Desafios da luta pelo Passe Livre, desafios da luta amanhã
O pior de tudo é que as contradições do movimento,
que até agora julga positiva sua maior debilidade, ou seja, a
desorganização, jogam a favor da apropriação e assimilação capitalista
da nossa luta
25/06/2013
Pablo Polese
Perseu precisava de um capacete da invisibilidade para perseguir os monstros.
Nós puxamos o capacete mágico a fundo sobre nossos olhos e orelhas para podermos negar a existência de monstros.
Karl Marx
Quando
criança aprendi, na escola, a cantar o hino nacional brasileiro antes
da entrada para as salas de aula. Somente muito tempo depois vim a saber
das origens militares daquela prática, aparentemente inofensiva. Nas
várias escolas onde estudei, sempre havia um forte rigor para que o hino
fosse entoado corretamente. Um trecho que muitos de nós errávamos era
aquele em que a igualdade “conseguimos conquistar com braço forte” (e
não “braços fortes”…). Mal sabíamos que o braço forte em tela não era o
do povo unido, e sim o braço de Dom Pedro, às margens do Ipiranga, em
1822, consolidando aquela que talvez seja a primeira assimilação, pelas
classes dominantes, de décadas de lutas populares por todo o Brasil
escravista.
A receita da assimilação das lutas
populares seria repetida inúmeras vezes em nossa história, cabendo citar
apenas os exemplos mais flagrantes: na Abolição da Escravidão, em 1888,
na promulgação da CLT, em 1942, na transição transada para a
democracia, de 1978 a 1985… e o que se consolidou em nosso país, de
revolução burguesa atípica, foi um “capitalismo selvagem” (como diria
Florestan Fernandes), essencialmente antidemocrático, que, sem resolver o
problema do mercado interno, manteve a classe trabalhadora em situação
anômica e, especialmente, manteve o “povo” à parte do fazer histórico,
sempre decidido e imposto de cima pra baixo.
O
capitalismo brasileiro, ou melhor, os capitalistas brasileiros, em
conluio com o capital externo, foram extremamente competentes em sua
função primordial de perpetuar a superexploração da classe trabalhadora
brasileira. Essa perpetuação foi possível, especialmente, porque as
classes dominantes conseguiram instituir a contra-revolução permanente
no Brasil, por meio de um conjunto de fatores históricos, dentre os
quais quero destacar a despolitização da massa trabalhadora, a qual,
acostumada a nunca decidir nada de substantivo que dissesse respeito à
sua própria vida social, acabou nutrindo uma hostilidade “de princípio” a
tudo que diz respeito à “política” – sinônimo de corrupção e terreno
intocável dos coronéis…
Sempre que, a duras penas
e com muito sangue derramado, a classe trabalhadora brasileira
conseguiu romper a apatia e superar a ojeriza ao fazer político, se
pondo resolutamente no cenário histórico, as lutas terminaram por entrar
em refluxo ao ver suas pautas e conquistas organizacionais serem
assimiladas uma a uma pelas classes dominantes. Desse modo, a apatia
política brasileira, que tem tamanha força que nos deu o nobre título de
país da “cordialidade”, “malandragem”, “carnaval”, “futebol” e “bunda”,
é cotidianamente perpetuada por meio de um poderoso aparelho ideológico
voltado a esse fim. Essa aparelho ideológico conta com o monopólio dos
meios de comunicação de massa, competentíssimos na
despolitização/imbecilização das massas populares, e conta também, do
outro lado da moeda, com a manutenção de um nível de ensino, em todos os
níveis, tragicamente baixo.
Ora, mesmo com
tamanho poder — e é bom lembrar que mencionei apenas alguns dos
elementos que compõem o quadro da contra-revolução permanente no Brasil —
ainda assim a produção permanente de crises capitalistas e contradições
sociais explosivas faz com que a classe trabalhadora brasileira,
superexplorada, de tempos em tempos consiga reagir e romper o círculo
vicioso da despolitização, engendrando renovada revolta contra algum
elemento específico do insuportável cotidiano a que somos submetidos.
Nossas
lutas deparam com essa dificuldade de sempre aparentarem “começar do
zero” não só por questões comuns a todo o globo — o fato de que depois
do fracasso das experiências pós-capitalistas e dos papéis nefastos
desempenhados pelos partidos e sindicatos viu-se no mundo todo uma
rejeição em massa dos órgãos tradicionais de luta que até então
garantiam um mínimo de continuidade nas lutas, que agora são
essencialmente particularizadas e fragmentadas e dificilmente conseguem
se articular em pautas comuns — mas também por questões especificamente
brasileiras — o fato de que nossas lutas históricas, ao serem
assimiladas pelas classes dominantes, resultaram numa espécie de amnésia
histórica e em dificuldades impeditivas da manutenção de todo e
qualquer ganho organizacional de classe, que poderia se tornar
cumulativo e fazer avançar as lutas futuras a partir de patamares
históricos consolidados. Em outras palavras, na luta de classes,
ganhamos poucas batalhas, e mesmo essas nos ficaram como sendo
concessões do capital e não conquistas do trabalho.
Sem
a instituição de órgãos políticos adequados, temos então de cair num
eterno “retorno ao começo” das lutas sociais, como se cada causa fosse
específica e descolada das outras, seja por pauta, seja pela composição
classista dos militantes, seja em aspecto temporal, espacial, etc. Isso
acontece porque nosso capitalismo se mostrou competente também em apagar
preventivamente toda memória das lutas e resistências (daí a
importância, por exemplo, da esquerda organizada lutar pela Comissão da
Verdade sobre os crimes da Ditadura, sendo o Brasil o único país que
ainda não logrou essa conquista), possível graças ao baixo nível de
ensino e politização da sociedade, bem como, é claro, aos esforços das
classes dominantes em alimentar a amnésia histórica e política das
classes exploradas.
Outro elemento importante
nessa eternização do refluxo das lutas é que o nosso capitalismo e suas
personas em controle não apenas dos meios de produção, mas também do
aparato político e ideológico, domina a política institucional e
parlamentar, podendo então impor repetidamente pautas regressivas, as
quais têm uma função substitutiva: sendo a correlação de forças
desfavorável à esquerda, em vez de lutarmos pela legalização do aborto e
sua oferta pública a todos os cidadãos, temos que lutar contra o
“estatuto do nascituro”, a “cura gay” e demais elementos do fascismo à
brasileira.
Essa situação defensiva a que
chegamos só pode ser compreendida adequadamente se aliarmos a
compreensão das mazelas acumuladas ao longo da formação histórica
brasileira com a análise do desenvolvimento recente da luta de classes
no Brasil, especialmente nas três décadas do Projeto democrático-popular
petista. Tendo se constituído simultaneamente ao fim da ditadura, o
Partido dos Trabalhadores demonstrou desde o início ser dotado de uma
força centrípeta poderosa: sua estrutura aceitava os mais diferentes
segmentos sociais e sua plataforma ideológica perfazia um amplo leque.
As frações internas mais radicais, que tinham algo que ver com a
alternativa socialista, foram ao longo das últimas décadas completamente
diluídas ou extirpadas do Partido. No plano da luta de classes
nacional, o PT foi muito competente em assimilar os organismos mais
combativos da classe trabalhadora que ainda tinham relativo grau de
autonomia, como por exemplo o MST e a CUT, e só por isso se referenciou
como o Partido mais adequado para a manutenção da dominação burguesa no
Brasil do século XXI. Dada nossa estrutura dependente e o desmonte
operado pelo neoliberalismo na década anterior à ascensão do PT ao
governo, todas as reformas capitalistas necessárias para a gestão da
crise do capital no Brasil só poderiam ter sido levadas a cabo com um
Partido político capaz de conter as massas superexploradas e assimilar
ou estrangular toda e qualquer luta mais radical com tendência
anticapitalista ou com pautas desinteressantes ao grande capital, como
por exemplo as reformas agrária e urbana. O grande capital encontrou no
PT, em colaboração com PSDB e PMDB, esse Partido. A situação anômica da
classe trabalhadora, ou seja, a exclusão histórica da classe
trabalhadora das benesses básicas do mercado de consumo capitalista, foi
em grande medida resolvido pelo PT, o que representou um ganho real
para a classe, mas um ganho que custou a perda e enfraquecimento dos
órgãos de luta, assimilados pelo petismo. Desse modo, o Partido dos
trabalhadores, que nos primeiros anos fora uma grande conquista da
classe trabalhadora brasileira pós-ditadura, acabou se tornando o
Partido da conciliação de classes e apassivamento da classe trabalhadora
brasileira.
Além disso, a ausência de espaços
políticos atraentes e de um bom trabalho de base da esquerda organizada
criou uma espécie de vácuo de espaços de sociabilidade da classe que foi
rapidamente aproveitado por setores conservadores da sociedade, os
quais souberam fazer trabalho de base e lograram canalizar para si
grande parcela das camadas sociais desfavorecidas – penso especialmente
nas Igrejas, cujo poder pode ser medido pelo montante de capital que
movimentam, o número de meios de comunicação que gerem, e o peso
eleitoral que detêm, como pode-se notar pela “bancada evangélica” e o
número expressivo de votos que a candidata Marina Silva obteve no último
pleito presidencial.
Vendo o quão trágico é o
cenário histórico da política no Brasil, há motivos de sobra para o
militante de esquerda se empolgar com as recentes manifestações pela
baixa da tarifa, no Brasil todo. Num país dominado pela resistência
sociopática à mudança, onde a burguesia tem medo-pânico das classes
trabalhadoras descerem o morro e não ser carnaval (como diz o samba), há
portanto que alimentar o “otimismo da vontade” e ir às ruas, lutar para
que o movimento resulte no maior ganho possível para a classe
trabalhadora, especialmente, a meu ver, no âmbito de alimentar uma
cultura política de luta e conquistas, de baixo para cima. Conquistar,
portanto, algum grau de autonomia política de classe. Pode ser que custe
apenas 20 centavos a esperança vencer de verdade o medo.
Mas,
do mesmo modo que há motivos de sobra para o otimismo da vontade, há
motivos de sobra para o “pessimismo da razão”: setores conservadores da
sociedade brasileira têm comparecido em peso nas manifestações, com a
intenção explícita de ampliar e diluir a pauta inicial em pautas
abstratas e ambíguas, que não têm potencialidades promissoras de se
converterem em conquistas concretas para as classes trabalhadoras, como
por exemplo o “contra a corrupção”, etc. Setores da direita vêm tentando
se aproveitar do movimento em ascensão para direcionar os protestos em
alvos de seu interesse: “Pelo impeachment de Dilma”, etc. As mesmas
camadas médias que sempre estão a postos para criminalizar as
resistências sociais estão agora marchando lado a lado com seus inimigos
de classe, numa tentativa de apropriação da luta, que com tanto custo
ganhou repercussão e aceitação na sociedade brasileira. Essas camadas de
direita ainda são minoria, mas sua força desorganizadora é poderosa,
porque sua aparência democrática é facilmente aceita, acriticamente,
pelas camadas exploradas da população brasileira, as quais têm uma
marcante inexperiência política e se mostram incapazes de perceber
certas infiltrações de pautas fascistas que assumem roupagens
pseudo-democráticas, etc. A título de exemplo, basta pensar em quantos
dos trabalhadores e estudantes que nas passeatas entoam com tanta paixão
o hino nacional sequer fazem ideia do quão problemático é o
nacionalismo protofascista por trás dessa prática ou, por exemplo,
quantos deles sequer suspeitariam do quão fascista é o coro
antipartidário de “abaixa a bandeira, aqui a única bandeira é a do
Brasil”. A falta de memória histórica, aliada à inexperiência política e
ao baixo grau de escolarização, fortalece o fascismo brasileiro, que
come pelas beiradas.
Por tudo isso, me parece que
temos urgentemente que mudar o grito de “amanhã vai ser maior” pra
“amanhã será organizado”, pois o crescimento quantitativo dos protestos
não foi acompanhado de nenhum ganho ideológico, a não ser a explicitação
do fascismo brasileiro, até então mais tímido. A desorganização só
favorece a direita. Praticamente todas as contradições do movimento, que
em outros contextos fazem o próprio movimento avançar e se
auto-superar, no contexto atual jogam a favor da direita. O
apartidarismo, especialmente quando confundido com o anti-partidarismo,
joga a favor da direita. A inexperiência política da massa, joga a favor
da direita. O ufanismo protofascista, que sempre esteve latente e há
décadas vem sendo alimentado por Galvão Bueno etc., joga a favor da
direita. As divergências e picuinhas internas à esquerda, jogam a favor
da direita. As merdas históricas dos órgãos clássicos da classe
trabalhadora, causam a ojeriza aos partidos e sindicatos também entre os
que não são tão principiantes politicamente, e isso joga a favor da
direita. A crise capitalista aprofundada, e sua gestão por um partido
pretensamente “de esquerda”, joga a favor da direita. A raiva social
acumulada por séculos de superexploração, e seu resultante, um ódio mal
direcionado, joga a favor da direita. Enfim, quase tudo joga a favor da
direita. A organização da esquerda é pra ontem, porque o fascismo
brasileiro está aí se aproveitando de todas essas contradições, que
jogam a favor da direita.
Trata-se, então, de
disputar a hegemonia dentro do movimento, a despeito do quão difícil é o
próprio colocar em pauta a hegemonia num movimento até agora autista,
mas de um autismo e cegueira tal como aqueles que se refere Marx ao
falar do uso incorreto do capacete mágico de Perseu. O capacete afundado
nas nossas cabeças, que cobre nossos olhos e orelhas é aquele que faz
com que neguemos a necessidade da construção de meios para ao menos
colocar enquanto um problema sério a falta de rumo das reivindicações e
formas organizacionais, já que a desorganização e o mito da positividade
da “ausência de bandeiras” é tacitamente visto pela grande maioria como
sendo uma qualidade do movimento, quando em verdade é uma ideologia
fascista que vai tomando corpo e ganhando força. Precisamos urgentemente
mobilizar os setores da classe trabalhadora que já têm algum acúmulo
organizacional, do contrário o fascismo brasileiro continuará crescendo e
se alimentando das debilidades históricas da esquerda brasileira. As
contradições do movimento, que até agora não deu sinais de que vai
enfrentar sua maior debilidade, ou seja, a desorganização, jogam a favor
da direita e da apropriação e assimilação capitalista das lutas da
classe trabalhadora.
Esse é o cenário que temos
que enfrentar se quisermos conquistar essa pauta do Passe Livre e manter
algum ganho político e, oxalá, organizacional, para lutas futuras com
pautas legitimamente ampliadas. Esses são alguns dos desafios e fardos
do nosso tempo histórico, num país onde a contra-revolução preventiva
cravou raízes tão profundamente.
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