Uma história da ditadura argentina
Velho militante de esquerda, o meu tio Gregorio era sensível e ativo ao mesmo tempo. Ainda vivia quando Videla foi sentenciado à prisão perpétua. Também vivia quando Menem o indultou. Se estivesse por aqui quando Videla morreu prisão, teria dito: “Bueno...” com o “n” longo e o “o” quase imperceptível. Por Martín Granovsky
Martín Granovsky - Página 12
Buenos Aires – Não sei se contente é a palavra.
Mas o que sei é que o meu tio Gregorio teria dito: “Bueno...” com o “n”
longo e o “o” quase imperceptível. Depois da morte de Jorge Videla na
prisão, este “bueno...” teria soado à ciclo cumprido, à tarefa bem feita
e, ao mesmo tempo, à pena sem remédio e à certa reparação. A reparação
não apaga a amargura. Não emenda nem corrige um dano. Mas socialmente
implica um leve desagravo. Para o meu tio isso era importante, inclusive
mais que para si mesmo.
O meu tio Gregorio era o pai do meu primo Mario Lerner. Uma noite de março de 1977, ele e a minha tia Celina chegaram ao seu apartamento no bairro de Almagro, na Rua Don Bosco e, ao acenderem as luzes, viram cápsulas servidas, uma garrafa de whisky meio vazia, a bíblia bilíngue iídiche-espanhol destruída e rastos de sangue.
Velho militante de esquerda, o tio Gregorio era sensível e ativo ao mesmo tempo. Tão sensível que editou na Argentina, pela primeira vez, o Diário de Anne Frank, que meus velhos corrigiram para pagar sua lua de mel em Córdoba. E, quando estava ativo, podia ser malvado. Tão malvado como para ser capaz de fazer os corretores trabalharem na sua lua de mel (desculpemo-lo, pela cultura e pelo diário de Anne Frank) ou para desafiar riscos e investigar o que havia acontecido com Mario. Porque, se havia sangue, havia um corpo. Vivo? Sua investigação terminou no necrotério. No meio, soube que Mario havia sido arrastado ainda com vida. E depois averiguou que existia um boletim de ocorrência policial de 17 de março: “Sendo às 23h30min, o funcionário que subscreve, chefe da décima delegacia, faz constar que, neste momento se fazem presentes na unidade Forças Conjuntas que expressam que em cumprimento de ordens emanadas do Corpo de Exército I (Subzona Capital) efetuaram, momentos antes, um procedimento na intersecção das ruas Quintino Bocayuva e Don Bosco, com o objeto de deter o delinquente subversivo da autodenominada gangue Montoneros Mario Lerner (alias, “el Ruso”). Que detectado o causante, na oitava sudeste lhe foi dada a ordem de detenção, recebendo a fração operativa, por toda resposta, dois disparos com uma arma de punho, sendo repelida a agressão pelas forças legais, caindo abatido o sedicioso”.
Se havia sido assassinado e havia corpo, havia homicídio. Havia uma relação entre o Exército e a polícia. Havia uma relação entre o Exército, a polícia e o necrotério. Havia uma cadeia de comando: terminava em Videla, depois de passar pelos subordinados de Carlos Suárez Mason, Chefe do Corpo I do Exército, e pelo próprio Suárez Mason.
Meu tio, que era um louco lindo, juntou testemunhas. “Um dia a democracia vai voltar e estes vão ser julgados”, dizia. Nós o olhávamos sem compreendê-lo totalmente. Quem o entendeu melhor foi uma advogada, Alicia Oliveira, que o representou. Meu tio acabou gostando dela como uma filha. Alicia, que havia sido juíza, tinha uma coisa muito clara. Sempre me lembro da primeira vez que me disse, como transmitindo algo que alguém deve saber: “Garoto, os Estados produzem papéis, e nem sempre são secretos”. O fio do necrotério levava a Videla. E quando, por impulso de Raúl Alfonsín e organizações de direitos humanos, se fez o Juízo às Juntas Militares, em 1985, o caso de Mario, com sua abundância de provas encontradas pelo tio Gregorio e Alicia e avaliadas ao princípio da democracia pelo juiz Carlos Olivieri, bastava para condenar Videla por homicídio.
Meu tio ainda vivia quando Videla foi sentenciado à prisão perpétua. Tinha razão: um dia iam ser julgados.
Também vivia quando Menem o indultou.
Morreu depois. Havia nascido em 1911 em Yagorlik, um povoado da Ucrânia, nas margens do Dniéster, onde as casas dos judeus eram saqueadas e os colchões rasgados com sabres. Primeiro pelos cossacos. Depois pelos antibolcheviques em meio à guerra civil com os comunistas.
Entendem por que teria dito “bueno...”?
Tradução: Liborio Júnior
O meu tio Gregorio era o pai do meu primo Mario Lerner. Uma noite de março de 1977, ele e a minha tia Celina chegaram ao seu apartamento no bairro de Almagro, na Rua Don Bosco e, ao acenderem as luzes, viram cápsulas servidas, uma garrafa de whisky meio vazia, a bíblia bilíngue iídiche-espanhol destruída e rastos de sangue.
Velho militante de esquerda, o tio Gregorio era sensível e ativo ao mesmo tempo. Tão sensível que editou na Argentina, pela primeira vez, o Diário de Anne Frank, que meus velhos corrigiram para pagar sua lua de mel em Córdoba. E, quando estava ativo, podia ser malvado. Tão malvado como para ser capaz de fazer os corretores trabalharem na sua lua de mel (desculpemo-lo, pela cultura e pelo diário de Anne Frank) ou para desafiar riscos e investigar o que havia acontecido com Mario. Porque, se havia sangue, havia um corpo. Vivo? Sua investigação terminou no necrotério. No meio, soube que Mario havia sido arrastado ainda com vida. E depois averiguou que existia um boletim de ocorrência policial de 17 de março: “Sendo às 23h30min, o funcionário que subscreve, chefe da décima delegacia, faz constar que, neste momento se fazem presentes na unidade Forças Conjuntas que expressam que em cumprimento de ordens emanadas do Corpo de Exército I (Subzona Capital) efetuaram, momentos antes, um procedimento na intersecção das ruas Quintino Bocayuva e Don Bosco, com o objeto de deter o delinquente subversivo da autodenominada gangue Montoneros Mario Lerner (alias, “el Ruso”). Que detectado o causante, na oitava sudeste lhe foi dada a ordem de detenção, recebendo a fração operativa, por toda resposta, dois disparos com uma arma de punho, sendo repelida a agressão pelas forças legais, caindo abatido o sedicioso”.
Se havia sido assassinado e havia corpo, havia homicídio. Havia uma relação entre o Exército e a polícia. Havia uma relação entre o Exército, a polícia e o necrotério. Havia uma cadeia de comando: terminava em Videla, depois de passar pelos subordinados de Carlos Suárez Mason, Chefe do Corpo I do Exército, e pelo próprio Suárez Mason.
Meu tio, que era um louco lindo, juntou testemunhas. “Um dia a democracia vai voltar e estes vão ser julgados”, dizia. Nós o olhávamos sem compreendê-lo totalmente. Quem o entendeu melhor foi uma advogada, Alicia Oliveira, que o representou. Meu tio acabou gostando dela como uma filha. Alicia, que havia sido juíza, tinha uma coisa muito clara. Sempre me lembro da primeira vez que me disse, como transmitindo algo que alguém deve saber: “Garoto, os Estados produzem papéis, e nem sempre são secretos”. O fio do necrotério levava a Videla. E quando, por impulso de Raúl Alfonsín e organizações de direitos humanos, se fez o Juízo às Juntas Militares, em 1985, o caso de Mario, com sua abundância de provas encontradas pelo tio Gregorio e Alicia e avaliadas ao princípio da democracia pelo juiz Carlos Olivieri, bastava para condenar Videla por homicídio.
Meu tio ainda vivia quando Videla foi sentenciado à prisão perpétua. Tinha razão: um dia iam ser julgados.
Também vivia quando Menem o indultou.
Morreu depois. Havia nascido em 1911 em Yagorlik, um povoado da Ucrânia, nas margens do Dniéster, onde as casas dos judeus eram saqueadas e os colchões rasgados com sabres. Primeiro pelos cossacos. Depois pelos antibolcheviques em meio à guerra civil com os comunistas.
Entendem por que teria dito “bueno...”?
Tradução: Liborio Júnior
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