Higienismo disfarçado de combate às drogas
Em audiência pública, entidades apresentam dados que demonstram a
falência da política de internação compulsória no Rio de Janeiro
05/06/2013
Leandro Uchoas,
do Rio de Janeiro (RJ)
Se
algum desavisado, pouco versado nos debates intensos que o Rio de
Janeiro vive, entrasse por engano na Câmara de Vereadores na manhã de 4
de junho, teria uma surpresa. A tal internação compulsória, elogiada por
tantos “especialistas” nos veículos tradicionais de comunicação, era
ali criticada ou questionada por cada entidade do setor. A audiência
pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Casa, presidida
pela vereadora Teresa Bergher (PSDB), visava fazer algo que tem se
tornado estranho na cidade nos últimos anos: colocar um assunto vital da
administração municipal em debate.
Na mesa ou no
plenário, estavam presentes as entidades e movimentos mais importantes
na discussão de saúde no Rio de Janeiro. A política pública adotada para
enfrentar a utilização, na cidade, de substâncias químicas, em especial
o crack, foi criticada pela maioria das pessoas ouvidas. E a ausência
da secretaria de saúde foi amplamente criticada.
“Ao
todo, 46% das internações se dão na zona sul, 29% no centro e 15% na
zona norte. Somando as três porcentagens, temos 90%. Isso confirma que
temos um quadro de limpeza social, e não de tratamento de saúde”, afirma
o promotor de Justiça Rogério Pacheco. No Rio de Janeiro, a zona sul, o
centro e os bairros de Jacarepaguá e Barra da Tijuca, na zona norte,
formam a região mais rica da cidade.
Segundo
Pacheco, de maio de 2010 a setembro de 2012 – pouco mais de dois anos –,
houve 56,5 mil ingressos no abrigo de Paciência. Isso representa uma
média de 65 internações por dia. O abrigo está superlotado, segundo
detectou visita da própria Teresa Bergher na véspera. Com capacidade de
350 pessoas, estaria com 150 a mais. Abandonado, o abrigo teria sido
invadido até por traficantes de drogas. A vereadora questionou a suposta
ausência de servidores públicos no abrigo, sendo questionada em seguida
por diversos presentes.
O vereador Renato Cinco
(PSOL), integrante da Comissão, e que reivindica uma CPI da Internação
Compulsória, também defendeu a tese da higienização. “Por que a rede de
saúde mental é tão precária na cidade? Temos apenas seis CAPS-AD, e só
três funcionam 24 horas. Mais de 40% da cidade não têm acesso. Como pode
a internação acontecer sem laudo médico?”, disse Cinco. Ele lamentou a
aprovação, pela Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei 7663/10, de
Osmar Terra (PMDB-RS), que redesenha sob viés punitivo a Política de
Drogas no país.
O Ministério Público (MP) já
ingressou com duas ações por improbidade administrativa relacionadas à
política de internação compulsória. Em uma delas, chegou a pedir a
cassação do mandato do prefeito Eduardo Paes (PMDB), e de Rodrigo
Bethlem (PMDB), secretário de Governo do município, por abusos na
remoção dos sem teto. Em abril, quando foi divulgada, a ação chamou a
atenção dos militantes da saúde pela pouca visibilidade nos meios de
comunicação, já que era o MP sugerindo a cassação do prefeito.
A
defensora pública Juliana Moreira, do Núcleo de Defesa dos Direitos
Humanos, apresentou dados surpreendentes. Após desenvolver um software
de mapeamento da população de rua, e fazer mais de 35 visitas em
unidades de tratamento, a entidade cruzou informações. Descobriu que a
grande maioria dessas pessoas não é usuária de droga nem de álcool.
“Enviamos uma série de questionamentos à Prefeitura. Recebemos em troca o
silêncio. A falta de transparência é uma das maiores dificuldades”,
lamentou.
Hilda Correia, do Fórum de População em
Situação de Rua, foi ainda mais enfática. “Estamos chegando no limite.
Nós todos estamos gritando que não cabe recolher pessoas a contragosto.
Temos que efetivar políticas públicas que garantam serviços de
qualidade. Criar um processo de restabelecimento de vínculo da população
de rua com suas relações”, disse.
Um momento
peculiar, durante a audiência pública, foi o discurso do vereador Carlos
Bolsonaro (PP), vice-presidente da Comissão, e filho do folclórico
deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ). Após chegar atrasado, afirmou
que “as verdadeiras vítimas estavam sendo consideradas culpadas, e
vice-versa”. O parlamentar também parabenizou a Prefeitura, por “ter
política pública para quem usa drogas”, e disse acreditar que o usuário é
tão culpado quanto o traficante. Foi vaiado pela plateia em coro.
O
único representante do poder público presente era Rodrigo Abel,
subsecretário de Desenvolvimento Social – pasta gerida por Adilson Pires
(PT), também vice-prefeito. Embora tenha feito um discurso apaixonado,
Abel não respondeu à maioria dos questionamentos colocados na audiência.
“Abrigo deveria ser o último instrumento. Temos que ter menos e
melhores abrigos”, disse, lamentando o orçamento da secretaria. “Que seu
belo discurso seja colocado em prática”, respondeu Teresa.
A
representante do Núcleo Estadual do Movimento de Luta Antimanicomial,
Beatriz Adura, leu um contundente texto sobre as políticas em andamento
no país e na cidade para o setor. Foi a mais aplaudida. Renato
Cosentino, do Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas, apresentou fotos e
artes gráficas que indicavam o rápido processo de elitização do espaço
urbano no Rio de Janeiro.
Dados apresentados por
Pacheco reforçam a ideia de que o problema está no projeto de cidade em
implantação no Rio. Segundo ele, o orçamento da Guarda Municipal é
superior ao das secretarias de Habitação, Fazenda, Trabalho e Esporte e
Lazer, e apenas 10% inferior à de Desenvolvimento Social. “Esse dado é
chocante”, concluiu. Chocado de verdade ficaria o eventual cidadão que
entrasse, por acaso, na audiência pública. Perceberia a nada sutil
dissonância entre o discurso dos veículos de mídia de massa e as
opiniões ali apresentadas pelas entidades especializadas.
Foto: Arquivo Câmara
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/13133
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