OMC: aonde nos levará essa vitória?
A (boa) notícia traz consigo um conjunto de ressalvas
e preocupações que precisam ser assinaladas por quem encara a questão
do comércio internacional na perspectiva da maioria da humanidade
04/06/2013
Igor Fuser
Para
o bem e (pode-se temer) para o mal, a eleição de Roberto Azevêdo para o
cargo de diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) foi uma
vitória da atual política externa brasileira. Os tucanos, a mídia de
direita e o Partido dos Diplomatas Aposentados torciam abertamente pelo
candidato mexicano, um notório serviçal dos Estados Unidos. Para ter uma
ideia da decepção desses setores antibrasileiros, basta lembrar que no
próprio dia da escolha de Azevêdo, quando as avaliações disponíveis já
sinalizavam o resultado, a Folha de S. Paulo comemorava adesões de
última hora ao candidato rival com a seguinte manchete: "Brasil sofre
revés na disputa por órgão global de comércio".
No
contexto da corrida para as eleições de 2014 no Brasil, a proeza do
Itamaraty na OMC desmonta uma das peças do arsenal retórico da oposição,
sempre empenhada em apresentar a diplomacia dos governos Lula e Dilma
como uma política desastrosa que provocou o isolamento do País no
cenário mundial. Ao contrário disso, a vitória de Azevêdo atesta o
prestígio do Brasil junto aos países pobres e em desenvolvimento, que
votaram maciçamente no nosso compatriota. Tal como na eleição, em 2012,
de José Graziano da Silva para o comando da FAO (a Organização das
Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura ), o governo brasileiro
colhe os frutos da ênfase concedida às relações Sul-Sul. O resultado é
também fruto de um esforço de construção de alianças que começou na
reunião da OMC em Cancún (2003), quando o Brasil liderou a formação do
"G-20 comercial", agrupando os principais países em desenvolvimento com
interesses na agricultura. É natural, pois, que a eleição de Azevêdo
seja unanimemente apontada como um sinal da força política dos Brics e
das nações emergentes em geral.
Apesar de tudo
isso, a (boa) notícia traz consigo um conjunto de ressalvas e
preocupações que precisam ser assinaladas por quem encara a questão do
comércio internacional na perspectiva da maioria da humanidade. A OMC
foi criada, em 1995, com o objetivo de promover o chamado "livre
comércio", um dos pilares da globalização neoliberal. Sua atuação têm
como foco a redução de tarifas e a remoção de subsídios como um meio de
aplainar o caminho para o pleno funcionamento das leis do mercado
capitalista. Em um ponto de vista oposto, os movimentos sociais e a
verdadeira esquerda lutam contra a liberalização do comércio. Fazem isso
com base no entendimento de que, num mundo desigual, a eliminação
indiscriminada das políticas públicas de defesa dos mercados e dos
produtores nacionais só favorece os atores mais poderosos do Norte
desenvolvido – o capital financeiro, os oligopólios industriais e o
agronegócio.
A primeira rodada das negociações
globais de liberalização comercial, entre 1986 e 1994 , teve um
resultado claramente desfavorável para os países da Ásia, África e
América Latina. Eles abriram seus mercados aos produtos manufaturados do
Norte sem que esses, em contrapartida, renunciassem às políticas
protecionistas que bloqueiam as exportações do Sul, principalmente de
produtos agrícolas. De quebra, as potências imperialistas conseguiram
impor ao resto do planeta regras de proteção à propriedade intelectual
que transferem anualmente bilhões de dólares como pagamento de royalties
e patentes, em benefício das empresas transnacionais, além de agravarem
as condições de saúde nos países periféricos por conta do alto preço
dos medicamentos. Essa foi a Rodada Uruguai do GATT, na qual também se
decidiu a criação da OMC.
A intenção de corrigir
os resultados injustos da Rodada Uruguai levou os países em
desenvolvimento a apoiarem a atual rodada de negociações comerciais,
inaugurada em Doha, em 2001. Eles reivindicam, sobretudo, o fim das
barreiras tarifárias e não-tarifárias e da montanha de subsídios que
tornam os mercados do Norte impenetráveis aos produtos agrícolas do Sul.
No entanto, os países ricos exigem, como condição para qualquer
concessão em tópicos do interesse das nações em desenvolvimento, doses
ainda maiores de abertura dos seus mercados em áreas onde as economias
do Norte são mais competitivas, em especial a dos manufaturados. A isso
se somam as pressões por normas mais severas de proteção à propriedade
intelectual e um pacote de medidas que, na prática, impede a ação do
Estado em favor do desenvolvimento industrial. Políticas adotadas no
Brasil a partir do governo Lula, como o financiamento público a empresas
instaladas no país e as regras de "conteúdo nacional" nas compras do
governo e das estatais, ficariam proibidas no mundo todo, cabendo à OMC
zelar pelo cumprimento dessas regras. Tudo isso, em nome da proteção aos
investimentos, o novo mantra do discurso neoliberal. A resistência das
nações do Sul a essas propostas regressivas levou a Rodada Doha à
situação agonizante em que se encontra desde a reunião de Hong Kong, em
2005. As divergências – é importante assinalar – ultrapassam o plano
industrial, envolvendo também a reivindicação de países periféricos e
emergentes de inserir "salvaguardas" nos eventuais acordos a fim de
proteger sua própria produção de alimentos.
Azevêdo
foi eleito com a difícil missão de desbloquear a Rodada Doha, tarefa a
que a diplomacia brasileira tem se dedicado intensamente nos últimos
sete anos, em vão. A questão é: a que preço? Nesse ponto, a política
externa do Itamaraty põe à mostra suas ambiguidades e contradições. Ao
mesmo tempo que o Brasil adota uma postura progressista de defesa do
multilateralismo e da correção das assimetrias de poder e de riqueza,
sua diplomacia comercial se mantém sob o domínio quase exclusivo do
agronegócio. Em uma atitude de evidente favoritismo, confundem-se os
interesses dos exportadores agropecuários com os interesses nacionais,
sempre sob a desculpa de que esse setor responde pela maior parcela dos
ganhos na balança comercial. Essa distorção, que garante aos grandes
empresários rurais uma influência na diplomacia brasileira
desproporcional ao seu peso efetivo na sociedade, se manteve na passagem
do neoliberalismo de FHC para o atual modelo neodesenvolvimentista, e
não há sinais de mudança em futuro previsível.
Já
na reunião da OMC em Hong Kong, em 2005, última tentativa de resolver o
impasse que paralisa as negociações comerciais, o Brasil se afastou dos
seus parceiros no G-20 para propor uma barganha que consistia em abrir
mão de pontos fundamentais de política industrial e das salvaguardas
para os alimentos em troca de maior acesso das exportações do
agronegócio brasileiro aos mercados do Primeiro Mundo. Graças à oposição
de outros países em desenvolvimento, como China, Índia e Argentina, a
indecorosa proposta do Itamaraty não foi adiante. O que na mídia e no
discurso oficial pareceu uma "derrota" – a paralisação das negociações –
representou na realidade uma vitória para os países emergentes e
periféricos, e também para os movimentos sociais que, no Brasil e no
mundo inteiro, defendem a soberania alimentar e as políticas autônomas
de desenvolvimento, longe da interferência da OMC. O risco, agora, é que
a situação se inverta e, paradoxalmente, a presença de um brasileiro na
direção da OMC venha adicionar o elemento que faltava à pressão sobre
os governos do Sul para a adoção das propostas neoliberais da Rodada
Doha. O próprio governo de Dilma poderia se inclinar nesse sentido, na
medida em que o sucesso ou fracasso de Azevêdo no esforço de "destravar"
a agenda comercial da OMC seja associado à avaliação da política
externa brasileira daqui por diante. Num cenário de aliança do governo
brasileiro com o agronegócio que inclui a senadora Kátia Abreu, do PSD,
como integrante da "base aliada" no Congresso, pode-se esperar qualquer
coisa.
A situação é complexa, inclusive porque os
EUA e seus aliados têm respondido ao bloqueio das negociações da OMC
com a estratégia de firmar tratados de comércio bilaterais ou
plurilaterais, como a Parceria Trans-Pacífica e, aqui na nossa
vizinhança, o famigerado Acordo do Pacífico, o anti-Mercosul.
Evidentemente, só têm acesso a esses acordos os países que aceitam
aprofundar ainda mais a liberalização dos seus mercados. O passo
seguinte será "a pressão para incorporar os termos desses acordos na
OMC, esvaziando de certa forma a instituição com sede em Genebra como
espaço importante de negociação multilateral", conforme explicou, em
entrevista, o diretor técnico do Dieese, Adhemar Mineiro. O Império não
brinca em serviço.
Mesmo nessas condições
difíceis, ainda existe espaço para o Brasil aproveitar seu imenso
prestígio internacional e a crise das economias capitalistas centrais
para construir, em conjunto com os demais países em desenvolvimento e
com atores não-governamentais comprometidos com a luta por um mundo mais
justo, uma agenda pós-neoliberal para o comércio. É possível retomar a
integração regional com um enfoque de desenvolvimento compartilhado em
lugar do livre-cambismo. Mas nada disso parece fazer parte dos planos de
Brasília e, como tem sido lembrado, Azevêdo foi escolhido para
trabalhar pelos objetivos da OMC, e de mais ninguém.
Igor Fuser é professor do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/13104
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