A Primavera do Direito à Cidade
10/06/2013
Revolta dos jovens turcos foi resposta à privatização de
Istambul. Levante revela emergência das lutas pelo Comum urbano e
ambiental
Por Bernardo Gutierrez | Tradução: Bruna Bernacchio | Imagens: Jamie Bowlby-Whiting
Taksim é nosso, Istambul é nossa!”. Os gritos não pertencem a algum
dos jovens que ocuparam o Parque Taksim Gezi, da capital turca, na
virada do mês. Tampouco é um mote que esteja correndo o mundo no
Twitter, sob a tag #OccupyGezi. “Taksim é nosso” está sendo pronunciado por um cidadão anônimo no vídeo Tkasim Square (Istambul Commons),
durante uma manifestação celebrada no outono passado. “Taksim é nosso” –
continua a voz no megafone – “não importa as opções políticas que
tenham as pessoas”.
O vídeo foi produzido no âmbito do projeto Mapeando o Comum [Mapping the Commons], idealizado pelo estúdio sevilhano Hacktitetura e desenvolvido pelo ativista Pablo de Soto,
em Atenas e Istambul. E contextualiza com perfeição a vertiginosa
insurreição que está vivendo Istambul e toda a Turquia. O centro
comercial planejado pelo governo de Recep Tayyip Erdogan, que incendiou
#OccupyGezi, é apenas a ponta de um iceberg maior: um duro plano
neoliberal para privatizar bens comuns (águas, bosques) e espaço
público. Até que ponto o ataque ao comu, e concretamente a privatização
dos espaços urbanos deflagraram a Primavera Turca?
O projeto Mapeando o Comum — definido por seus próprios autores como
uma performance que pode tornar-se reflexão, uma obra de arte ou uma
ação social — é um verdadeiro passeio pelas raízes de #OccupyGezi. A
cartografia, realizada na plataforma Meipi,
organiza o comu de Istambul em quatro categorias: bens naturais,
cultura, espaço público e digital. Os vídeos publicados, todos com falas
parcialmente em inglês, resumem os ataques que o o espaço público sofre
na era Erdogan.
“Communication space”, por exemplo, revela, por meio dos protestos dos estudantes universitários, a luta pelo conhecimento e comunicação livres. Em “Water as a commons”, o assunto central é a privatização da gestão da água na região. “For-rest”
denuncia que a terceira ponte sobre o estreito de Bósforo, que o
governo de Erdogan planeja, implicaria na desaparecimento do bosque
Belgrado, pulmão verde da cidade. A repressão no espaço público de
manifestações sócio-culturais como festas nas ruas ou o fim da única
praça de pedestres (Galata Square) de Istambul são tema os vídeos Cultural expressions in public space e o Galata Tower Square.
Até que ponto a privatização selvagem dos bens comuns naturais e
urbanos de Istambul incendiou a revolta de #OccupyGezi? O ativista Pablo
de Soto, em declarações ao jornal espanhol El Diario, sustenta que os
fatos estão intrinsecamente relacionados: “O corte das árvores para
construir um centro comercial para a elite e os turistas foi o pavio de
incêndio, o catalizador final dos protestos por justiça social e
econômica”.
A arquiteta turca Pelin Tan, em seu artigo Um relato de Gezi Park
reforma a tese: “Para o governo turco, as novas políticas urbanas são a
desculpa para atos de segragação, para incentivar estilos de vida
neoliberais, o progressivo endividamento dos seus cidadãos, exploração,
racismo, corrupção, e a instalação de um estado de exceção que viola os
direitos humanos”. Por sua vez, a prestigiosa plataforma Architizer também situa os bens comuns urbanos como claro estopim da revolta.
#OccupyGezi é muito mais que um grito ecologista para salvar os
árvores de Taksim. Mas não exclusivamente é apenas uma revolta
antagonista contra a arrogância macropolítica do governo turco ou a
suposta tentativa de islamização da Turquia que, segundo a imprensa
ocidental, Erdogan conduz.
Em A Catedral e o Bazar,
o hacker Eric S. Raymond contrapunha dois modelos na elaboração de
software. A Catedral representa o modelo de desenvolvimento hermético e
vertical do software proprietário. O bazar, com sua dinâmica horizontal e
barulhenta, representaria a Linux e outros projetos de software livre,
baseados no trabalho comunitário. Nenhum lugar como Istambul, com seu
barulhento Gran Bazar, encarna melhor a metáfora urbana da tese de
Raymond. De um lado, a catedral de receitas top down e privatizantes, do
Governo de Erdogan. Do outro, o grande bazar humano de Istambul, seu
espaço público, a tradição comunal das comunidades da cidade.
#OccupyGezi e sua convivência humana resumem o choque de trens da
história, entre dois modelos incompatíveis.
Derya Calik, estudante e ativista, descreve em uma entrevista
a estratégia da catedral neoliberal contra os manifestantes de Taksim.
“Na Turquia, não temos uma boa conexão 3G. Quando muito usada, a rede
entra em colapso. Além disso, muitas pessoas foram informadas do uso de
inibidores de sinal, por parte da polícia. Por isso, começamos a
utilizar uma conexão VPN (Rede Virtual Privada). E, além disso, as
lojas, restaurantes, hotéis e os residentes da zona cederam Wi-Fi aos
manifestantes, abrindo as senhas de suas redes”. O bazar colaborativo de
Istambul, no momento, driblou a aprisionadora catedral de Erdogan.
É possível fazer alguma comparação entre #OccupyGezzi e a acampada da
Porta do Sol de Madri do 15M ou do Occupy Wall Street em Zuccotti?
Pelin Tan, no texto já citado, destaca que “a ocupação de Gezi é um
símbolo de estar juntos no comum (a arquiteta emprega a quase
intraduzível palavra commoning), apesar de nossas diferenças”. Em
#OccupyGezi, continua ela, envolveu-se “gente de diferentes classes,
bairros e movimentos culturais — mais que organizações políticas e
grupos de oposição”. Uma auto-organização transversal do bazar
colaborativo, que a violência policial multiplicou até limites não
esperados. Da praça ao mundo. Do hiperlocal à geopolítica.
Já o ativista Orsan Selap, habitual nas listas de correios de
TakeTheSquare.net criadas no início do 15M espanhol, ressalta a El
Diario a importância das redes na incipiente Primavera Turca: “O
pensamento peer-to-peer (P2P) e em favor do comum nos dá uma alternativa
clara ao capitalismo. Nesses momentos, nas redes sociais, as ruas e as
lutas de Istambul estão convertendo-se em algo com muitos vínculos
internacionais”.
(esquerda) Imagem do video Taksin Square, de Mapping the Commons; (direita) projeto do shopping em Taksim
De Taksim ao mundo. Do hiperlocal ao global. Do urbano à geopolítica.
Em seu aclamado livro Cidades rebeldes, o sociólogo David Harvey afirma
que a “revolução será urbana ou não será”. E adapta ao século XXI “o
direito à cidade”, um velho grito dos anos sessenta, título de um mítico
livro de Henry Lefebvre. O direito à cidade seria um “espaço social com
interações e práticas onde a produção social tem lugar”.
A metrópole moderna tem um papel importante na produção do comum.
Curiosamente, os movimentos sociais de Istambul estão remesclando o
grito de Lefebvre-Harvey. No texto “O movimento pelo Direito à Cidade e o verão turco”,
a jornalista independente Jay Cassano faz um detalhado repasse dos
ataques neoliberais que Istambul está sofrendo nos últimos tempos, além
do projeto de centro comercial para Gezi Taksim.
Jay cita em seu artigo a conversão do histórico cine Emek em shopping center.
Menciona a terceira ponte sobre o Bósforo. E destaca o forte processo
de segragação que Istambul está sofrendo, especialmente nos “bairros
históricos de Sulukule, Tarlabasi, Tophane e Fener-Balat, onde vivem os
imigrantes e a minoria curda”. Precisamente, Mapeando os Comuns dedica
um vídeo ao distrito de Fenet-Balat-Ayvansaray, onde os vizinhos resistem ao plano urbanístico do Ajuntamento pela Associação Febayder.
O coletivo Reclaim Istambul, inspirado no coletivo britânico Reclaim the streets, que lutava pelo espaço público, faz uma verdadeira lista dos horrores
urbanísticos planejados para a capital turca: “Centenas de edifícios
gradeados, torres de escritórios, centros comerciais e projetos
multiusos crescendo como flechas em toda a cidade”. Entre a penca de
projetos de corte neoliberal, destacam Via Port Venezia (“redesenhamos
Veneza e a trouxemos a Istambul”) ou Mall of Istambul (“aproveite de
perto de um dos maiores shoppings da Turquia”). Em certo sentido,
#OccupyGezi nasceu como grito coletivo para evitar que a milenária
Istambul acabe se convertendo em Las Vegas ou Dubai.
O Reclaim Istambul é responsável por um dos documentários mais polêmicos dos últimos tempo, Ekümenópolis.
Com um verdadeiro coquetel de imagens, entrevistas, músicas, gráficos e
animações, Ekümenópolis desenha o selvagem ataque ao comum urbano e
natural que sofre a cidade. A contundência de sua sinopse dá uma ideia
da dureza de seu conteúdo: “Há alguns anos, Istambul tinha 3,5 milhões
de habitantes. Hoje somos 15 milhões e em 15 anos seremos 23. Foram
ultrapassados os limites ecológicos e de população. Perdeu-se a coesão
social. Aqui surgiu uma imagem do urbanismo neoliberal: Ekümenópolis”.
“É mais que uma revolução tecnológica: é uma revolução cultural. Os
rígidos modelos verticais para intensificar os sistemas de produção de
massa do século passado estão sendo substituídos por flexíveis redes
peer-to-peer, que nos levam até uma nova estética de códigos”. A frase é
do arquiteto Joseph Grima, diretor da última edição da Bienal de
Desenho de Istambul, celebrada ao final de 2012. Adhocracy, o título da Bienal, não foi casual. A adocracia,
outro termo recentemente ressuscitado, é um novo modelo de organização
flexível, intuitiva, transversal. A adocracia é horizontal, rotativa.
Por isso, Adhocracy foi muito mais que uma exposição. Foi um
laboratório.
Uma de suas comissárias, Ethel Baraona (dPr-Barcelona),
respondendo a um questionário sobre #OccupyGezi, destaca o vínculo da
Bienal com o comum urbano: “Uma grande parte dos projetos estava
relacionada com o ativismo urbano, com a intenção de chamar a atenção do
espaço público como espaço de intercâmbio de conhecimentos e de ação”. A
Bienal adocrata espalhou por Istambul o dinamismo de coletivos-projetos
como Crafting Neigborhoods, Recetas Urbanas, Open Structures, Maker Faire Africa, Arduino ou Zuloark (representando o madrilenho El Campo de Cebada).
Especialmente metafórico foi o projeto Drone Shade, da artista James Bridle.
Depois de polvilhar de sombras de “drones” (aviões não tripulados) a
Faixa de Gaza ou Londres, James desenhou com linhas brancas, no coração
urbano de Istambul, a suposta sombra dos drones que os Estados Unidos utilizam da Turquia.
O espaço público como tabuleiro do mundo. Como metáfora geopolítica. A
metralhadora top down e neoliberal de Erdogan, representada em uma forma
de contornos brancos. A aliança militar estadounidense-turca, que
persegue o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) no norte da
Turquia e no norte do Irã, como uma verdade ao rés do chão. A cidade
como campo de batalha.
Será #OccupyGezi é a primeira revolução incendiada pelo comum urbano?
Talvez a primeira, mas não a última. O modelo da catedral neoliberal de
Istambul replica-se em todo o mundo. As remoções e a especulação
imobiliária no Rio de Janeiro pré-olímpico são um exemplo. O projeto
EuroVegas de Madri, como destaca Pablo de Soto, “é um escândalo de
privatização e exceção da legalidade com mesmo grau destrutivo do parque
Gezi em Taksim”.
Chegou a era das Cidades Rebeldes de David Harvey? Veremos uma
sequência de revoluções urbanas em um planeta que esgota seus recursos
naturais a um ritmo assustador? Ainda que não haja respostas, existem
intuições. O antropólogo e ativista do 15M Adolfo Estalella, em seu
provocador texto El procomún no es un commons
vaticina uma forte politização dos núcleos urbanos: “O pró-comum é a
figura que permite politizar a cidade. Se há dez anos a globalização era
o objetivo de ativismo, agora é a cidade. Por isso, o comum é, para o
ativismo atual o que a globalização era para este há dez anos”.
Fonte: http://outraspalavras.net/2013/06/10/a-primavera-do-direito-a-cidade/
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