Turquia, Um País dividido
Liberais seculares e muçulmanos praticantes temem
“islamização” da Turquia; enquanto os radicais acham que o governo faz
pouco.
Por Gianni Carta, de Istambul, publicado
21/06/2013
Terminados os violentos confrontos entre as
forças policiais e manifestantes que durante três semanas pediam a
demissão do premier Recep Tayyip Erdogan, reina uma atmosfera
surrealista. De saída, o país está isolado. Diante da brutalidade das
forças policiais contra os manifestantes, a chanceler alemã Angela
Merkel encabeça o movimento para rejeitar a Turquia no seio da União
Europeia (UE). Egemen Bagis, o ministro turco para a UE, rebateu: “A
Turquia não precisa da UE, a UE precisa da Turquia. Se quiséssemos
poderíamos dizer: some daqui, menino”.
Segundo o cientista político Tolga
Demiryol, da Universidade Kemerburgaz de Istambul, a Turquia está
parcialmente dividida entre muçulmanos laicos, ou moderados, e os
favoráveis à islamização do país. “Os turcos seculares ainda são em sua maioria muçulmanos autoidentificados,
embora haja uma crescente presença de ateus e agnósticos, para não
mencionar os crentes não muçulmanos, que são seculares no dia a dia.” No
entanto, “existem vários grupos de ativistas políticos formados por
muçulmanos devotos e críticos em relação à política religiosa do Partido
da Justiça e do Desenvolvimento (o AKP de Erdogan, única legenda a governar o país),
que procura promover a uniformidade em vez de diversidade na
sociedade”. O AKP faz isso, acredita Demiryol, através de leis seculares
adotadas desde a fundação do país, em 1923, por Mustafa Kemal Atatürk.
Erdogan apela, porém, para uma retórica populista ao chamar os
manifestantes de kemalistas, as velhas elites republicanas,
representadas por ricos e generais, ou seja, seculares que nunca
aceitaram o AKP. Não é bem assim. Nas manifestações na Praça Taksim há
desde estudantes até mulheres idosas com véus.
Os protestos começaram de forma pacífica no fim de maio.
Ambientalistas opunham-se à construção de um centro comercial no Parque
Gezi, uma das raras áreas verdes da cidade situada nas proximidades da
Praça Taksim, no centro de Istambul. Na sexta-feira 31, as forças
policiais fecharam as entradas do Parque Gezi e atacaram com
truculência. “Foi por conta desse ato de brutalidade que muita gente
aderiu à causa”, diz Ali, à mesa de um café. Ele e seis outros colegas,
bastante afinados durante os protestos, têm entre 20 e 30 e poucos anos.
Todos têm empregos bem remunerados, diplomas universitários e são
articulados em inglês. “Mas as grandes demonstrações não aconteceram por
conta de árvores que seriam ou serão derrubadas”, intervém Berrak,
esguia professora de pilates. Simla concorda: “Sempre desconfiamos de
que Erdogan tinha uma agenda islamita, mas agora está claro”.
Simla lista algumas das “reformas”
realizadas por Erdogan: álcool não pode ser vendido entre as 10 da noite
e as 6 da manhã, casais deveriam ter no mínimo três filhos, mas o ideal
seriam cinco. Nesse contexto, a pílula do aborto foi banida. A mídia é
controlada. Terminado este seu terceiro mandato, Erdogan não poderá mais
ocupar o cargo, e por isso articula uma reforma constitucional para
transformar o regime parlamentar em presidencialista. Ele, é claro,
seria o presidente, que por ora tem poderes limitados.
Todos os presentes no
café concordaram, que nos primeiros mandatos, Erdogan fez um bom
trabalho. Numerosos liberais laicos e muçulmanos moderados votaram no
atual premier, há dez anos no poder, pelo fato de ser ele favorável ao
mercado livre. A despeito da crise na Europa, a Turquia deverá crescer
pouco mais de 4% neste ano. Liberais também apreciaram o fato de Erdogan
querer integrar a Turquia na UE, e de ter reduzido o poder dos
militares. Sim, esses eleitores sabiam que o carismático Erdogan foi
preso em 1998 após ter lido um poema a incitar islâmicos radicais. Mas
pensavam, na sua primeira vitória em 2002, que ele se tornara mais
pragmático.
Não tem sido o caso no seu terceiro
mandato. No entanto, Demiryol lembra que a Turquia nunca teve uma
democracia “verdadeira”. Ela surgiu apenas em 1950, mas foi interrompida
pelo menos três vezes por golpes militares. “Intervenções fardadas e
seus subsequentes regimes atrofiaram o desenvolvimento da sociedade
civil.” Ali, no café, concorda. “Mas tivemos liberdade anos a fio.”
Berrak, a professora de pilates, indaga: “E quem é esse homem que nos
trata como terroristas a fazer parte de uma conspiração internacional e
que lança gás lacrimogêneo de helicópteros?” Berrak, diga-se, sofre de
asma. Na noite de sábado 15 e na madrugada de domingo, apenas duas horas
após o discurso de Erdogan, que parecia conciliatório, a polícia voltou
a atacar na Praça Taksim e as ruas adjacentes. Turistas, crianças e
manifestantes foram pegos de surpresa, inclusive em um hotel de luxo
onde feridos recebiam tratamento médico. Asmática, Berrak teve um ataque
de cinco minutos, mesmo com máscara. “Pensei que fosse morrer.”
Após esse evento,
a polícia venceu, pois, como explica Ceni, “conseguiu dispersar o povo
para as ruas nas proximidades da praça e assim os prenderam, enquanto
outros fugiram”. Houve, é verdade, as greves nacionais de sindicalistas
na segunda-feira 17. Um deles, cético diante do atual quadro, previu:
“Acho que este vai ser o último protesto, precisamos nos reorganizar”.
Simla observa: “Fizemos o que pudemos. Mas agora sabemos que temos
poder. E poderemos voltar a agir”.
No distrito de Bagcilar, a apenas 10
quilômetros da Praça Taksim, estamos na chamada grande Istambul, cidade
de 15 milhões de habitantes. Diante de bares, mulheres a trajar véus ou
burcas sentam em cadeiras de plástico longe dos grupos de homens.
Toma-se chá, cerveja não. “Acabaram os protestos, graças a Deus. Tayyip
tem razão: não passam de um bando de terroristas a colaborar com a mídia
internacional”, diz um comerciante. Há também intelectuais que pensam
como o comerciante. O professor de Economia Mumin Erturk, da
Universidade Arel de Istambul, opina: “Erdogan tinha de agir. Você não
pode deixar essa gente quebrar tudo”. Argumento, sem convencer o
interlocutor, que os protestos foram pacíficos. “Se Erdogan fizer algo
de errado serei o primeiro a ir contra ele. Mas a economia vai de vento
em popa.” O risco, digo, é um governo instável que poderia afugentar os
investidores que financiam o déficit em conta corrente do país. Erturk:
“Isso é tudo passageiro”. Para ele, as manifestações tiveram o apoio de
estrangeiros. A razão? “A concorrência econômica com a Turquia.
Estrangeiros não querem, entre outros, que tenhamos uma usina nuclear
com os russos. Também não gostam da ideia de construirmos uma terceira
ponte sobre o Bósforo, que seria fundamental para o comércio entre a
Ásia e a Europa.”
Na Praça Taksim, deparo-me com um novo tipo de desafio ao
governo. Seria aplaudido por Kafka. Trata-se de uma forma de resistência
passiva, iniciada pelo coreógrafo Erdem Gunduz na segunda-feira 17, um
dia após o ataque das forças policiais que evacuou os manifestantes da
Praça Taksim. De pé, transeuntes são convidados a fixar seus olhares no
Centro Cultural Atatürk, que fica logo adiante. A encenação chama-se
“homem de pé”.
Um senhor de
cabelos brancos diz: “Não quero falar. Faço isso em homenagem ao homem
de pé”. Outro, este com um violão, olhar fixo na conspícua imagem de
Atatürk, com um aceno aceita ser fotografado. Uma moça, a ler de pé,
explica: “Estou lendo”. Um casal se dispõe a falar. Diz Menderes,
diretor de uma loja, de 26 anos: “Estou aqui porque quero liberdade”.
Sua companheira, Guliz, de 23 anos, trabalha em telemarketing. Ela
observa: “Sou muçulmana praticante, mas Erdogan está islamizando este
país”.
Indagados se eles não têm medo de ser presos por uma
noite, visto que no fim do dia a polícia leva todas as “pessoas de pé”
para passar uma noite na cadeia, os dois retrucam: “Não”. Guliz me
pergunta: “E você não tem medo?” E acrescenta: “Sinto-me frustrada
porque não estava em Istambul durante as manifestações e não pude fazer
nada”. Menderes participou. Teve problemas de saúde, viu um amigo perder
um olho atingido por uma bala de borracha. Istambul imita São Paulo ou
vice-versa? Mendere e Guliz, como tantos outros, acreditam que têm de
manifestar-se para evitar o futuro “autocrático” da Turquia.
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