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quinta-feira, 29 de agosto de 2013

O atraso manda lembranças

O atraso manda lembranças

O ódio da(de) classe aos cubanos eu entendo. O que me assusta é uma entidade organizar uma campanha para fraudar um projeto destinado a suprir uma demanda básica do povo

29/08/2013
Luiz Ricardo Leitão,

Devo dizer-lhes, sinceramente, caríssimos leitores, que um mês de manifestações foi pouco para a cota colossal de desfaçatez e atraso de bruzundanga. Quem se preocupa em recriminar os “abusos” dos descolados e o “vandalismo” do Black Bloc carece de olhar com mais atenção à sua volta e não descuidar do bolso, porque os gatunos oficiais, já refeitos do susto de junho, seguem a subtrair a recém-desperta pátria-mãe com suas tenebrosas transações.
De fato, só um tênis atirado contra o prof. Uólston (!?), vereador do PMDB que preside a Câmara do Rio, é pouco para o cinismo da bancada, fiel guardiã dos interesses dos magnatas dos ônibus (Jacob Barata & Cia.) ao longo de décadas. Imaginem, então, quantas sapatadas mereceriam outros próceres desta buliçosa República...
Comecemos pelo “painho” Jacques Wagner, na Bahia. Legítimo herdeiro da cultura patriarcal nordestina, o governador não hesitou em justificar o atraso na entrega do metrô de Salvador (em obras há 13 anos, mas que só ficará pronto em setembro de 2014) com a seguinte pérola: “O pessoal fica com certa demagogia... O turista não vai andar de metrô. Turista tem grana, vai ficar no hotel, vai pegar sua van, que vai levar direto para o estádio pelo corredor exclusivo”.
Mais que distorcer a realidade europeia (onde trens e metrô são meios de transporte triviais para qualquer cidadão de classe média), a declaração de “ioiô” Wagner revela-nos a atitude da casa-grande diante do interesse público. Quem despreza o metrô e o transporte de massa não é o turista, mas a elite tupiniquim, que prefere voar de helicóptero e jatinho (da FAB, claro, e sem pagar passagem) a investir no transporte de massa. Quantas sapatadas esse cabra pede?
O futebol, aliás, continua a ser um dos maiores bastiões do atraso nacional, só comparável, por certo, em conservadorismo, ao latifúndio secular que pautou a evolução capitalista do país. Vejam que, apesar do clamor das ruas, J. Marin segue inabalável à frente da CBF, ditando os rumos de sua sucessão em 2014, enquanto o finado Ricardo Teixeira regressa do exílio em Miami para tratar-se de grave doença na terrinha. Como é possível que Teixeira, Havelange e Marin escapem ilesos dos tênis voadores?
A reação, porém, não é privilégio de “caciques” como Renan Calheiros e Sarney. Ela também assola nossas corporações profissionais, como demonstra o Conselho Federal de Medicina, avalizado por tucanos e democratas, em sua investida raivosa contra o programa “Mais Médicos” (iniciativa do governo para suprir a carência de pessoal na Saúde) e, sobretudo, a vinda de doutores cubanos ao Brasil – que só tem 1,9 médico por mil habitantes (em Cuba, segundo a OMS, há 6,7) e exibe taxas ainda bem altas de mortalidade infantil (a da ilha é de 4,76 por mil nascidos vivos, inferior até à dos EUA, que é 5,9) nas regiões Norte e Nordeste.
Não me estendo sobre o mote, pois morei três anos em Cuba e conheço de perto o seu serviço de saúde, seja a bem-sucedida experiência do médico de família ou o atendimento simples e decente dos hospitais (onde passei até por uma inusitada lavagem estomacal em 2000). O ódio da(de) classe aos cubanos eu entendo. O que me assusta é uma entidade organizar uma campanha para fraudar um projeto destinado a suprir uma demanda básica do povo, enquanto sua causa maior (a lógica mercantil da Medicina) não é superada. Afinal, quantos scarpins merecem os nossos doutores?
Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor associado da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e de Lima Barreto – o rebelde imprescindível.

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