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quarta-feira, 26 de junho de 2013

Desafios da luta pelo Passe Livre, desafios da luta amanhã


O pior de tudo é que as contradições do movimento, que até agora julga positiva sua maior debilidade, ou seja, a desorganização, jogam a favor da apropriação e assimilação capitalista da nossa luta

25/06/2013



Pablo Polese

Perseu precisava de um capacete da invisibilidade para perseguir os monstros.
Nós puxamos o capacete mágico a fundo sobre nossos olhos e orelhas para podermos negar a existência de monstros.
Karl Marx

Quando criança aprendi, na escola, a cantar o hino nacional brasileiro antes da entrada para as salas de aula. Somente muito tempo depois vim a saber das origens militares daquela prática, aparentemente inofensiva. Nas várias escolas onde estudei, sempre havia um forte rigor para que o hino fosse entoado corretamente. Um trecho que muitos de nós errávamos era aquele em que a igualdade “conseguimos conquistar com braço forte” (e não “braços fortes”…). Mal sabíamos que o braço forte em tela não era o do povo unido, e sim o braço de Dom Pedro, às margens do Ipiranga, em 1822, consolidando aquela que talvez seja a primeira assimilação, pelas classes dominantes, de décadas de lutas populares por todo o Brasil escravista.
A receita da assimilação das lutas populares seria repetida inúmeras vezes em nossa história, cabendo citar apenas os exemplos mais flagrantes: na Abolição da Escravidão, em 1888, na promulgação da CLT, em 1942, na transição transada para a democracia, de 1978 a 1985… e o que se consolidou em nosso país, de revolução burguesa atípica, foi um “capitalismo selvagem” (como diria Florestan Fernandes), essencialmente antidemocrático, que, sem resolver o problema do mercado interno, manteve a classe trabalhadora em situação anômica e, especialmente, manteve o “povo” à parte do fazer histórico, sempre decidido e imposto de cima pra baixo.
O capitalismo brasileiro, ou melhor, os capitalistas brasileiros, em conluio com o capital externo, foram extremamente competentes em sua função primordial de perpetuar a superexploração da classe trabalhadora brasileira. Essa perpetuação foi possível, especialmente, porque as classes dominantes conseguiram instituir a contra-revolução permanente no Brasil, por meio de um conjunto de fatores históricos, dentre os quais quero destacar a despolitização da massa trabalhadora, a qual, acostumada a nunca decidir nada de substantivo que dissesse respeito à sua própria vida social, acabou nutrindo uma hostilidade “de princípio” a tudo que diz respeito à “política” – sinônimo de corrupção e terreno intocável dos coronéis…
Sempre que, a duras penas e com muito sangue derramado, a classe trabalhadora brasileira conseguiu romper a apatia e superar a ojeriza ao fazer político, se pondo resolutamente no cenário histórico, as lutas terminaram por entrar em refluxo ao ver suas pautas e conquistas organizacionais serem assimiladas uma a uma pelas classes dominantes. Desse modo, a apatia política brasileira, que tem tamanha força que nos deu o nobre título de país da “cordialidade”, “malandragem”, “carnaval”, “futebol” e “bunda”, é cotidianamente perpetuada por meio de um poderoso aparelho ideológico voltado a esse fim. Essa aparelho ideológico conta com o monopólio dos meios de comunicação de massa, competentíssimos na despolitização/imbecilização das massas populares, e conta também, do outro lado da moeda, com a manutenção de um nível de ensino, em todos os níveis, tragicamente baixo.
Ora, mesmo com tamanho poder — e é bom lembrar que mencionei apenas alguns dos elementos que compõem o quadro da contra-revolução permanente no Brasil — ainda assim a produção permanente de crises capitalistas e contradições sociais explosivas faz com que a classe trabalhadora brasileira, superexplorada, de tempos em tempos consiga reagir e romper o círculo vicioso da despolitização, engendrando renovada revolta contra algum elemento específico do insuportável cotidiano a que somos submetidos.
Nossas lutas deparam com essa dificuldade de sempre aparentarem “começar do zero” não só por questões comuns a todo o globo — o fato de que depois do fracasso das experiências pós-capitalistas e dos papéis nefastos desempenhados pelos partidos e sindicatos viu-se no mundo todo uma rejeição em massa dos órgãos tradicionais de luta que até então garantiam um mínimo de continuidade nas lutas, que agora são essencialmente particularizadas e fragmentadas e dificilmente conseguem se articular em pautas comuns — mas também por questões especificamente brasileiras — o fato de que nossas lutas históricas, ao serem assimiladas pelas classes dominantes, resultaram numa espécie de amnésia histórica e em dificuldades impeditivas da manutenção de todo e qualquer ganho organizacional de classe, que poderia se tornar cumulativo e fazer avançar as lutas futuras a partir de patamares históricos consolidados. Em outras palavras, na luta de classes, ganhamos poucas batalhas, e mesmo essas nos ficaram como sendo concessões do capital e não conquistas do trabalho.
Sem a instituição de órgãos políticos adequados, temos então de cair num eterno “retorno ao começo” das lutas sociais, como se cada causa fosse específica e descolada das outras, seja por pauta, seja pela composição classista dos militantes, seja em aspecto temporal, espacial, etc. Isso acontece porque nosso capitalismo se mostrou competente também em apagar preventivamente toda memória das lutas e resistências (daí a importância, por exemplo, da esquerda organizada lutar pela Comissão da Verdade sobre os crimes da Ditadura, sendo o Brasil o único país que ainda não logrou essa conquista), possível graças ao baixo nível de ensino e politização da sociedade, bem como, é claro, aos esforços das classes dominantes em alimentar a amnésia histórica e política das classes exploradas.
Outro elemento importante nessa eternização do refluxo das lutas é que o nosso capitalismo e suas personas em controle não apenas dos meios de produção, mas também do aparato político e ideológico, domina a política institucional e parlamentar, podendo então impor repetidamente pautas regressivas, as quais têm uma função substitutiva: sendo a correlação de forças desfavorável à esquerda, em vez de lutarmos pela legalização do aborto e sua oferta pública a todos os cidadãos, temos que lutar contra o “estatuto do nascituro”, a “cura gay” e demais elementos do fascismo à brasileira.
Essa situação defensiva a que chegamos só pode ser compreendida adequadamente se aliarmos a compreensão das mazelas acumuladas ao longo da formação histórica brasileira com a análise do desenvolvimento recente da luta de classes no Brasil, especialmente nas três décadas do Projeto democrático-popular petista. Tendo se constituído simultaneamente ao fim da ditadura, o Partido dos Trabalhadores demonstrou desde o início ser dotado de uma força centrípeta poderosa: sua estrutura aceitava os mais diferentes segmentos sociais e sua plataforma ideológica perfazia um amplo leque. As frações internas mais radicais, que tinham algo que ver com a alternativa socialista, foram ao longo das últimas décadas completamente diluídas ou extirpadas do Partido. No plano da luta de classes nacional, o PT foi muito competente em assimilar os organismos mais combativos da classe trabalhadora que ainda tinham relativo grau de autonomia, como por exemplo o MST e a CUT, e só por isso se referenciou como o Partido mais adequado para a manutenção da dominação burguesa no Brasil do século XXI. Dada nossa estrutura dependente e o desmonte operado pelo neoliberalismo na década anterior à ascensão do PT ao governo, todas as reformas capitalistas necessárias para a gestão da crise do capital no Brasil só poderiam ter sido levadas a cabo com um Partido político capaz de conter as massas superexploradas e assimilar ou estrangular toda e qualquer luta mais radical com tendência anticapitalista ou com pautas desinteressantes ao grande capital, como por exemplo as reformas agrária e urbana. O grande capital encontrou no PT, em colaboração com PSDB e PMDB, esse Partido. A situação anômica da classe trabalhadora, ou seja, a exclusão histórica da classe trabalhadora das benesses básicas do mercado de consumo capitalista, foi em grande medida resolvido pelo PT, o que representou um ganho real para a classe, mas um ganho que custou a perda e enfraquecimento dos órgãos de luta, assimilados pelo petismo. Desse modo, o Partido dos trabalhadores, que nos primeiros anos fora uma grande conquista da classe trabalhadora brasileira pós-ditadura, acabou se tornando o Partido da conciliação de classes e apassivamento da classe trabalhadora brasileira.
Além disso, a ausência de espaços políticos atraentes e de um bom trabalho de base da esquerda organizada criou uma espécie de vácuo de espaços de sociabilidade da classe que foi rapidamente aproveitado por setores conservadores da sociedade, os quais souberam fazer trabalho de base e lograram canalizar para si grande parcela das camadas sociais desfavorecidas – penso especialmente nas Igrejas, cujo poder pode ser medido pelo montante de capital que movimentam, o número de meios de comunicação que gerem, e o peso eleitoral que detêm, como pode-se notar pela “bancada evangélica” e o número expressivo de votos que a candidata Marina Silva obteve no último pleito presidencial.
Vendo o quão trágico é o cenário histórico da política no Brasil, há motivos de sobra para o militante de esquerda se empolgar com as recentes manifestações pela baixa da tarifa, no Brasil todo. Num país dominado pela resistência sociopática à mudança, onde a burguesia tem medo-pânico das classes trabalhadoras descerem o morro e não ser carnaval (como diz o samba), há portanto que alimentar o “otimismo da vontade” e ir às ruas, lutar para que o movimento resulte no maior ganho possível para a classe trabalhadora, especialmente, a meu ver, no âmbito de alimentar uma cultura política de luta e conquistas, de baixo para cima. Conquistar, portanto, algum grau de autonomia política de classe. Pode ser que custe apenas 20 centavos a esperança vencer de verdade o medo.
Mas, do mesmo modo que há motivos de sobra para o otimismo da vontade, há motivos de sobra para o “pessimismo da razão”: setores conservadores da sociedade brasileira têm comparecido em peso nas manifestações, com a intenção explícita de ampliar e diluir a pauta inicial em pautas abstratas e ambíguas, que não têm potencialidades promissoras de se converterem em conquistas concretas para as classes trabalhadoras, como por exemplo o “contra a corrupção”, etc. Setores da direita vêm tentando se aproveitar do movimento em ascensão para direcionar os protestos em alvos de seu interesse: “Pelo impeachment de Dilma”, etc. As mesmas camadas médias que sempre estão a postos para criminalizar as resistências sociais estão agora marchando lado a lado com seus inimigos de classe, numa tentativa de apropriação da luta, que com tanto custo ganhou repercussão e aceitação na sociedade brasileira. Essas camadas de direita ainda são minoria, mas sua força desorganizadora é poderosa, porque sua aparência democrática é facilmente aceita, acriticamente, pelas camadas exploradas da população brasileira, as quais têm uma marcante inexperiência política e se mostram incapazes de perceber certas infiltrações de pautas fascistas que assumem roupagens pseudo-democráticas, etc. A título de exemplo, basta pensar em quantos dos trabalhadores e estudantes que nas passeatas entoam com tanta paixão o hino nacional sequer fazem ideia do quão problemático é o nacionalismo protofascista por trás dessa prática ou, por exemplo, quantos deles sequer suspeitariam do quão fascista é o coro antipartidário de “abaixa a bandeira, aqui a única bandeira é a do Brasil”. A falta de memória histórica, aliada à inexperiência política e ao baixo grau de escolarização, fortalece o fascismo brasileiro, que come pelas beiradas.
Por tudo isso, me parece que temos urgentemente que mudar o grito de “amanhã vai ser maior” pra “amanhã será organizado”, pois o crescimento quantitativo dos protestos não foi acompanhado de nenhum ganho ideológico, a não ser a explicitação do fascismo brasileiro, até então mais tímido. A desorganização só favorece a direita. Praticamente todas as contradições do movimento, que em outros contextos fazem o próprio movimento avançar e se auto-superar, no contexto atual jogam a favor da direita. O apartidarismo, especialmente quando confundido com o anti-partidarismo, joga a favor da direita. A inexperiência política da massa, joga a favor da direita. O ufanismo protofascista, que sempre esteve latente e há décadas vem sendo alimentado por Galvão Bueno etc., joga a favor da direita. As divergências e picuinhas internas à esquerda, jogam a favor da direita. As merdas históricas dos órgãos clássicos da classe trabalhadora, causam a ojeriza aos partidos e sindicatos também entre os que não são tão principiantes politicamente, e isso joga a favor da direita. A crise capitalista aprofundada, e sua gestão por um partido pretensamente “de esquerda”, joga a favor da direita. A raiva social acumulada por séculos de superexploração, e seu resultante, um ódio mal direcionado, joga a favor da direita. Enfim, quase tudo joga a favor da direita. A organização da esquerda é pra ontem, porque o fascismo brasileiro está aí se aproveitando de todas essas contradições, que jogam a favor da direita.
Trata-se, então, de disputar a hegemonia dentro do movimento, a despeito do quão difícil é o próprio colocar em pauta a hegemonia num movimento até agora autista, mas de um autismo e cegueira tal como aqueles que se refere Marx ao falar do uso incorreto do capacete mágico de Perseu. O capacete afundado nas nossas cabeças, que cobre nossos olhos e orelhas é aquele que faz com que neguemos a necessidade da construção de meios para ao menos colocar enquanto um problema sério a falta de rumo das reivindicações e formas organizacionais, já que a desorganização e o mito da positividade da “ausência de bandeiras” é tacitamente visto pela grande maioria como sendo uma qualidade do movimento, quando em verdade é uma ideologia fascista que vai tomando corpo e ganhando força. Precisamos urgentemente mobilizar os setores da classe trabalhadora que já têm algum acúmulo organizacional, do contrário o fascismo brasileiro continuará crescendo e se alimentando das debilidades históricas da esquerda brasileira. As contradições do movimento, que até agora não deu sinais de que vai enfrentar sua maior debilidade, ou seja, a desorganização, jogam a favor da direita e da apropriação e assimilação capitalista das lutas da classe trabalhadora.
Esse é o cenário que temos que enfrentar se quisermos conquistar essa pauta do Passe Livre e manter algum ganho político e, oxalá, organizacional, para lutas futuras com pautas legitimamente ampliadas. Esses são alguns dos desafios e fardos do nosso tempo histórico, num país onde a contra-revolução preventiva cravou raízes tão profundamente.

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