Ucrânia: fronteira de fogo
Cresce a tensão na ex-república soviética, e o presidente russo Putin ameaça e a possibilidade de invasão aumenta. Por Gianni Carta
por Gianni Carta — publicado 26/04/2014
A intervensão "anti-terrorista"desfechada por Kiev deixou dois mortos pró-russos
A situação era explosiva na noite de quinta-feira 24. Comandos enviados por Kiev para uma nova “intervenção antiterrorista” haviam deixado pelo menos dois separatistas pró-russos mortos em Slavyansk, cidade sob controle dos rebeldes na região oriental do país. Vladimir Putin foi transparente em entrevista à tevê russa: “É claro que isso vai ter consequências para as pessoas responsáveis por tais decisões, e isso também afeta nossas relações entre Estados”. Não era claro a quem Putin se referia ao falar sobre “consequências para as pessoas responsáveis por tais decisões”, nem sobre “nossas relações entre Estados”. Mas imaginar os alvos do presidente russo é tarefa fácil: Kiev e Washington.
Joe Biden, vice-presidente americano, foi o primeiro a exibir sua escassa vocação diplomática. Após encontros em Kiev com o presidente provisório Oleksandr Turchynov, o vice de Obama anunciou: “Está na hora de parar de falar e começar a agir”. Naquela mesma noite, Turchynov anunciou uma nova ação “antiterrorista” na parte oriental do país (a anterior, iniciada na terça-feira 15, foi um fiasco). Certamente Biden julgou que as mortes de três aliados de Kiev entre os dias 19 e 20 em Slavyansk, uma entre a meia dúzia de cidades sob controle de separatistas pró-russos, representam um desacato por parte de Moscou ao acordo de paz de Genebra, do qual participaram Rússia, Ucrânia, EUA e União Europeia. As duas cláusulas principais, o desarme de separatistas e a evacuação de prédios governamentais na região oriental, não haviam sido cumpridas. Pior: o corpo torturado de Volodymir Rybak, da legenda Batkivshchyna, integrada por Turchynov, foi descoberto em um rio de Slavyansk.
Antes da visita de Biden, o diretor da CIA, John Brennan, havia tido encontros “secretos” em Kiev. Buscava uma solução diplomática, dizem. Mas se Biden não prima pelo tato, o diretor da CIA tem menos ainda. De qualquer modo, Biden ofereceu 50 milhões de dólares para o governo ucraniano colocar em prática um programa de reformas políticas e econômicas. Dessa soma, 11 milhões poderão ser usados para ajudar a custear o escrutínio presidencial de 25 de maio, e o segundo turno em 8 de junho. Biden prometeu mais 8 milhões de dólares em assistência militar.
Mas quem matou Rybak? Eis a questão a gerar discórdia entre os americanos e seus aliados ucranianos e os separatistas pró-russos. Para o regime de Kiev está claro que foram os separatistas, batizados “terroristas” porque aparentemente contam com o apoio dos “homens verdes”, mercenários e milícias russas que envergam uniformes sem insígnia. Para os ucranianos orientais “a junta de Kiev” é formada por “fascistas” e “neonazistas” capazes de tudo. Três ministros do atual governo provisório em Kiev são oriundos da legenda de extrema-direita Svoboda, ou seja, Liberdade. Nesta semana o grupúsculo extremista Pravy Sektor (Setor de Direita), presente nos protestos na Praça Maidan que depuseram o corrupto presidente Viktor Yanukovic em fevereiro, alistaram 800 voluntários para lutar na região oriental do país. Segundo líderes orientais, o Pravy Sektor teria assassinado Ribak.
A visita de Biden e Brennan também serve para tranquilizar os países do Leste Europeu. O primeiro contingente de tropas americanas chegou na quarta-feira 23 à Polônia. Os 150 soldados farão exercícios militares. O mesmo farão 450 soldados a ser posicionados em breve na Estônia, Lituânia e Letônia. Por sua vez, 40 mil soldados russos ao longo da costa com a Ucrânia estão prontos a intervir. O ministro do Exterior, Sergey Lavrov, iguala ataques contra cidadão russos a ataques contra a Federação Russa. Três quartos dos habitantes do leste e sul da Ucrânia, cujas fronteiras foram definidas somente em 1939, têm como língua materna o russo. Vários têm familiares do outro lado da fronteira e preferem manter elos com a Rússia. No entanto, segundo o Instituto de Pesquisa Social e Análise Política, com sede na Ucrânia, apenas 27% dos interrogados são separatistas. Lavrov, de qualquer modo, compara os eventos na Ucrânia com a intervenção da Rússia na Geórgia em 2008, “liberando” duas regiões pró-russas daquele país, a Ossétia do Sul e a Abecásia.
A crise na Ucrânia teve início em novembro de 2013, quando Yanukovic recusou-se a assinar um acordo de livre-comércio com a UE. Ocorria que a Rússia lhe oferecesse preços de gás 80% inferiores aos atuais. E mais empréstimos no valor de 15 bilhões de dólares. A UE “disse que Kiev não poderia assinar simultaneamente um acordo de livre-comércio com a Rússia”, declarou aCartaCapital o jornalista ucraniano Oleg Varfolomeyev. Yanukovic exilou-se na Rússia.
No fim de fevereiro os russos apoderaram-se da Crimeia, onde a maioria considera-se etnicamente russa. Em referendo na península de 2,3 milhões de habitantes, 97% dos eleitores escolheram deixar a Ucrânia para integrar a Rússia. A Rússia foi expulsa do G-8. Sanções econômicas e restrições à obtenção de vistos por parte de autoridades russas foram restringidas. As medidas não parecem ter surtido efeito. Sebastopol, na Crimeia, onde se encontra a Frota Russa do Mar Negro, é de grande importância estratégica para Moscou. Após a independência da Ucrânia, em dezembro de 1991, um acordo de arrendamento foi assinado entre Moscou e Kiev para que a frota russa permanecesse na Crimeia. É o caso de Guantánamo Bay.
Como diz Iris Deroeux, os EUA não são “neutros” nessa contenda. Falam em invasões de países soberanos, e fazem o mesmo. Obama não tem estratégia para a Ucrânia, que passou a ser tão importante quanto os dossiês da Síria e do Irã. De Tóquio, seu novo pivô estratégico, anunciou novas sanções econômicas contra Moscou. O popular animador americano de tevê, John Stewart, consagrou uma série à crise ucraniana intitulada O Império Contra-Ataca.
Nenhum comentário:
Postar um comentário