, deixou implícito que as acusações contra ela eram assunto do passado.
No entanto, o repórter Amaury Ribeiro Jr. apurou que a empresa teve contas bancárias bloqueadas recentemente. Em maio de 2013, tramitava na Justiça Federal do Rio a ação de execução fiscal número 2009.51.01.503546-4, proposta pela Fazenda Nacional contra a Globopar, referente a uma dívida que em 9 de setembro de 2010 era mais de 173 milhões de reais. Por causa do sigilo fiscal, a Receita Federal diz que não pode dar informações. Instigado por entidades da sociedade civil, o Ministério Público do Distrito Federal abriu apuração criminal preliminar sobre o caso – em 90 dias, decide se transforma ou não em inquérito. O deputado Protógenes Queiroz propõe uma CPI da Globo, mas terá difi uldades para recolher assinaturas num Congresso em que tantos deputados e senadores são parceiros ideológicos ou comerciais da emissora.
As redes sociais e as ruas, no entanto, continuam a fustigar os irmãos Marinho. Nas manifestações de junho e julho, pela primeira vez milhares de pessoas protestaram diante das sedes da Globo no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Maceió, Fortaleza, Salvador e Porto Alegre. Ironicamente, os irmãos Marinho, que advogam a necessidade de transparência nos negócios de Estado e são concessionários de um serviço público, pediram às autoridades a investigação de quem vazou a existência dos processos que comprometem a Globo.
Peça-chave para esclarecer a trama, Cristina Ribeiro apagou seu perfil no Facebook e trancou-se no apartamento que divide com a mãe na avenida Atlântica, em Copacabana. Um imóvel similar ao que ela ocupa, no mesmo prédio, foi avaliado em 4 milhões de reais. Por telefone, Cristina disse a este repórter que nem sabia que tinha sido condenada em janeiro de 2013 pelo sumiço dos processos. A lei do silêncio imposta pelos barões da mídia sobre seus próprios negócios – eventualmente suspensa por conta de disputas comerciais entre eles –, para todos os efeitos, foi sepultada. O gigante vertical tremeu diante da rede horizontal tecida a partir de um certo Cafezinho. “Fora Rede Globo, o povo não é bobo”, bordão que surgiu nas longínquas greves do ABC paulista, nos anos 80, ganhou versão digital: “Globo Sonega”, que militantes projetaram sobre o prédio paulista da emissora, como se fosse uma logomarca iluminada do século 21.
Luiz Carlos Azenha é jornalista
Fonte: Revista Caros Amigos, edição de agosto
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