Nem sempre é o que parece
publicado em 9 de novembro de 2012
por Luiz Carlos Azenha
A vida de correspondente não admite aquelas reportagens pré-concebidas no aquário dos chefes, para as quais a contribuição do repórter é conseguir entrevistados que confirmem a tese.
Dois exemplos. Eu era correspondente da Globo em Nova York quando fui despachado para passar algumas semanas no Iraque, antes da invasão dos Estados Unidos. Fui com o viés da cobertura estadunidense da crise na cabeça. O Pentágono acreditava, no dizer do então presidente George W. Bush, que seus soldados seriam recebidos com flores nas ruas de Bagdá, uma vez derrotada a Guarda Republicana, de soldados mais fiéis ao regime
De fato, na capital iraquiana, apesar da convivência diária com um guia do Partido Baath, que pretendia pegar em armas em defesa de Saddam Hussein, era indisfarçável o mal estar com o ditador iraquiano, especialmente nos bairros xiitas.
Mas Saddam também não era adorado pelos sunitas mais religiosos, cujo poder rivalizava com o do Estado, já que o assistencialismo das mesquitas não é um fenômeno exatamente novo (o mesmo assistencialismo sobre o qual se assentou parte do poder da Fraternidade Muçulmana no Egito, por exemplo).
O estado iraquiano, sob sanções internacionais, de fato dispunha de menos recursos para sustentar as alianças internas. Mas a fragilidade de Saddam não era a anunciada pela ativa diáspora iraquiana em Washington, encabeçada pelo escroque Ahmed Chalabi, que tinha livre acesso à mídia norte-americana e ajudou a convencer a Casa Branca de que a invasão, passada a fase inicial, seria um passeio.
Mas, o que deu errado?
Por sorte, encontrei em Bagdá um professor de uma importante universidade local que confirmou o que eu tinha ouvido de diversos iraquianos, nas ruas. Todos diziam que estavam dispostos a morrer não por Saddam, mas pelo Iraque. O Iraque que tinha se organizado a partir da expulsão dos britânicos e da defesa de seus recursos naturais, do petróleo. Um país cujo nacionalismo tinha se aprofundado depois de longuíssima e devastadora guerra com o vizinho Irã (na qual o Pentágono ajudou Saddam com imagens de satélite sobre o movimento de tropas iranianas).
Saddam, como vocês sabem, implantou um regime secular no Iraque, promoveu mulheres ao ministério e governava na tradição do nacionalismo de Gamal Abdel Nasser, o líder egípcio, se é possível conciliar “nacionalismo” com “pan-arabismo”. Foi este pequeno detalhe, digamos, que turvou a mente dos norte-americanos. Desde o início, os iraquianos sabiam que a guerra tinha outro nome: petróleo!
Felizmente, isso está na reportagem que fiz antes da invasão começar.
Quando desembarquei no Vietnã, numa viagem muito mais recente, pela Record, já tinha certo que a principal motivação dos vietnamitas na guerra contra os Estados Unidos tinha sido o nacionalismo e não, como dizia a propaganda ocidental dos anos 60, levar o comunismo ao Vietnã do Sul.
Foi uma clássica guerra de libertação nacional.
Perdido numa cidade do interior, na região de Hanói, assisti a uma curiosa cerimônia religiosa, em que o budismo se misturava com a celebração dos ancestrais que precede o plantio do arroz.
Lá pelas tantas aparece uma imagem de Ho Chi Minh em um andor, como se fosse um santo!
Mas o mais marcante da viagem foi uma conversa que tive na casa de uma família onde fizemos uma refeição antes de filmar o plantio.
Os campos de arroz são lindos. Em geral são divididos em parcelas, com marcações improvisadas, cada uma correspondente a uma família.
Na casa do agricultor, contei ao tradutor que aquela imagem, do Ho Chi Minh no andor, tinha me chamado a atenção, já que era simbólica do pragmatismo tanto das autoridades comunistas locais — que estavam presentes — quanto dos líderes religiosos e comunitários.
O agricultor apontou para os campos de arroz e explicou o seguinte: o sistema de irrigação é único, serve a todas as famílias. Fizemos juntos. Não dá para dizer que aquela porção de água é minha e aquela outra do meu vizinho. De quem são os peixes? Não dá para saber. Se a gente não se entendesse sobre o uso da água, ninguém plantaria, ninguém comeria. Nosso comunismo é anterior à existência do comunismo!
Dito isso, gargalhou. E fomos beber chá.
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