Páginas

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Post-scriptum: contra a ecologia. 1) a raiz de um debate

Post-scriptum: contra a ecologia. 1) a raiz de um debate


Gostaria de dizer ainda algumas coisas sobre a ecologia, e outras gostaria de dizê-las de novo. É o que farei nesta série de oito artigos

Por João Bernardo - 30/08/2013
Embora desde Junho de 2012 as minhas publicações se tenham sucedido ao ritmo do conta-gotas e se destinem a secar em breve, há ainda algumas coisas que gostaria de não deixar sem dizer a respeito da ecologia.
1.
A ecologia despertou-me a atenção pouco depois do 25 de Abril de 1974, a Revolução dos Cravos, e gradualmente fui-me dando conta de que a sua audiência crescente em Portugal era uma das manifestações da derrota sofrida pela classe trabalhadora na segunda metade de 1975. Isto levou-me a colocar a hipótese de que também nos outros países o interesse manifestado pela ecologia resultasse do refluxo das lutas sociais, e nesta perspectiva comecei a analisar a questão.
Em 1977, no prefácio à edição espanhola de um livro meu, reproduzido depois numa revista portuguesa, critiquei pela primeira vez uma tendência, «seguida por grande parte dos que se dizem “ecológicos”», que «consiste em defender uma paragem do crescimento industrial e o regresso, pelo menos parcial, a certas técnicas de produção pré-capitalistas». Portanto, foi o arcaísmo da ecologia que primeiro me desagradou, e continuei: «A ambição de regressar a épocas históricas ultrapassadas é o protótipo da utopia, e não vale a pena gastar mais tinta a demonstrar a impossibilidade desse retorno, quando tal demonstração foi feita já milhares de vezes; só não está convencido quem não o poderá ser». Deveria ter escrito que é precisamente quando os argumentos racionais não são eficazes que a fé mais se enraíza. «Quanto à defesa de um “crescimento zero”», prossegui, «é curioso notar que ela se encontra tanto na boca de muitos ecológicos como na dos economistas capitalistas mais conservadores. Tal convergência é um sintoma da crise económica que o capitalismo atravessa desde 1974, e prefigura certamente um novo tipo de crescimento das forças produtivas capitalistas (o que estas correntes encaram ideologicamente como um não crescimento)».
Depois a crise foi ultrapassada, o capitalismo reorganizou-se tanto ao nível das empresas como ao nível do Estado e o crescimento zero perdeu muito da sua aura. Mas, vista com trinta e seis anos de recuo, esta análise parece-me presciente, porque hoje, quando a economia entrou em crise nos velhos centros de acumulação do capital, nos Estados Unidos e na União Europeia, as teses do crescimento zero voltaram em força, a ponto de se terem tornado hegemónicas em alguns meios, e novamente se encontram reunidos na sua defesa os ecologistas e alguns dos economistas mais conservadores.
Procurando definir a base deste tipo de concepções, considerei naquele prefácio que ele «assenta sobretudo na esfera económica do consumo, e não da produção: estudantes, quadros inferiores da tecnocracia, indivíduos de profissões liberais, etc.». E, depois de tecer algumas considerações acerca da dinâmica de expansão da classe social que então eu denominava ainda tecnocracia e que passado pouco tempo passaria a chamar gestores, expliquei que «as novas condições do desenvolvimento das forças produtivas capitalistas, agravadas pela crise actual, tiveram como consequência uma elevada percentagem de desempregados entre as baixas camadas da classe tecnocrata. Nomeadamente os estudantes, aprendizes tecnocratas, têm cada vez maior dificuldade em encontrar uma profissão estável, uma vez concluídos os seus cursos. Em todos os países industriais desenvolvidos milhares de tecnocratas potenciais são lançados no desemprego sem terem alguma vez tido, mesmo enquanto tecnocratas, qualquer contacto com o processo produtivo. Tecnocratas frustrados, estes elementos revoltam-se sobretudo enquanto consumidores não inteiramente realizados». E prossegui, observando que eles «preocupam-se muito, por exemplo, com os efeitos da tecnologia capitalista no exterior das fábricas; mas preocupam-se muito pouco com os efeitos dessa tecnologia dentro das fábricas; e, como tudo isto se passa numa sociedade capitalista que ameaça durar ainda várias décadas» — hoje eu teria escrito vários séculos — «não se preocupam nada com o problema do desemprego operário». Estas linhas aplicam-se inteiramente, ou talvez ainda mais, aos países europeus vítimas da actual crise económica, nomeadamente Portugal. É nestes países e nestas camadas sociais que a ecologia e ocrescimento zero obtiveram um novo, e estrondoso, sucesso.
2.
Nos anos seguintes comecei a desenvolver o núcleo de ideias apresentado no prefácio de 1977, mas convém recordar que em Portugal a rede ideológica em que a ecologia se inscreveu e de que resultou era especialmente fácil de detectar. O Partido Popular Monárquico (PPM), que chegou a participar no governo numa coligação de centro-direita desde 1980 até 1983, foi o único a incluir a ecologia no seu programa. O fundador e presidente do Directório e do Congresso deste partido, o antigo integralista Rolão Preto, havia chefiado contra o fascismo conservador e católico de Salazar um fascismo populista e arruaceiro, próximo do nacional-sindicalismo espanhol, e estas duas correntes entraram em confronto ao longo de 1933, ano decisivo para a estabilização do fascismo em Portugal. Salazar triunfou, os Camisas Azuis de Rolão Preto ou foram integrados no Estado Novo em lugares menores ou foram lançados para a periferia e Rolão Preto acabou por ser expulso para Espanha em 1935, onde participou na guerra civil ao lado da Falange. Depois de 1945 ele situou-se na direita do que se chamava a oposição democrática ao salazarismo, assegurando assim uma sobrevivência política que me recorda actuações semelhantes na Alemanha e na Áustria do pós-guerra. Ora, Rolão Preto fora sensível à influência de Proudhon, como lhe haviam sido sensíveis também outras correntes da extrema-direita dos países latinos, e as propostas descentralizadoras e ecológicas do PPM devem muito à tradição proudhoniana. Lembro-me de ouvir um velho anarquista, que aliás estivera no campo de concentração do Tarrafal, aconselhar à boca pequena o voto no PPM devido ao seu proudhonianismo.
Este conjunto de circunstâncias facilitaria a compreensão dos aspectos políticos da ecologia a quem estivesse interessado em compreendê-los, e é significativo que tão poucos o estivessem. Uma voluntária distracção que prossegue hoje, pois os devotos da ecologia fazem vista grossa perante os estudos que mostram a sua relação com a extrema-direita radical.
Na sequência daquelas reflexões publiquei em 1979 um Manifesto Anti-Ecológico. O título é suficientemente explícito para mostrar do que se trata. As passagens desse livro que mais directamente têm a ver com a questão da ecologia foram reunidas por alguém, não sei quem, e estão disponíveis na internet, por exemplo aqui ou aqui. Em 1981, numa breve história do movimento ecológico português, o jornalista Arsénio Mota afirmou a respeito deste livro que ele «continha uma radical denúncia e causou impacto». Quanto ao «impacto» não sei, só dei por ele nos insultos que me foram dirigidos.
O assunto continuou a interessar-me e os vinte e quatro anos que dediquei a pesquisar e escrever acerca do regime senhorial permitiram-me ampliar a crítica a dois pressupostos da ecologia, o mito da natureza e o mito de que a sociedade industrial seria especialmente poluente. Num artigo que publiquei em 1987 com Rita Delgado, chegámos à conclusão, analisando o caso português de 1979 até 1984, que «3/4 dos acidentes de trabalho mortais verificados nesta amostragem devem-se a tecnologias primitivas ou à utilização arcaica de tecnologias mais evoluídas», o que nos levou a criticar um dos pressupostos da ecologia, que «apela para a utilização de tecnologias antiquadas e para o regresso a um sistema de pequenas empresas de tipo familiar, que teriam como conseqüência travar o desenvolvimento das forças produtivas». «As comunidades marginais dos ecológicos são uma ilusão e uma demagogia», escrevemos nós. «O que resta, na prática, das propostas dos ecológicos não é a diminuição dos ritmos de trabalho, mas apenas o emprego de tecnologias antiquadas. E devemos então analisar quais as conseqüências da utilização dessas tecnologias antiquadas no contexto geral do sistema capitalista».
Um amigo erudito recordou-me há dias que num livro publicado pela primeira vez em 1991, e agora acessível na internet, eu escrevera que «se ousasse dizer aqui em três linhas o que precisaria de um longo livro para ser explicado, afirmaria então que a mais-valia constitui, no capitalismo, a entropia negativa» (pág. 24 do pdf). Este é o núcleo de uma crítica global da ecologia, aquela que prossigo hoje, e a curta frase indica o rumo em que seguiam já os meus raciocínios. Apesar disso, até 2011 o tema permaneceu muito lateral nas minhas publicações, embora o tivesse abordado num dos capítulos de um livro editado em 2003 e em aulas e conferências, nomeadamente numa palestra organizada em Abril de 2007 por estudantes da Universidade de São Paulo e cujos materiais de apoio podem encontrar-se aqui ou aqui.
3.
Finalmente, em Março de 2011 publiquei no Passa Palavra o artigo «Socialismo da abundância, socialismo da miséria», onde recordei que o socialismo aparecera trazendo uma promessa de abundância a um proletariado que o capitalismo mantinha na miséria. «O socialismo surgiu da constatação de que, perante as colossais potencialidades produtivas contidas nas novas manufacturas e perante a remodelação operada nas tecnologias rurais, que multiplicara a produtividade do solo, a abundância se tornara possível». Eram fortíssimos os elos que ligavam o socialismo nascente ao crescimento da produtividade, e nesta perspectiva histórica a ecologia e o crescimento zero situam-se nos antípodas das preocupações originárias do socialismo.
As primeiras gerações de socialistas consideravam indispensável a liquidação dos patrões para que os trabalhadores conseguissem viver com a desejada fartura, e puseram mãos à obra. Perante esta ameaça, e já que a repressão só adiava e pouco ou nada resolvia, os chefes de empresa desencadearam ciclos sucessivos de aumento da produtividade. Tornou-se então possível, aumentando por um lado a intensidade e a complexidade dos processos de trabalho e as qualificações dos trabalhadores e reduzindo por outro lado os custos de produção dos bens de consumo, agravar a exploração ao mesmo tempo que melhorava o nível material de vida dos trabalhadores. As lutas sociais fizeram com que, nos países mais industrializados, os patrões respondessem aos anseios do socialismo da abundância com um capitalismo da abundância.
A questão do aumento da produtividade é central na dinâmica de expansão do capitalismo. Contrariamente ao que imaginam as versões coxas do marxismo, os trabalhadores bem vestidos e bem nutridos dos centros capitalistas mais avançados não constituem uma aristocracia do proletariadoalimentada à custa da população miserável das regiões atrasadas. É o aumento da produtividade nos principais centros capitalistas que acelera ali o processo de sobreexploração e leva a uma acumulação crescente de capital. Os mecanismos do imperialismo seguem o percurso inverso ao que os terceiro-mundistas imaginam, e foi porque o capital se acumulou preferencialmente nos centros mais desenvolvidos que estes centros puderam expandir a sua rede económica sobre as regiões atrasadas. Basta observar os fluxos do investimento externo directo, ou seja, os investimentos originários de um país e dirigidos para outro, que asseguram ao investidor o controlo ou, pelo menos, um interesse duradouro e uma influência decisiva na empresa onde o capital é aplicado. Estes investimentos, que formam hoje a teia das companhias transnacionais, são sobretudo atraídos pelos centros mais desenvolvidos ou por aqueles onde o ritmo de desenvolvimento é mais acelerado, o que indica que é ali que os lucros são maiores e, portanto, é maior a exploração. Embora se afigure paradoxal, os trabalhadores mais explorados são, por exemplo, os suecos e não os haitianos, e precisamente por isto o capital aflui à Suécia e não ao Haiti. Os mecanismos da produtividade explicam este aparente paradoxo do capitalismo, que um trabalhador viva em pior situação material e no entanto seja menos explorado do que outro que vive materialmente muito melhor. A este paradoxo chama-se mais-valia.
Nesta perspectiva, o crescimento da produtividade é a manifestação dos conflitos de classe no plano da tecnologia, quer material quer social. Uma repressão feroz, acompanhada pela perseguição às formas de organização própria da classe trabalhadora, elimina o aguilhão que estimula os chefes de empresa a aumentarem a intensidade dos processos de trabalho, a melhorarem a qualificação do pessoal e a reduzirem os custos de produção para absorver as lutas sociais. Por isso a repressão sistemática tem como um dos efeitos travar o crescimento da produtividade. Foi de certo modo o que aconteceu na União Soviética durante a época de Stalin, quando a preocupação com a produtividade incidiu apenas no sector destinado à produção de meios de produção, nomeadamente maquinaria e instalações, em detrimento do sector destinado à produção de bens de consumo. O êxito dos primeiros planos quinquenais e do fabrico de armamento durante a guerra foi obtido graças à mobilização de uma classe trabalhadora esfarrapada e de uma numerosa mão-de-obra em regime de escravismo de Estado. Não tardou muito para que os inconvenientes deste sistema se fizessem sentir por toda a economia. Inapto para produzir com alta produtividade bens de consumo abundantes, o capitalismo de Estado soviético não conseguiu atingir o nível dos capitalismos de mercado mais avançados, capazes de agravar a exploração e ao mesmo tempo melhorar o nível material de vida dos trabalhadores. Depois da morte de Stalin as sucessivas tentativas neste sentido ficaram frutradas porque o sistema repressivo, embora atenuado, continuava a limitar a capacidade reivindicativa da classe trabalhadora, e sem isto a administração das empresas não sentia pressões para aumentar a produtividade.
A desagregação da União Soviética e o colapso das restantes economias estatais na sua área de influência resultaram de uma multiplicidade de motivos, mas um dos principais foram os obstáculos políticos e sociais ao crescimento da produtividade, tanto assim que o Partido Comunista da China soube extrair a lição dos acontecimentos e converteu o país numa economia mista com algum grau de flexibilidade política, um capitalismo burocrático, como eu o denomino à falta de um termo melhor.
Foi nestas circunstâncias, quando parecia que não iriam erguer-se impedimentos políticos ao processo de aumento da produtividade enquanto mecanismo de recuperação das lutas sociais, que se difundiu um obstáculo novo. «A disseminação da ideologia ecológica, propagandeada de maneira maciça por todos os meios de informação, corresponde a uma fortíssima e permanente pressão para a redução do consumo particular», escrevi em «Socialismo da abundância, socialismo da miséria». «Onde antes os trabalhadores consideravam a melhoria do seu nível material de vida como uma prova do sucesso das suas reivindicações políticas e sociais, agora os ecológicos pretendem culpabilizá-los por essas conquistas e convencê-los de que por comerem mais, vestirem melhor, gastarem mais sabão e viverem mais desafogadamente põem em risco o planeta. A abundância passou a ser considerada como negativa e propõe-se o ascetismo de massas como a meta a atingir». Por caminhos muito diferentes dos que haviam sido percorridos pelo capitalismo de Estado soviético chegou-se ao mesmo resultado, a pressão para a redução do consumo particular, o que apenas pode ter um efeito idêntico, a travagem da produtividade. Só que desta vez essa travagem constitui um objectivo explícito, porque enquanto os dirigentes soviéticos nunca desistiram da ambição irrealista de estimular a produtividade apesar de impedirem as pressões sociais, agora os ecologistas propõem-se travar directamente a produtividade e inverter o crescimento económico.
Ora, se o aumento da produtividade é a condição para a recuperação capitalista dos conflitos de classe, travar a produtividade implica necessariamente a instauração de um sistema repressivo. E um regime em que as pressões sociais são contidas e a produtividade é estagnante aproxima-se mais do modelo do Haiti do que do da Suécia, ou seja, para empregar conceitos marxistas, trata-se de um regime assente na mais-valia absoluta e não na mais-valia relativa, assente nas formas extensivas e não nas formas intensivas de exploração. Vários autores têm insistido no facto de o capitalismo articular inelutavelmente esses dois tipos de exploração e Trotsky apresentou esta articulação de maneira dinâmica na conhecida fórmula dodesenvolvimento desigual e combinado. O problema é ainda mais complexo, porque a mais-valia absoluta e a mais-valia relativa não são separadas por uma barreira impermeável e o crescimento da produtividade faz com que formas de mais-valia relativa se tornem caducas  e degenerem em mais-valia absoluta. Como tratei deste assunto no Economia dos Conflitos Sociais (págs. 124-149 do pdf), limito-me agora a estes breves apontamentos. O que me preocupa é não conseguir formular uma lei geral que presida a essa articulação e, pior ainda, não encontrar a formulação em nenhum outro autor, o que obriga a proceder a uma tipologia de casos concretos, quando uma lei única permitiria ir muito mais longe no raciocínio.
A ecologia veio substituir o defunto regime soviético enquanto travão à produtividade, e tratou-se realmente de uma substituição, porque se operou na mesma área ideológica e política, usualmente denominadaesquerda. Se considerarmos as crises económicas como destruições maciças de capital, as restrições à produtividade preconizadas pela ecologia, sobretudo na sua variante do decrescimento económico, constituiriam uma forma suplementar de destruição do capital, instalado e a instalar. O horizonte deste projecto é a generalização da mais-valia absoluta. Tal como escrevi naquele artigo, «contra o capitalismo da abundância desenvolveu-se o programa de um novo socialismo da miséria».
Parece absurdo que o socialismo, nascido com a promessa de abastança para todos, tivesse gerado um capitalismo de Estado incapaz de competir com o capitalismo de mercado quanto ao bem-estar material da força de trabalho e, finalmente, abrisse o espaço que veio a ser ocupado pelos ecologistas, incluindo os defensores do decrescimento económico. Não sei explicar esta evolução que virou a esquerda do avesso nem li em lugar nenhum uma explicação convincente. Mas, quer compreendamos ou não os motivos que geraram este absurdo, temos de combatê-lo se não quisermos ser vítimas dele, e o combate é tanto mais difícil e urgente quanto a ecologia se tornou hegemónica no que ainda se chama esquerda.
A situação é pior, porque a agricultura familiar é um dos lugares preferidos da mais-valia absoluta, com longas jornadas de trabalho, sem horários fixos e com um cálculo de custos de produção que exclui uma parte considerável do esforço da família. Ora, é precisamente este tipo de agricultura, em que a exploração é extensiva e a produtividade é baixa, que os ecologistas propõem como modelo social. «Embora no imaginário comum o capitalismo esteja associado à actividade industrial, o seu êxito fundamental consistiu no enorme aumento de produtividade provocado na agricultura», lembrei naquele artigo. «Esta revolução tecnológica permitiu uma tal melhoria na quantidade e na qualidade da alimentação que o volume populacional atingiu níveis antes impensáveis, ao mesmo tempo que melhorou o estado de saúde e se prolongou a esperança média de vida». Perante isto, a ecologia desenvolveu uma vertente nova, a agroecologia. «E é contra esta situação que a agroecologia reage, propondo tecnologias que implicam uma redução da produtividade rural. Afinal, se os ideólogos da ecologia apresentam como meta consumir menos, nada mais natural do que os ideólogos da agroecologia apresentarem como meta produzir menos. Ficou assim reforçado o novo programa do socialismo de miséria».
4.
O lugar central ocupado pela agroecologia nas correntes ecologistas actuais, e especialmente entre os promotores do decrescimento económico, levou-me a expor a sua génese histórica na série «O mito da natureza», publicada no Passa Palavra em Novembro e Dezembro de 2011, em que analisei «A mitificação do camponês», «A agricultura familiar no fascismo» e «A Agricultura familiar no nazismo». Contestando esta série, Mix publicou no Passa Palavra, em Janeiro de 2012, o artigo «Será o camponês um mito?», título estranho porque, evidentemente, eu nunca afirmara que o camponês era um mito, mas que se tinha construído um mito em torno da natureza e dos camponeses. A polémica acerca da ecologia ficou assim instalada neste site, e ainda nesse mês de Janeiro repliquei ao artigo de Mix com o texto «Sociedade urbana e industrial. Uma resposta». Pouco depois, em Março de 2012, JG publicou um artigo criticando as perspectivas que eu havia defendido, «Agroecologia e a luta campesina: continuando o debate», o que me levou a escrever uma nova réplica, «Ecologia, a fraude do nosso tempo», publicada também naquele mês de Março. O artigo de Fagner Enrique, «Darwin contra a ecologia», publicado em Setembro de 2012, onde o autor escreveu que «ao contrário de uma natureza governada pela lei da sobrevivência do mais apto, vemos a ecologia postular o princípio de uma natureza governada por uma suposta lei do equilíbrio e da harmonia naturais», trouxe mais lenha para a fogueira. O debate foi aceso e, tudo somado, estes oito artigos suscitaram 290 comentários.
Tanto mais estranho se torna o facto de os três artigos de uma história do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), intitulada «MST e agroecologia: uma mutação decisiva» (aquiaqui e aqui), publicados em Março e Abril de 2012, que no seu conjunto suscitaram 38 comentários, não terem interessado os defensores da ecologia que saíram à liça a propósito dos artigos anteriores. Seria porque eu referi o aumento dos «recursos destinados ao Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, Pronera, e às suas parcerias com universidades e escolas técnicas públicas», e os ecologistas se sentem incomodados quando se desvendam os subsídios estatais que alimentam os elogios do arcaísmo? Seria porque preferem manter-se afastados das discussões públicas relativas aos rumos seguidos pelo MST? Seria por qualquer outra razão? Até hoje não entendi o motivo por que um debate que deveria logicamente culminar num exemplo prático de grande relevância, a transformação do MST num lobby ecologista, estacou no limiar.
Apesar de ao longo de tudo isto não me terem faltado oportunidades, gostaria de dizer ainda algumas coisas, e outras gostaria de dizê-las de novo. É o que farei nesta série de oito artigos.
Para já, e curiosamente, parece que nenhum comentador entendeu que os meus dois artigos sobre «Romance policial» (aqui e aqui), publicados em Fevereiro de 2012, se destinaram a ilustrar um dos expoentes do lirismo da sociedade urbana e industrial. A minha hostilidade à ecologia, agroecologia incluída, não decorre apenas de razões económicas e sociais e de preferências políticas. Deve-se a um sentimento muito mais profundo, a paixão que desde jovem me liga às ruas e praças das grandes cidades de hoje, o meu desinteresse por tudo o que não sejam as metrópoles contemporâneas, que sustentam uma forma de vida fascinante — a privacidade no meio da multidão. O neoplasticismo, o funcionalismo, o construtivismo, o minimalismo, que constituem o meu universo estético, funcionam como a ordenação na sociedade urbana e industrial, a regra que permite à multidão existir enquanto multidão sem se destruir no caos. E o romance policial que analisei naquela série, o único de que gosto, o thriller, o romance de série negra, representa o lirismo no interior dessa ordem, a aleatoriedade no interior da regra clara e fria. Afinal, é o que Michel Seuphor chamou o estilo e o grito.
É esta dualidade que faz pulsar as grandes cidades dos nossos dias, e trata-se de algo sem equivalente na história. E é este mundo que os ecologistas e os ruralizantes pretendem destruir. Muito mais profundamente do que um choque de opções económicas e políticas, trata-se de um embate de civilizações.
Referências
A edição espanhola de um livro meu, para a qual escrevi o prefácio, é: Para una Teoria del Modo de Produccion Comunista, Madrid: Zero-Zyx, 1977. Este prefácio foi publicado separadamente em Portugal: «A Propósito da Teoria do Modo de Produção Comunista», Revista Trimestral de Histórias e Ideias, nº2, 1978. O Manifesto Anti-Ecológico é o livro O Inimigo Oculto. Ensaio sobre a Luta de Classes, Manifesto Anti-Ecológico, Porto: Afrontamento, 1979. A breve história do movimento ecológico português por Arsénio Mota é: «Como Vai o Movimento Ecológico Português?», Jornal de Notícias, 7 de Março de 1981. O artigo de Rita Delgado e meu é: «Acidentes de Trabalho — Contribuição para uma Análise», Revista de Administração de Empresas, vol. 27, nº 3, Julho-Setembro de 1987. O meu livro publicado pela primeira vez em 1991 e agora disponível na internet é: Economia dos Conflitos Sociais (1ª ed.: São Paulo: Cortez, 1991; 2ª ed.: São Paulo: Expressão Popular, 2009). O livro onde abordei num dos capítulos a questão da ecologia é:Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta, Porto: Afrontamento, 2003.
Este artigo é ilustrado, de cima para baixo, com fotografias de Pablo Conejo (a primeira, a quarta e a última), de Aleksandr Rodtchenko (a segunda e a sexta), de Garry Winogrand (a terceira) e de Paul Strand (a quinta).

Nenhum comentário:

Postar um comentário