Seu Google, nós existimos
A luta de um grupo de crianças das favelas de Calcutá para se colocar no mapa do mundo e mudar também as nossas vidas
ELIANE BRUM
22/07/2013 10h14
- Atualizado em
22/07/2013
- Mãe, estou fazendo um mapa da nossa comunidade porque não existe
nenhum – disse Sikha, uma menina de 12 anos e olhos muito vivos de uma
favela de Calcutá, na Índia.
- Mas tem mapa de todos os lugares, deve ter um daqui também – disse a mãe.
- Não tem – Sikha respondeu.
- Você tem certeza?
- Procuramos no Google e não conseguimos encontrar um mapa da nossa comunidade.
Ao buscar o Google Maps para se enxergar nele, as crianças descobriram
que não estavam lá. No lugar onde viviam suas vidas, suas dores, seus
sonhos, suas fomes e suas faltas, onde dançavam e choravam, nasciam e
morriam, havia só um vazio – um grande nada.
Sua luta para existir – também no mapa – é contada no premiado documentário The revolutionary optimists
(Os otimistas revolucionários), de Nicole Newnham e Maren
Grainger-Monsen, filmado ao longo de três anos e meio. Com a ajuda do
empreendedor social Amlan Ganguly, Sikha e outras crianças desenharam
seu mapa. Ao forjar sua inscrição na geografia do mundo, mudaram
destinos e salvaram vidas.
O mundo, como Sikha tão bem percebeu, é dividido entre os que estão no
mapa – e aqueles que não estão. Não é esquecimento, não é acaso. É
violência. Uma violência original – a invisibilidade – que gera todas as
outras. Nem os mapas, ou muito menos os mapas, são inocentes. Na Índia,
em toda parte. E também aqui.
Era um grande vazio de gente o que os “descobridores” enxergavam ao
avistar a terra que chamariam de América. Era um vazio o que se
batizaria de “Brasil” no olhar dos portugueses que aportaram aqui. E,
mesmo havendo centenas de povos habitando o mapa, foi vazio o que
continuaram enxergando enquanto o sangue era derramado e penetrava a
topografia. E de novo foi vazio o que a ditadura militar viu ao lançar
sua política para a Amazônia, nos anos 70, perfurando-a com o slogan
“Terra sem homens para homens sem terra”, matando primeiro numa frase,
depois a tiros, aqueles que não poderiam continuar no mapa. Ainda é
vazio o que os grandes grileiros de terra tentam convencer os outros que
veem, para que então possam se apossar de vastas porções habitadas do
território e dizer que não há nada lá. Agora mesmo é vazio o que o
governo federal diz ver quando condena povos indígenas, quilombolas,
extrativistas e ribeirinhos ao construir as hidrelétricas amazônicas,
trocando a frase obscena da ditadura por outra, mais vaga, mas não menos
terrível: “Não serão afetados”. O único jeito de não ser “afetados” é
não existir. Assim como só foi possível expulsar as comunidades pobres
que estavam no caminho das grandes obras da Copa nas capitais
enxergando-as como vazio – e não como uma geografia humana e amorosa em
que brasileiros que também jogam suas peladas de futebol esculpem suas
vidas duramente dia após dia.
As crianças das favelas de Calcutá lembraram ao mundo essa violência
que atravessa a história – os sem-mapa. A que o Google Maps deu uma
atualidade quase hiper-real. Elas descobriram num clique que não estavam
lá. Mas como não estavam lá? O que eram suas vidas para aqueles que não
as reconheciam lá? Eram invisíveis, então? Por quê? Se no mapa de quem
manda no mundo eram vazio, eram um nada, então decidiram mapear-se,
contrapor seu olhar ao não olhar que os varria da história. O que outros
têm travado no campo da política e até mesmo no campo da guerra, os
pequenos favelados enfrentaram com papel e caneta colorida.
Para fazer o mapa perceberam que precisavam se tornar seus próprios
descobridores. Tão importante quanto enxergar o que estava ali era
enxergar também o que não estava. E por que não estava? “Que problemas
você vê aqui? Por que você acha que nós não temos água potável?”,
pergunta a uma vizinha Salim, o menino que acorda as quatro horas da
manhã e percorre três quilômetros para conseguir água, como fazem as 884
milhões de pessoas no mundo que a cada dia enfrentam o desafio de
encontrar água para beber.
As crianças de Calcutá desenharam as ruas, desenharam cada casa, deram a
cada uma um número, para que pudessem ser encontradas. “Para ser
honesto, às vezes a gente cometia erros e perdia uma casa ou outra”,
disse um dos meninos. Conseguiram, então, com o apoio da Universidade
Columbia, celulares com GPS. E passaram a fotografar e a localizar casas
e pessoas com o auxílio da tecnologia. Colocaram-se no mapa. E, graças a
essa façanha, pela primeira vez uma campanha de vacinação contra a
poliomielite atingiu 80% de cobertura na comunidade. (Assista a um vídeo
imperdível de quatro minutos aqui. Ainda que as legendas sejam em inglês, dá para escutar muita coisa.)
Se era possível mudar o mapa, como não seria possível mudar a vida?
“Como uma menina, eu sempre disse que as coisas aconteciam porque era
destino”, diz uma das crianças. “Mas são as coisas que eu faço que
determinam meu destino, não a sorte. Então, precisamos esquecer do
destino e seguir em frente.” Uma frase poderosa na boca de uma garota de
uma favela de Calcutá, já que 47% das meninas indianas são casadas
antes dos 18 anos, e menos da metade chega a se matricular no
equivalente ao ensino médio. Uma frase poderosa na boca de qualquer
menina, em qualquer lugar. Sikha tenta dissuadir as meninas de se casar
cedo e luta para que possam jogar futebol. Quer ser advogada ou
jornalista. Ao entrar no mapa, ingressou também no território das
possibilidades.
As crianças das favelas de Calcutá seguiram em frente. Ao desenhar os
contornos da sua geografia, perceberam que era preciso embrenhar-se
ainda mais. Tinham de detectar o que devia e o que não devia estar no
mapa. Malária, não devia. Diarreia, não devia. Dança, sim. Descobriram
que se apropriar do mapa do seu mundo torna possível mudá-lo. E agora,
as crianças de Calcutá, os daredevils (“destemidos”), como se
autodenominaram, estão no mapa. E passaram a influenciar o mundo para
além do seu. Entre as inspirações do The revolutionary optimists, está o
lançamento do Map your world (Mapeie seu mundo), que coloca o poder das novas tecnologias nas mãos de agentes de mudança em lugares pobres do planeta.
Ainda que o primeiro passo seja reconhecer e esquadrinhar seu
território, como nos mostraram Sikha e Salim, acabar a tarefa por aí
seria ainda permanecer passivo, como eles também nos mostraram. É
preciso ter a coragem de imaginar um mapa mais largo para conseguir
chegar perto de eliminar a poliomielite ou incluir água potável nas
casas. Quando moradores de rua distribuem seus pertences por uma casa
invisível para a maioria, embaixo da ponte ou mesmo numa esquina, como
se estivessem passando da cozinha ao quarto ou conversando na sala com
um amigo, evoluem por seu próprio mapa, ainda que ninguém possa ver.
Antes de existirem, os mapas são sonhados.
É também a capacidade de imaginar um mapa, de fora e de dentro, que nos
define, já que a primeira cartografia de cada um é o corpo. Depois, a
casa onde evoluímos em nossa geografia íntima. É triste que os mapas de
nossas vidas estejam cada vez mais restritos, mais tacanhos, cheios de
barreiras e de senhas, ao refletir esse mundo que vai se apequenando
pelo medo do mundo de quase todos os outros. Cada vez mais nosso mapa
inclui menos gente, restrito aos interesses territoriais da família ou
nem isso, e acaba na porta da rua. Os muros que erguemos internamente
deveriam nos escandalizar tanto quanto aqueles que separavam – e separam
– os povos no embate da história. Os muitos muros fincados na forma de
vidros escuros, portas gradeadas, cercas eletrificadas, as concretas e
as subjetivas, são um aviso também de que não reconhecemos todos os
outros como parte do nosso mapa. E de que para nós é mais natural
desejar um pequeno lago individual que um rio que mata a sede de muitas
aldeias. Ao contrário das crianças das favelas de Calcutá, temos sido
maus construtores de pontes.
Sikha e Salim só conseguiram se colocar no mapa do mundo porque
derrubaram primeiro as barreiras internas e petrificadas por séculos de
opressão, que determinavam o que cada um deles podia ser ou realizar.
“Agora está na minha cabeça que posso fazer mais pela minha comunidade”,
diz uma das crianças. “E quem sabe eu coloque na sua cabeça que você
também pode.”
Os “destemidos” das favelas de Calcutá não apenas desafiaram o Google e
se colocaram no mapa a partir do seu próprio olhar. Também
desenharam-se sem fronteiras e só por isso nos alcançam aqui, em toda
parte, incluindo-nos em seu mapa afetivo. Esses meninos e meninas sem
água potável para beber foram capazes de tornar o mundo maior – também
para nós.
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)
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