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domingo, 31 de agosto de 2014

Geografia dificulta opção pelo modal ferroviário na Amazônia


Geografia dificulta opção pelo modal ferroviário na Amazônia



A construção e até a reforma de rodovias de acesso às localidades mais remotas da Amazônia, que garantam o suporte logístico essencial à economia, esbarram quase sempre em dois obstáculos equivalentes ao tamanho da região: a preservação ambiental e a segurança das populações indígenas. A alternativa de substituição pelo modal ferroviário, solução proposta pelos ambientalistas para a ligação entre Manaus e Porto Velho, que atravessa um parque nacional e uma reserva indígena, encontra resistência no custo inicial e nas dificuldades geográficas para a implantação do projeto.
O óbvio, que é o transporte hidroviário, dependeria de investimentos em portos de carga, terminais de passageiros e até em sistemas de sinalização que demarquem as hidrovias. O modal aéreo oferece perspectivas, mas, de acordo com especialistas, enfrenta restrições de capacidade e custo operacional em um país com aviação regional subdesenvolvida.
"As prioridades um, dois, três e quatro deveriam ser a hidrovia. Só depois se poderia pensar em ferrovias em eixos estratégicos com menos impacto ambiental que a rodovia, que abre muito espaço para a grilagem e a exploração das madeireiras", diz Virgílio Vianna, superintendente da Fundação Amazônia Sustentável. "Quando se fala de rodovias, os impactos são muito grandes, mas mesmo as ferrovias são obras complicadas de serem implantadas", afirma José Hélio Fernandes, presidente da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (NTC).
"O desenvolvimento sustentável preconiza um tripé: econômico, social e ambiental. Qualquer um dos três que se sobreponha ao outro desfaz o equilíbrio. Hoje a Amazônia não está integrada ao Brasil. Sob a ótica da infraestrutura, mal chegou ao século 20", diz o doutor em engenharia de transportes Augusto Rocha.
Para muito além do debate ambiental, a interiorização de rodovias é considerada importante para o desenvolvimento econômico da região. A criação de uma rota alternativa multimodal até a ferrovia Norte-Sul em Tocantins poderia representar uma economia de até 30% no frete e serviria para o escoamento da produção de soja das fronteiras agrícolas até os portos do Pará e do Maranhão.
A recuperação da BR-230, a Rodovia Transamazônica, com mais de 4 mil quilômetros, ligando as cidades de Cabedelo, na Paraíba, a Lábrea, no Amazonas, é defendida por Augusto Rocha desde que adotado um modelo de gestão ambiental. As obras da BR-319, entre Manaus e Porto Velho, estão paradas à espera de licenciamento ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama), de acordo com o portal do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit).
A conclusão do asfaltamento dos 3.467 quilômetros da BR-163, que liga Tenente Portela, no Rio Grande do Sul, a Santarém, no Pará, pode reduzir em dois ou três dias o percurso entre Manaus e São Paulo e permitir que parte da soja do Centro-Oeste não precise descer para os portos da região Sul para ser embarcada para o mercado exterior.
A construção de aeroportos nas microrregiões do Amazonas, com a utilização de pistas no rio para hidroaviões e pistas em solo para aviões convencionais, com pelo menos um terminal de cada tipo em todas as microrregiões do Estado, seria um esforço importante para a integração regional. A ideia é que as calhas dos rios maiores tivessem também um aeroporto a cada 600 quilômetros para permitir a presença de tráfego aéreo para os Estados mais desenvolvidos.
A construção da segunda pista do Aeroporto Eduardo Gomes seria importante para garantir a movimentação caso uma aeronave enfrente problemas mecânicos na única pista que hoje existe no terminal.
"O problema logístico é muito sério na Amazônia", diz Virgílio Vianna, da Fundação da Amazônia Sustentável. "A multimodalidade de transportes é o que ainda dá suporte ao escoamento da produção da região, mas é importante conciliar alternativas ambientais e economicamente satisfatórias", diz Fernandes, da NTC.
"Há uma equação dúbia quando se trata da Amazônia: por um lado se quer desenvolvimento, mas todos com um mínimo de consciência desejam também a preservação da floresta. O desafio é conseguir as duas coisas e o desenvolvimento sustentável parece ser um bom caminho para superar o dilema", diz o professor Rocha.

Fonte: Valor Econômico

sábado, 30 de agosto de 2014

A China já se equipara à União Europeia em pesquisa e desenvolvimento

A China já se equipara à União Europeia em pesquisa e desenvolvimento


O gigante asiático aplica 1,98% do PIB na área

45% do gasto governamental vai para oito agências de defesa



Uma pesquisadora chinesa trabalha em uma incubadora isolada para o cultivo de bactérias. /MONTY RAKUSEN (CULTURA CREATIVE)

A China já igualou o total gasto pelos 28 países da UE em investimentos em pesquisa e desenvolvimento, com 1,98% do PIB, segundo os últimosdados da OCDE, correspondentes a 2012. Além disso, o gasto do gigante asiático em P&D está em notável progressão e triplicou desde 1995, alcançando, em termos absolutos, 124 bilhões de euros (cerca de 365 bilhões de reais), ou 223 bilhões se a medição for feita por paridade de poder aquisitivo (o sistema mais adequado de comparar investimentos), segundo um informe publicado nesta sexta-feira pela revista Science. Com esta cifra total, a China continua muito atrás dos EUA (344 bilhões de euros) e da UE (259 bilhões de euros), mas já está à frente do Japão (115 bilhões de euros).
A Espanha, em 2012, aplicou 6,393 bilhões de euros em P&D (segundo análise orçamentária da Confederação de Sociedades Científicas da Espanha, a Cosce), com um gasto de 1,3% do PIB, segundo a OCDE, o que implica em uma redução não desprezível de seu máximo histórico, 1,4% do PIB, alcançado em 2010.
Os dados da OCDE mostram que a China apresenta uma progressão notável nos últimos anos, passando de aplicar 1,70% do PIB em P&D em 2009, a 1,76% em 2011 e 1,84% em 2011; enquanto isso, a evolução da UE (os 28), foi de 1,91%, 1,95% e 1,98% respectivamente.
Os autores do informe da Science (Yutan Sun, da Universidade Dalian, chinesa, e Cong Cao, da Universidade de Nottingham, britânica) analisaram a documentação sobre P&D na China por causa da obrigatoriedade das agências governamentais a tornarem públicos seus informes anuais. Eles enfatizam que 45,2% do gasto total do Governo em Pesquisa e Desenvolvimento em 2011 não está detalhado nas informações oficiais, e deve corresponder a oito agências relacionadas com a defesa que não publicam seus dados. É preciso levar em consideração, ressaltam os dois pesquisadores, que no caso do Governo norte-americano mais da metade do gasto em P&D está relacionado com a defesa.
Yutan e Cong destacam que a China potencializa o esforço em pesquisa aplicada e que nos últimos anos está derivando para o desenvolvimento tecnológico, “o que pode ser atribuído à evolução da política de inovação da China, que enfatiza o desenvolvimento em relação à pesquisa científica”. Diferentes instituições, agências e programas, inclusive os ministérios de Ciência e Tecnologia e de Educação, administram o orçamento de P&D civil, sustentando fundamentalmente a ciência básica. Além disso, destaca que um superministério, o de Indústria e Tecnologias da Informação, que “controla grandes quantidades de recursos públicos” e está orientado principalmente à pesquisa aplicada e aos megaprojetos.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

De onde vem o dinheiro que financia o Estado Islâmico?

De onde vem o dinheiro que financia o Estado Islâmico?


Atualizado em  26 de agosto, 2014
Estado Islâmico | Crédito: AP
Para especialista, Estado Islâmico é "um projeto de Estado com armas sofisticadas, uma 
ideologia totalitária e financiamento abundante"
"Isso vai além do que vimos antes", disse há poucos dias o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Chuck Hagel, referindo-se ao Estado Islâmico (EI), anteriormente conhecido como Estado Islâmico do Iraque e da Síria (Isis, na sigla em inglês).

Segundo Hagel, o EI não seria um grupo terrorista, mas um projeto de Estado com armas sofisticadas, uma ideologia totalitária e recursos abundantes obtidos por meio de financiamento externo, o que permitiria ao grupo continuar sua ofensiva e lançar as bases de seu califado.
Até alguns meses atrás, o Isis era apenas um dos vários grupos armados sunitas radicais que se opunham ao regime de Bashar al-Assad na Síria. A organização havia ganhado notoriedade por ser uma dissidência da Al-Qaeda, a qual acusou de não ser suficientemente radical.
Mais recentemente, o Isis tornou-se EI e agora é a manifestação mais violenta da insurgência sunita que tenta impor uma versão ultraconservadora do Islã, contra o que considera uma expansão do xiismo liderado pelo Irã, com forte influência no Iraque, na região.
O cerco e a expulsão das minorias cristãs yazidis do Iraque e a decapitação do jornalista americano James Foley são os últimos exemplos da crueldade com que o EI atua.
Mas, diferentemente de outros grupos de insurgentes, o EI chama atenção por seu poderio econômico.

Fontes energéticas

EI | Crédito: AFP
Estado Islâmico tem uma grande capacidade econômica
Uma das razões origens do dinheiro que financia o grupo está na principal matéria-prima do Iraque: o petróleo.
O país é o segundo maior produtor do óleo no mundo, depois da Arábia Saudita.
Há alguns meses, o EI controla uma parte importante da indústria do petróleo iraquiano no norte do país. Mossul, uma das cidades dominadas pelo grupo, produz cerca de 2 milhões de barris de petróleo por dia.
O EI também controla a planta de gás de Shaar e Baiji, cidade onde se localiza a maior refinaria de petróleo do país.
A partir desta área, os insurgentes cortaram o fornecimento de petróleo para a Turquia enquanto tentam avançar sobre as fontes de energia abundantes do Curdistão iraquiano.
O EI não destrói as fontes energéticas que conquista militarmente. O objetivo é usar os lucros para construir o tão propalado Estado islâmico ou califado.
A estratégia é semelhante à de outros grupos armados que estabeleceram nas últimas décadas redes econômicas ilícitas para seu financiamento, compra de armas e enriquecimento de suas lideranças.
Na Libéria e em Serra Leoa, por exemplo, proliferaram na década de 90 grupos insurgentes que competiam entre si pela exploração e pelo tráfico de diamantes.
No Afeganistão, por outro lado, o cultivo da papoula é a principal fonte de renda para o Talebã e outros setores políticos. Já na Colômbia há diversos vínculos entre grupos insurgentes, paramilitares, políticos e traficantes de drogas.
No caso do Estado islâmico, o grupo ganhou experiência na Síria antes de cruzar a fronteira e se estabelecer no Iraque.
"Uma das razões pelas quais o EI tem sido capaz de crescer tão fortemente é que pode importar recursos e ativistas da Síria", diz Patrick Cockburn, em seu livro The Jihadis Return: ISIS and the New Sunni Uprising ("O Retorno dos Jihadistas: Isis e o Novo Levante Sunita", em tradução livre do inglês).
No Iraque, o EI ganhou rapidamente terreno junto à comunidade sunita após a invasão dos Estados Unidos ao Iraque em 2003.
Com a queda de Saddam Hussein, os sunitas foram marginalizados e reprimidos por governos xiitas que se revezaram no poder, especialmente o do premiê Nouri al-Maliki.
Ao mesmo tempo, comandantes militares de Saddam Hussein e funcionários do Partido Baath, expulsos de seus cargos após a invasão, se aliaram ao EI.
Usar os dividendos das fontes energéticas para financiar atividades e impor regimes autoritários não é uma exclusividade do grupo.
EI | Crédito: AP
Usar os dividendos das fontes energéticas para financiar atividades e impor regimes 
autoritários não é uma exclusividade do EI
Peter Custers, autor do livro Questioning Globalized Militarism("Questionando o Militarismo Globalizado", em tradução livre do inglês), indica que muitos governos da região usam a renda proveniente do petróleo para comprar armamento pesado e armas dos Estados Unidos e Europa e poder, assim, reprimir seus povos.

Os circuitos e as ligações

Theodore Karasik, do Institute for Near East and Gulf Military Analysis (INEGMA) e Robin Mills, autor do livro The Myth of the Oil Crisis ("O Mito da Crise do Petróleo", em tradução livre do inglês), calculam que o EI ganhe U$ 1 milhão (R$ 2,3 milhões) por dia somente com a exploração do petróleo iraquiano.
Os especialistas argumentam que o valor poderia chegar, no entanto, a US$ 100 milhões (R$ 230 milhões) se somadas as rendas provenientes do comércio da matéria-prima no Iraque e na Síria.
Com visão de mercado, o EI vende o barril a US$ 30 no mercado negro – enquanto o preço internacional supera os US$ 100 – por meio de intermediários na Turquia e na Síria.
Mas o petróleo não é a única fonte de renda para EI.
No caso da Síria, um estudo do Centro de Análise do Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR na sigla em Inglês) indica que o EI e outros grupos armados estão instalando um sistema de impostos em áreas conquistadas ao mesmo tempo em que promovem atividades ilegais como roubo de reservas de dinheiro de bancos locais, contrabando de carros e armas, sequestros e bloqueios de estradas.
"Uma economia de guerra está tomando conta da Síria, em particular nas zonas controladas pela oposição, criando novas redes e atividades econômicas que alimentam a violência", diz o estudo.
A pesquisa afirma que o EI também apreendeu grandes quantidades de armas do Exército iraquiano e grupos armados sírios contra os quais luta.
Na Síria, o grupo chegou, inclusive, a desmantelar fábricas inteiras e vender as estruturas na Turquia.
Segundo Jihad Yazigi, autor do relatório para o ECFR, lideranças de grupos armados também estariam interessadas em prolongar o conflito para continuar a receber remessas internacionais de países aliados.
Essa 'economia de guerra', diz ele, cria incentivos para diferentes indivíduos e atores que não teriam interesse no fim do conflito.
Segundo os especialistas, esses novos agentes econômicos, que controlam fontes de energia, contrabando, roubo e venda de armas, sequestros e impostos especiais a minorias religiosas, operariam sem conexão com autoridades do governo.
Peshmerga | Crédito: AFP
Ocidente vem financiando os peshmerga - braço armado do governo curdo - para combater o EI no Iraque
Mas alguns outros mantêm laços com o poder institucionalizado, aponta o relatório do Conselho Europeu de Relações Exteriores. O resultado é uma desintegração do Estado a partir de sua base econômica.

Estados fracos e sectarismo

O apoio da Arábia Saudita e dos países do Golfo aos sunitas para combater xiitas e seus aliados está na raiz do sucesso econômico do EI e de outros grupos jihadistas, afirma o jornalista Patrick Cockburn e outros analistas.
Segundo eles, esses países já teriam canalizado centenas de milhões de dólares para insurgentes sunitas na Síria.
Como ocorreu no Afeganistão com o apoio que os insurgentes recebiam dos países ocidentais nos anos 80, o EI tem crescido através de uma combinação de fraqueza do Estado, do sectarismo por parte do Estado, e do apoio econômico e militar externo para a insurgência.
Para o regime do presidente sírio Bashar Assad, essa fragmentação da economia levará à perda de receita de que ele precisa para prestar serviços básicos e manter o apoio popular nas áreas que controla, pagar o Exército e começar a reconstruir a Síria.
No Iraque, o novo primeiro-ministro, Haidar Abadi, tem menos território e recursos energéticos para lançar uma política mais inclusiva.
Especialistas em terrorismo questionam se o EI pode instaurar um Estado e consolidar uma estrutura econômica.
Para Yezid Sayigh, do Carnegie Middle East Center, o EI só é forte onde tem apoio, o qual poderia diminuir dado à brutalidade das ações do grupo. A resistência dos curdos iraquianos e o que restou do Estado iraquiano, que é apoiado pelos Estados Unidos, pode freá-lo, mas não fazê-lo desaparecer.
Além disso, criar e manter uma economia estatal é complicado. Em muitos casos, a infraestrutura de exploração de petróleo e gás é antiga e necessita de uma renovação tecnológica difícil de ser obtida.
O Estado Islâmico e seu modelo de economia política, bem como o papel de atores externos, têm tornado a região ainda mais complicada.
(*) Mariano Aguirre é diretor do instituto Norwegian Peacebuidling Resource Centre (NOREF) www.peacebuilding.no

Bicicletada vai às ruas de Santa Cecília, em São Paulo, 'contra tudo e contra todos'

Bicicletada vai às ruas de Santa Cecília, em São Paulo, 'contra tudo e contra todos'


Entusiastas da bicicleta como alternativa de transporte urbano conquistaram ciclofaixas, mas ainda têm de convencer motoristas, sindicatos, igrejas, condomínios e pequenos comércios

Ativistas participam da bicicletada no centro de São Paulo
por Redação RBA publicado 26/08/2014
São Paulo – Cerca de 100 cicloativistas reuniram-se na noite desta segunda-feira (25) no Largo Santa Cecília, região central de São Paulo, para manifestar-se a favor das ciclofaixas instaladas pela gestão do prefeito Fernando Haddad (PT), além de cobrar maior integração e melhorias às estruturas existentes para o transporte por bicicleta. O grupo se mobilizou pelas redes sociais depois que comerciantes do bairro organizaram abaixo-assinado, acionaram a polícia e até buscaram o Ministério Público contra as ciclofaixas: o argumento deles é que as vias, que ocupam espaços anteriormente dedicados ao estacionamento de veículos, prejudicam os negócios.
"O bairro é pequeno e as coisas são muito próximas. Moro aqui há muitos anos e sempre usei a bicicleta para me locomover, inclusive para fazer compras por aqui. Não entendi a reação dos comerciantes, a não ser que a questão do estacionamento tenha pegado muito para eles", pondera a produtora cultural Mariane Bonardi.
O ato de ontem percorreu vias com e sem ciclofaixa pela região central nos entornos das avenidas São João e Rio Branco, até a rua Barra Funda, com parada na estação Marechal Deodoro da Linha 3-Vermelha do Metrô, de volta pela rua das Palmeiras até o Largo Santa Cecília. Com escolta de carros da Companhia de Engenharia de Tráfego, os ciclistas enfrentaram poucos problemas com o trânsito: apesar de alguns ensaios de "buzinaço" nos faróis de vias mais movimentadas – pelo cumprimento e velocidade reduzida, o comboio de bicicletas extravasava o tempo do sinal vermelho – não houve incidentes com ônibus e outros veículos grandes, adversários mais perigosos dos ciclistas nas ruas.
"Tenho feito de bicicleta o trajeto entre a Faria Lima e a avenida Sumaré, e na rua Teodoro Sampaio é muito perigoso. Tem pontos em que os ônibus passam a 5 centímetros de você", conta o estudante belga Michel Gaublomme, que chegou ao Brasil há duas semanas. "Acredito que o que falta em São Paulo são ciclovias com mais estrutura, isoladas em corredores, para você correr menos risco. O motorista brasileiro está menos acostumado, tem menos paciência. Na Europa, a diferença que vejo é que os ônibus e carros esperam atrás das bicicletas até que tenham espaço seguro para ultrapassar. Aqui, não", lembra.
Outras demandas de ciclistas, como a redução do limite de velocidade nas vias com ciclofaixas e a sua expansão para que elas estejam todas interligadas (ciclistas pedem 1,2 mil quilômetros de vias, contra os 400 quilômetros planejados por Haddad até 2016), também foram defendidas durante o ato. Ao longo do percurso, problemas como falta de sinalização e a má qualidade do asfalto sob as ciclovias, que foram pintadas sobre as faixas à direita das ruas, normalmente utilizados por veículos pesados, também ficaram claros.
"Todos podemos mudar nossos hábitos, inclusive de consumo", defende o técnico de informática Roberson Miguel. "Não queremos entrar em conflito com os comerciantes nem com os motoristas, apenas mostrar que não há necessidade de usar tanto assim o carro. Desde que vendi meu carro e o troquei pela bicicleta, tenho inclusive mais dinheiro para gastar", completa. Ele defende que os ciclistas sigam aderindo aos protestos de rua e às lutas trabalhistas dos motoristas de ônibus, a exemplo do que ocorreu em torno do Movimento Passe Livre (MPL) em junho de 2013. "Aquele momento foi importante para que vários defensores do transporte público se unissem. No caso dos motoristas de ônibus, por exemplo, entendo por que eles veem a bicicleta como um obstáculo. As empresas cobram deles um tempo entre um ponto final e outro impraticável", afirma.
A variedade de "adversários" que é necessário convencer, porém, é grande. Na região de Santa Cecília, por exemplo, os comerciantes estão aliados a pelo menos um sindicato (o dos trabalhadores em processamento de dados e tecnologia da informação), ao lado do Metrô Marechal, e à Igreja do Evangelho Quadrangular. O primeiro perdeu cerca de 10 vagas de estacionamento em frente a sede e o templo, outras seis.
"Na igreja, são duas mil assinaturas que eles recolhem contra as ciclofaixas por culto, de gente que não mora aqui. Pedimos, inclusive, que o Ministério Público checasse os endereços de quem está no abaixo-assinado por conta disso", conta a ativista Anabella Andrade. No caso dela, o enfrentamento está até dentro de casa: no condomínio onde ela vive, na alameda Eduardo Prado, uma associação de moradores tenta convencer a síndica a instalar um bicicletário no prédio, sem sucesso. No espaço que seria destinado às bicicletas no estacionamento subterrâneo, o prédio construiu um "refeitório" para os funcionários, que comem e descansam entre os carros que entram e saem. "É uma situação insalubre e ilegal, que o condomínio mantém por ser antiquado", lamenta Anabella.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Mobilidade urbana: como sair da inércia?

Mobilidade urbana: como sair da inércia?



Facilitar a movimentação dos cidadãos, aí incluídos os sistemas de transporte, não requer apenas uma escolha entre opções tecnológicas. Trata-se de uma questão essencialmente política, defende artigo da CH.


Por: Luiz Flavio Autran Monteiro Gomes
Publicado em 19/08/2014 

Mobilidade urbana: como sair da inércia?
O deslocamento nas cidades não deve depender da modalidade de transporte (seja público ou privado), nem de eventuais limitações físicas do indivíduo. (foto: Otávio Nogueira/ Flickr – CC BY 2.0)
Entende-se geralmente por mobilidade urbana a possibilidade de deslocar-se facilmente para fins de lazer, trabalho, estudo, prática de exercícios físicos etc. Essa facilidade de deslocamento não deve depender da modalidade de transporte (seja público ou privado), nem de eventuais limitações físicas do indivíduo. É naturalmente desejável que essa movimentação, no interior das cidades, ocorra com segurança, conforto e higiene, e que os preços sejam acessíveis aos cidadãos.
A mobilidade urbana, assim conceituada, resulta de três processos, os quais implicam ações de curto, médio e longo prazos: o planejamento dos transportes (o que inclui veículos, redes viárias, infraestrutura de apoio e integração, serviços de transporte público), o planejamento urbano e regional (o uso do solo) e a gestão das áreas metropolitanas. 
Essas três linhas de ação, segundo o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-Habitat), interagem umas com as outras e são, na verdade, conjuntos de elementos – de natureza física, econômica, social, política e institucional – interligados.
No caso dos transportes, três fatores principais são levados em conta quando se busca garantir a mobilidade nas cidades: a demanda, a oferta e o desempenho dos sistemas. Fala-se em sistemas porque não se pode pensar em elementos isolados, como avenidas, ruas, viadutos etc. O sistema de transportes deve necessariamente ser visto como um conjunto de elementos interdependentes. Assim, a mobilidade urbana e, por extensão, a qualidade do sistema de transporte nas cidades, reflete um equilíbrio dinâmico entre aqueles três fatores.
Esse equilíbrio é a meta essencial do processo de planejamento dos transportes, que inclui as seguintes fases: 
1) monitoramento das atuais condições de transporte e uso do solo; 
2) projeção da população, do nível de emprego e das tendências de uso do solo; 
3) identificação de problemas de transporte (atuais e futuros) e das necessidades de estudos de circulação detalhados; 
4) desenvolvimento de planos de longo prazo e de programas de curto prazo, que implicarão investimentos de capital e ações operacionais; 
5) estimativas dos impactos de melhoramentos no sistema de transporte atual (envolvendo custos, meio ambiente, facilidade de acesso ao trabalho e aos serviços urbanos, além de outros aspectos); 
6) avaliações desses melhoramentos (com base em múltiplos critérios, quantitativos e qualitativos, e sob os pontos de vista ambiental, econômico, financeiro, social e outros); e 
7) geração de projetos que visem melhorar de modo substancial a mobilidade urbana.
Conduzido por uma organização de âmbito metropolitano, esse processo é contínuo e passa por realimentações. Dele devem participar engenheiros, urbanistas, economistas, geógrafos, estatísticos e, sobretudo, representantes da população que usam o transporte urbano – de péssima qualidade no Brasil. Sem o envolvimento real dessa população, o planejamento de transportes nas cidades não passa de exercício tecnocrático sem grande expressão.
Trem
O sistema de transportes deve necessariamente ser visto como um conjunto de elementos interdependentes para tentar garantir a mobilidade nas cidades. (foto: Thiago Fernandes Marinho/ Flickr – CC BY-NC 2.0)
Existem, porém, duas formas distintas de pensar a mobilidade urbana. A mais tradicional associa a questão essencialmente ao deslocamento físico e à facilidade de acesso a distintos destinos de viagens. A nova forma, no entanto, enfoca a crescente valorização do pedestre e das interações humanas e sociais. Por essa segunda visão, a identificação do cidadão com a cidade torna-se muito mais importante do que a velocidade em que este se desloca.
Esse novo conceito torna a cidade mais agradável ao ser humano: é a cidade relativamente vagarosa, arborizada, com redes de utilidade pública quase invisíveis (pois passam a ser enterradas), onde o deslocamento de pedestres e de bicicletas tem claro privilégio sobre o de veículos (e, por isso, com melhor qualidade do ar), sem a poluição visual de cartazes ou painéis de propaganda, e onde o adensamento é maior, com as pessoas habitando mais perto de seus locais de trabalho. Esta é, em última análise, a mobilidade urbana que se quer, voltada para uma cidade sustentável. 

Situação no Brasil 

Enquanto no início do século 20 cerca de 10% da população brasileira vivia em áreas urbanas, ao final desse período o percentual aumentou para 50%. Estima-se que, por volta de 2030, as cidades concentrarão 90% da população nacional. As maiores cidades do país têm sido vítimas de um crescimento quase totalmente desordenado, que segue, muitas vezes, a lógica da expansão capitalista, sem um planejamento contínuo de longo prazo e sem qualquer comprometimento com a continuidade na gestão urbana.
Experimenta-se, então, ausência de eficácia (fazer o que é preciso) e eficiência (fazer bem feito) na gestão urbana. Não existe um planejamento que de fato integre os transportes ao uso do solo, com destaque para a habitação – uma imensa carência da população das cidades brasileiras. A falta dessa integração e de planos de longo prazo tem feito com que nossas metrópoles sejam dispersas, desordenadas e congestionadas.
Hoje, a baixíssima qualidade da mobilidade observada na maior parte de nossas cidades tem repercussões sobre a produtividade média dos trabalhadores. Por outro lado, a recente política econômica, ao aumentar as facilidades para a compra de automóveis, só piorou a situação dos deslocamentos urbanos em todo o país. Essa decisão, acirrada pela crescente decadência do transporte público, faz com que, na maioria das cidades brasileiras, a lógica do transporte particular predomine sobre a do transporte público. Com isso, problemas de mobilidade afetam hoje não apenas as cidades grandes, mas também as de porte médio e pequeno.
A perda de qualidade da mobilidade nas principais cidades brasileiras se reflete nas manifestações de rua que vêm ocorrendo desde o ano passado. No país, atualmente, o deslocamento urbano é uma questão fundamentalmente política e, como tal, exige muito mais que soluções tecnológicas, embaladas em um discurso tecnocrata, de pretenso impacto nos meios de comunicação. A solução do problema exige, além de vontade política, um pacto amplo que envolva o setor público, os usuários das diferentes redes de transporte urbano e o setor empresarial que oferece tais serviços. Essas redes incluem as vias urbanas (e o suporte à sua operação), todos os serviços de transporte público urbano (e seu suporte), os estacionamentos, as ciclovias, os pontos de transbordo etc.

Você leu apenas o início do artigo publicado na CH 317. Clique aqui para acessar uma versão parcial da revista e ler o texto completo.

Texto e discurso - Em sua coluna de agosto, o linguista Sírio Possenti lembra que muita gente, ao escrever ou falar, pensa que apenas se refere a coisas, conceitos ou pessoas, esquecendo que a escolha das palavras pode revelar uma opção ideológica.

Texto e discurso



Em sua coluna de agosto, o linguista Sírio Possenti lembra que muita gente, ao escrever ou falar, pensa que apenas se refere a coisas, conceitos ou pessoas, esquecendo que a escolha das palavras pode revelar uma opção ideológica.

Por: Sírio Possenti
Publicado em 22/08/2014 | Atualizado em 22/08/2014
Texto e discurso
Bandeira palestina em ato de apoio na Central do Brasil (RJ) às vítimas dos ataques de Israel à Faixa de Gaza. Na mídia, os combatentes israelenses costumam ser chamados de ‘soldados’ e os do Hamas, de ‘radicais’. (foto: Flickr/ Mídia Ninja/ CC BY-NC-SA)
Suponhamos (não invento!) que se assiste a um jornal na tevê e o apresentador dá as últimas informações sobre o conflito entre Israel e a Faixa de Gaza. Como se ele falasse de Marte, o texto é (menciono só o essencial, o que, na verdade, se repete dia após dia): “Os soldados israelenses atacaram... e destruíram X túneis”. “Os radicais (ouextremistas) do Hamas revidaram...”.
A notícia pode ser invertida: “Os radicais atacaram e os soldados revidaram”. O que importa é que as palavras que designam cada grupo são proferidas como se fossem a simples designação indiscutível de uma coisa (assim como se chamam os túneis de ‘túneis’, digamos): soldados e extremistas. 
Acontece que falta simetria nessa fala: se, de um lado, há soldados, do outro também os há (no mínimo, são combatentes). Mas o jornal faz de conta que, de um lado, estão soldados e, do outro, radicais ou extremistas. 
Alguém poderia propor uma fala neutra, que os nomearia simetricamente: de um lado, Israel; de outro, a Faixa de Gaza. De um lado, o exército; do outro, também. Ou, de um lado, radicais; e do outro, também. Por que, afinal, o que é um radical
Acontece que isso não se dá nos discursos reais. Os dicionários podem dar a definição que lhes aprouver, podem ser até heterogêneos e contemplar diversas definições. Mas, num jornal, radical é sempre o outro. 


Função textual da linguagem

Eventualmente, palavras entram numa sequência de frases para fazer um texto, como nesta notícia antiga:
“Acaba de chegar ao Brasil um medicamento contra a rinite. O antiinflamatório em spray (...) diminui sintomas como nariz tampado e coriza. Diferente de outros medicamentos, é aplicado uma vez por dia, e em doses pequenas. Estudos realizados pela (...), laboratório responsável pelo remédio, mostram que ele não apresenta efeitos colaterais, comuns em outros medicamentos, como o sangramento nasal. ‘O produto é indicado para adultos e crianças maiores de 12 anos, mas estuda-se a possibilidade de ele ser usado em crianças pequenas’, diz o alergista (...), de S. Paulo”.  
Os termos ‘medicamento’, ‘antiinflamatório’, ‘remédio’ e ‘produto’ são espécies de sinônimos. ‘O antiinflamatório’, na segunda frase, retoma ‘um medicamento’, da primeira. É um exemplo de coesão, cuja matéria-prima é um nome precedido de artigo definido.
Esse tipo de procedimento serve para fazer textos (é a função textual da linguagem, segundo o linguista britânico Michael Halliday). O que quer dizer que existem palavras cuja função básica é organizar sequências para criar uma unidade de sentido, o texto. 
Acontece que não se trata apenas de texto, de uma questão ‘cognitiva’ ou de domínio dos gêneros. A ideologia comparece inevitavelmente nos textos e, concedamos, às vezes nem o autor se dá conta disso. Sua ideologia é tão decisiva que ele pode pensar que está falando do mundo tal como ele é. Não se dá conta de que o mundo dele não é o de todos.
No caso, embora as quatro palavras mencionadas não sejam sinônimas (na verdade, a relação entre elas é de categorias mais amplas com categorias menos amplas ou o inverso (medicamento é um tipo de produto etc.). Aceitemos que, em casos assim, não se revela uma ideologia explícita. 
No entanto, se alguém escrever (ou disser): “O Hamas... Este grupo extremista / radical / terrorista”, a ideologia está exposta à luz do dia.

Guerra de palavras

A propósito do conflito, que ainda não acabou (aliás, uma amiga perguntou: “É um conflito ou uma guerra?”, distinção relevante, porque há ‘crimes de guerra’, definidos em tratados internacionais, mas não ‘crimes de conflito’ com estatuto similar), as discussões que a mídia veiculou são interessantes. Ao lado da terrível guerra (vou chamar assim), que matou muita gente, houve uma guerra de palavras, ora mais, ora menos declarada. 
O exemplo do começo da coluna parece guerra de guerrilha: a pessoa faz de conta que não quer nada com nada, apenas quer contar os fatos, mas os conta de forma tal que ‘mata gente’ de um lado e não do outro.
Palavras no muro
Algumas palavras têm a função de organizar sequências para criar uma unidade de sentido, o texto. Mas a ideologia está inevitavelmente presente nele, e seu autor às vezes não se dá conta disso. (foto: Flickr/ Marta Vieira Pereira – CC BY-NC-ND 2.0)
Mas houve também guerras explícitas, como, por exemplo, entre quem defendeu que ‘antissionismo’ e ‘antissemitismo’ são a mesma coisa e quem discordou dessa equivalência (explicando simplificadamente: para alguns, combater a atual política de Estado de Israel implica antissemitismo, uma atitude de tipo racista; para outros, significa apenas combater a atual política de Estado de Israel, que pode mudar etc.).
Em outros momentos, e a propósito de temas completamente diferentes, a mesma guerra de palavras já deu as caras. Uma pessoa escreve um texto ‘pensando’ apenas em referir-se a coisas, conceitos ou pessoas, mas outros veem na escolha das palavras uma opção ideológica.
Há não muito tempo, um colunista escreveu sobre ‘homossexualismo’ e recebeu críticas, porque esse termo implicaria preconceito; o termo correto deveria ser ‘homossexualidade’. 
De novo: pode parecer apenas uma guerra de palavras, e, às vezes, é mesmo. Mas isso não significa que seja uma guerra menos mortal, ou grave, ou agressiva. Quem diz que se trata apenas de questão semântica não tem ideia do que isso significa.  


Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas

domingo, 24 de agosto de 2014

ELES ESTÃO COMPRANDO CARROS!

ELES ESTÃO COMPRANDO CARROS!



Meu amigo, eles estão comprando carros, eu confesso que contava os dias para ver isso, mas quando isso aconteceu eu ainda consegui ficar surpreso, todos os cumprimentavam e diziam coisas como: “parabéns, você fez uma boa aquisição”, “agora você vai ter mais comodidade”, “vai poder até acordar mais tarde”, “não vai mais precisar andar de ônibus”, dentre outras coisas argumentadas por aqueles que passam suas vidas seduzidas pelo carro, pelo status que isso representa... e eu? Fiquei perplexo diante disso, não estou aqui para questionar quem quer que seja e nem argumentar sobre o que devem ou não consumir, mas eles vieram da Ilha e vieram para quê? Primeiro, com parte do fruto do seu trabalho devolverão para o Estado a educação de qualidade que receberam gratuitamente; segundo, terão a oportunidade de conhecer novos países e novas culturas; terceiro, o grau destas experiências poderão fazer deles profissionais mais experientes; (não cabe aqui explanar as razões utilizadas pelos vários países que se abrem para a entrada destes profissionais); mas não receberam tudo o que fez deles, para serem seduzidos tão facilmente pelo consumo gerado do capital. Nós estamos transformando-os, fazemos eles cumprirem horários que não existem, terem folgas que não foram conquistadas e agora para completar as transformações também serão carrocratas, serão agora, eles também, personagens da “ditadura do carro”, buscarão incessantemente a felicidade promovida pelo capital, que é saciada temporariamente cada vez que se consome.
Meu amigo e no dia que voltarem, como será? E quando outros para cá vierem, também irão comprar carros...??



Prof. Marcos Geo

Os curdos formam uma frente antijihadista

Os curdos formam uma frente antijihadista


Combatentes de três países se aliam contra o Estado Islâmico no norte do Iraque


Mulheres buscam água no norte do Iraque. / STR (EFE)
Nem a aviação americana, nem as forças de defesa do Curdistão iraquiano. Quem salvou Yassem e sua família, assim como milhares de outros yazidis bloqueados pela ofensiva do grupo extremista Estado Islâmico (EI) na montanha de Sinjar no início deste mês, foi uma milícia curda da Síria, o Partido da União Democrática (PYD). Mais ao sul, a ajuda do Partido dos Trabalhadores de Curdistão (o PKK, que atua na Turquia) foi decisiva para libertar Majmur. Pela primeira vez, combatentes curdos do Iraque, Turquia e Síria uniram suas forças para lutar contra um inimigo comum.
“Os peshmergas se foram”, afirma Yassem, em referência às forças da região autônoma iraquiana. Esse homem, cujo irmão morreu tentando defender seu povo dos jihadistas, conta que, como não puderam resistir, eles fugiram para as montanhas de Sinjar, onde ficaram bloqueados durante dias praticamente sem comida nem água. “Foi o PYD que nos abriu o caminho, trouxe alimentos e pôs caminhões para nos retirar de lá”, sublinha. É um relato repetido pela maioria dos deslocados que chegaram à localidade de Zajo, no norte do Iraque, nas últimas duas semanas.
Os curdos das Unidades de Defesa Popular (YPG) conseguiram controlar uma zona do nordeste da Síria, fronteiriça com Iraque e Turquia, mantendo os jihadistas afastados. Agora, os homens dessa milícia cruzaram a fronteira com o Iraque e garantiram a segurança de uma estrada montanhosa para permitir a saída das pessoas bloqueadas em Sinjar. Mas, diferentemente da ação humanitária dessa milícia, a intervenção do PKK foi mais problemática.
Para começar, a guerrilha do PKK, que há três décadas luta contra o Estado turco, está na lista dos EUA e da União Europeia de organizações terroristas. Não há registro de que os assessores americanos e os guerrilheiros tenham tido algum contato. Ainda assim, sua intervenção não passou despercebida para os norte-americanos. Várias testemunhas afirmam ter visto esses milicianos em Erbil na primeira semana deste mês, quando o avanço do Estado Islâmico surpreendeu o Governo regional curdo iraquiano.
Por outro lado, a participação do PKK incomodou, sem dúvida, veteranos peshmergas. A aparente facilidade com que os jihadistas forçaram a retirada dessa força curda iraquiana quebrou o mito de sua invencibilidade. Além disso, o PKK disputa historicamente com o Partido Democrático do Curdistão (PDK, a principal força política na região autônoma) a liderança dos curdos – entre 30 milhões e 35 milhões – espalhados pela Turquia, Iraque, Irã e Síria.
“Em Majmur, as forças do PKK tem um acampamento faz tempo e, quando o EI atacou, participaram da defesa e recuperação da zona”, explicou o ministro da Defesa curdo iraquiano, Mustafá Said Qadir, ao ser indagado sobre a ajuda prestada pelo grupo.
A existência desse acampamento não era nenhum segredo. Mas, depois da retomada de Majmur, o presidente da região autônoma e líder do PDK, Massud Barzani, fez uma visita ao local. Foi a primeira vez que Barzani se reuniu em público com membros do PKK. A imprensa local, que até então evitava o assunto, divulgou o apoio desses milicianos, assim como de vários grupos do “Curdistão oriental”, em referência à zona curda do Irã.
Dez mil refugiados curdos que fugiam da perseguição turca foram instalados pelo Saddam Hussein nos arredores de Majmur em 1998. Qualquer um que reparasse ao passar pelo cemitério podia ver a bandeira do PKK e os cartazes com a imagem de seu líder, Abdullah Ocalan, que foi capturado em 1999 e cumpre prisão perpétua numa ilha do mar de Mármara. Quando os curdos iraquianos recuperaram aquela área em 2003, respeitaram o assentamento, que na ocasião já contava com escola, mesquita e ambulatório. Não está claro quantos dos adultos estavam armados e que grau de liberdade de movimento tinham.
“Sua ajuda foi crucial. Os homens do PKK são muito bons contra os jihadistas, porque têm experiência de combate nas montanhas”, admite Mohamed Maruf, um jovem peshmerga que participou da libertação dessa cidade, onde ocorreram alguns dos combates mais violentos até a recuperação da represa de Mossul.
Apesar do interesse provocado por sua entrada em cena, os membros do PKK mantêm a reserva em seu refúgio iraquiano. Às portas do acampamento, dois velhos milicianos, vestidos com as típicas bombachas curdas e distintivos com a imagem de Ocalan, negam-se a levantar a barreira.
“Aqui não há ninguém com quem possa falar, por isso é melhor ir embora por onde veio”, respondem com brutalidade. Sabem que sua presença na área é um exercício de equilíbrio político. Não só a visão tradicional de Barzani se choca com o marxismo ideológico do PKK, como também seus interesses ficam cada vez mais incompatíveis a cada dia que passa. Para o presidente curdo, a Turquia se converteu em um grande aliado e um dos principais investidores na região autônoma.
Já o PKK, embora tenha renunciado à aspiração de um Estado independente no sudeste turco, continua vendo o Governo de Ancara com desconfiança. No ano passado, os dois lados anunciaram um cessar-fogo, mas ainda não ocorreu o desarmamento.
Agora, os líderes do Partido dos Trabalhadores do Curdistão estão fazendo gestões para que os EUA e a UE recompensem sua contribuição para frear o Estado Islâmico retirando o nome do PKK da lista de organizações terroristas, como confirma um diplomático iraquiano. O PKK nunca lançou ataques contra objetivos norte-americanos. Sua inclusão na lista de grupos terroristas foi feita a pedido da Turquia, que integra a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Por enquanto, as autoridades turcas, talvez escaldadas por seu envolvimento inicial na crise síria, preferem guardar silêncio.

Multipolar, contraditória e beligerante

Multipolar, contraditória e beligerante



Assim se constitui a nova ordem mundial, descreve o cientista político José Luís Fiori. E o Brasil nesta história? Terá muitos desafios

por Sergio Lirio — publicado 21/08/2014
Bush
O "Grande Oriente Médio" foi outra ideia desastrosa de Bush pai

Um mundo multipolar será necessariamente um ambiente conflituoso, afirma o cientista político José Luís Fiori. Enquanto os Estados Unidos tentam exercer seu poder de forma mais indireta, as potências regionais buscam firmar sua influência e, em último grau, se unem em estratégias comuns contra o império. Dessa contradição nascem as possibilidades de conflito. “O sistema interestatal capitalista se estabiliza por meio de sua própria expansão contínua e, portanto, em última instância, através das guerras”, afirma. Na entrevista a seguir, o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o mais arguto analista de relações internacionais do País, analisa as mudanças globais e o papel do Brasil na nova ordem.
CartaCapital: O Brasil tem atuado, por meio de grupos como o G-20 e o BRICS, de forma a fazer a governança global mais democrática. Quais são os limites dessa iniciativa? E como avaliar seu poder real frente ao grupo do G7?
José Luís Fiori: O G20 e o BRICS são dois grupos ou organismos internacionais absolutamente diferentes, pela sua origem, natureza e significado dentro do sistema internacional. Considero que eles não têm a ver com democracia. O G20 nasceu em 1999, à sombra das crises financeiras da década de 90 e adquiriu um significado emergencial com a crise de 2008/09, envolvendo a participação de chefes de Estado, ministros da Fazenda e presidentes de bancos centrais de 19 países e mais a representação da União Europeia. Sua importância naquele momento deveu-se muito à gravidade da crise, e ao forte apoio inicial dos EUA. Mas esses dois fatores perderam força depois que o Congresso norte-americano bloqueou a reforma da estrutura de tomada de decisões do FMI, decidida pelo G20 em Seul, em 2010. Depois disso, o G20 foi esvaziado progressivamente e hoje está transformado num fórum informal de debate e consultas, sem nenhuma capacidade de decisão importante, e sem nenhum instrumento concreto de ação. Foi uma resposta emergencial à crise e serviu como âncora na hora do naufrágio, mas está fadado a ser mais uma instância mundial de troca anual de ideias inúteis, em geral bem intencionadas. Por outro lado, o grupo do BRICS, como sabemos, nasceu de forma inteiramente diferente, quase acidental, mas foi adquirindo progressivamente uma dimensão cada vez mais interessante, por sua própria conta, e também por conta de outras transformações paralelas do panorama geopolítico mundial. Essas mudanças deram um destaque cada vez mais importante ao grupo. Ainda é um clube informal, mas reúne quatro das sete maiores economias do mundo, com cerca de 50% da população e 26% da massa do planeta, além de já produzir atualmente 25% do PIB mundial. Para além do campo econômico, o BRICS tem aparecido cada vez mais como o único polo real e alternativo de poder no mundo frente ao G7, cada vez mais parecido a um grupo de amigos íntimos incondicionais dos EUA. Efetivamente, não há mais como explicar a presença de países como a Itália ou o Canadá neste verdadeiro “comité central” das antigas potências do mundo euro-americano. O avanço do BRICS aponta para um processo longo e talvez para um exercício mais equilibrado e oligárquico do poder global, mas com certeza isto não tem nada a ver com democracia.
CC: É possível manter essa iniciativa sem incomodar os Estados Unidos? Como atuar para diluir o poder de influência norte-americano?
JLF: Não, não é possível. Neste ponto o sistema interestatal e capitalista criado, difundido e liderado pelos europeus e pelos EUA nos últimos quatro séculos, não deixa nenhuma dúvida nem alternativa. Neste sistema, quem não sobe, cai, e quem está em cima bloqueia de todas maneiras possíveis a tentativa de subir dos novos pretendentes que se propõem a alcançar a condição de potencias regionais ou globais. É o que se vê hoje, por exemplo, com relação à reivindicação dos chamados “emergentes” a respeito do acesso e participação nas decisões do FMI e do Banco Mundial. Ou de forma mais crua e dura, com relação ao esforço norte-americano de contenção da expansão política da China, da Alemanha, do Irã ou mesmo da Rússia. Neste sentido, o Brasil também não tem como escapar a esta regra geral na medida em que suas iniciativas internacionais o afastem do seu antigo alinhamento incondicional ao lado das potências anglo-saxônicas, e dos EUA, em particular. Sua crescente projeção econômica e politica regional dentro da América do Sul não tem como não preocupar os EUA, que sempre foram a potência líder inquestionável de todo o chamado “hemisfério ocidental”. Mas isto não significa de maneira alguma que o Brasil tenha de confrontar os EUA, porque já hoje o Brasil faz parte de um pequeno grupo de potências que podem - e devem - fazer alianças de todo tipo e com todo e qualquer país, dependendo apenas dos seus objetivos políticos e institucionais, dos seus valores éticos e dos seus interesses econômicos.
CC: Que papel o Brasil viria a desempenhar em uma nova ordem?
JLF: No século XX, o Brasil deu um salto gigantesco. No início daquele século, era apenas um país agrário, com um Estado fraco, fragmentado, e um poder econômico e militar muito inferior ao da Argentina. Neste início do século XXI, é a sétima maior economia do mundo, a maior da América Latina e tem um potencial de crescimento sem paralelo no continente. Na primeira década deste novo século, deu passos importantes para assumir sua liderança sul-americana e projetar sua influência para fora do seu próprio continente, sobretudo na África e nos países chamados de “emergentes”. Mas esse caminho de expansão e projeção da presença e da liderança brasileira no mundo, ética, política e econômica, não será fácil, pelas dificuldades próprias de uma época de grande turbulência e transformação mundial, e pela oposição permanente e poderosa de um segmento da elite intelectual e de muitos grupos de interesse internos que se opõem à estratégia de autonomização internacional do Brasil. Esses grupos se utilizam, em geral, de uma ideologia globalizante e cosmopolita, mas de fato defendem uma volta atrás e um alinhamento econômico e político mais estreito com os EUA, e mais subordinado à estratégia de poder global das potências anglo-saxônicas. Uma volta atrás que hoje teria um imenso custo para o Brasil e sua imagem internacional.
CC: Há décadas o Brasil fala sobre a reforma do Conselho de Segurança da ONU e sua possível entrada. Esta ainda é uma pauta factível? O País não deveria buscar outras alternativas, como atuar de forma intensa em missões da ONU?
JLF: Acho que o Brasil não precisa mudar sua pauta, desde que tenha claro que se trata de uma bandeira de mobilização internacional talvez útil para criar alianças e avançar negociações, mas que não há nenhuma possibilidade de conquistar esta cadeira permanente no Conselho de Segurança, a menos de uma situação emergencial de ruptura internacional, e mesmo que o Brasil se alinhe de forma incondicional ao lado dos EUA dentro do Conselho. O resto faz parte de uma encenação internacional importante como afirmação da vontade brasileira de ascender na ordem hierárquica internacional, sabendo que ninguém lhe dará passagem gratuitamente, nem mesmo seus sócios do BRICS ou da Unasul.
CC: Nessa iniciativa de reformar a governança global, a Unasul ainda parece ter um papel pouco importante. O senhor acha que a Unasul deveria ter um papel mais ativo?
JLF: Como lhe disse, não acredito que esteja em curso qualquer processo de “reforma” da governança mundial. O que está em curso é uma disputa cada vez mais intensa, em todos os tabuleiros regionais do mundo, pela hegemonia e pela liderança política econômica e militar dentro de cada uma destas regiões, envolvendo sempre os EUA, porque é a única potência global existente no mundo neste momento. Dentro do sistema mundial em que vivemos as “reformas” são sempre o produto final de longos conflitos que em geral passam em algum momento por alguma guerra que acaba desequilibrando o jogo e obrigando uma mudança nas instituições e regras de governança mundial. Neste sistema ninguém abre mão de nada gratuitamente. Neste contexto, a criação da Unasul foi um passo muito importante de construção e afirmação da liderança brasileira do processo de integração da América do Sul. Todos estes processos são muito longos e demandam enorme tenacidade, e não será diferente no caso da Unasul. Não depende apenas dela ter um papel mais ou menos importante no mundo. Depende de sua capacidade de superar suas divisões e lutas internas e de sua capacidade coletiva de aproveitar as brechas criadas pelo terremoto geopolítico e geoeconômico que está em pleno curso dentro do sistema interestatal capitalista.
CC: Como o senhor imagina o balanço das forças no mundo multipolar que aparentemente se desenha? Como se configuraria o planeta sem um império único?
JLF: Nos últimos anos, os Estados Unidos tentam construir uma nova estratégia internacional em todos os grandes “tabuleiros geopolíticos” do sistema mundial. Seu objetivo não é o de abandonar sua posição imperial, ou seu poder global. É exercê-lo de forma mais indireta por meio da promoção ativa das divisões e dos “equilíbrios de poder” regionais, segundo o modelo clássico da administração imperial da Grã-Bretanha durante o século XIX. Mesmo se os EUA tiverem sucesso nesse intento de “terceirização” de poder, isso não impedirá a existência e a multiplicação de guerras e conflitos localizados, a envolvê-los em última instância, pois as demais potências regionais e/ou “emergentes” deverão seguir no trabalho de construir blocos e coalizões capazes de resistir, equilibrar e algum dia superar o poder local dos EUA, e quem sabe, mais à frente, desafiar a própria hegemonia global norte-americana.
CC: Essa mudança está em curso?
JLF: Do meu ponto de vista é o jogo jogado em todo o mundo: de um lado, os EUA a se distanciar, interessados mais no papel de interventores de última instância, e, de outro, as demais potências regionais na tentativa de escapar do “cerco americano” por meio de coalizões de poder que neutralizem o divisionismo estimulado por Washington. Em particular, a China faz um movimento explícito e militarizado de afirmação do seu poder e de disputa da supremacia no mar do Sul do Pacífico e em todo o Leste Asiático. Além de tomar posições cada vez mais nítidas e expansivas na África e na América Latina. O mesmo faz a Rússia na Europa Central e em toda a Eurásia. A Alemanha, na Europa Ocidental e também na Europa Central. A Índia, no sul da Ásia. O Irã, no Oriente Médio. O Brasil, na América do Sul. E em menor escala, a África do Sul e a Indonésia em suas zonas imediatas de influência. A própria expansão do poder americano fortalece a maior parte das potências que deverão competir com os EUA nas próximas décadas pelas hegemonias regionais do mundo.
CC: É um movimento contraditório.
JLF: Sim. E é preciso compreendê-lo. A expansão constante da potência hegemônica fortalece continuamente seus futuros adversários, ao mesmo tempo que desestabiliza o próprio sistema. Não há como desmontar essa armadilha, pois a competição generalizada cria a energia responsável pelo movimento contínuo de expansão do sistema mundial. Por isso também, no horizonte desse sistema, não há nenhuma possibilidade de paz ou estabilidade perpétua. O sistema interestatal capitalista se estabiliza por meio de sua própria expansão contínua e, portanto, em última instância, através das guerras.  E se o sistema parasse de se expandir, tampouco haveria paz perpétua. Haveria entropia e desordem, pois sua ordem nasce do seu movimento.
CC: Vladimir Putin tenta recuperar a influência, ainda que limitada, da Rússia no cenário internacional. Até onde ele pode chegar?
JLF: A Rússia já foi atacada, invadida e destruída várias vezes ao longo de sua história milenar, mas sempre voltou a se levantar, se reconstruir e reocupar uma posição de destaque entre os grandes poderes mundiais. A partir de 1991, parecia impossível que isso voltasse a acontecer, depois da derrota soviética e da destruição liberal da economia russa. Vinte e três anos depois, a Rússia está de novo de pé e volta a preocupar o “mundo ocidental”. Logo depois da Segunda Guerra Mundial, Hans Joachim Morgenthau, o pai da teoria política internacional realista, norte-americana, formulou a tese de que a causa das guerras tem a ver com a vontade dos derrotados de recuperar sua posição anterior à derrota, para retomar seu lugar na hierarquia do poder mundial.
CC: Seria essa a situação da Rússia?
JFL: Desde Alexandre I, que governou de 1825 a 1855, a Rússia já perdeu perto de um quinto do seu território e quase metade de sua população, e deverá tentar de todas as maneiras recuperar esses territórios ocupados, em muitos casos, pelas forças da Otan. A Rússia atual não tem mais a força e a projeção ideológica global da União Soviética, e só se propõe a ser uma grande potência eurasiana. Mas não se deve esquecer que, mesmo retaliada e diminuída, a Rússia atual segue sendo o maior Estado territorial do planeta, dona da maior reserva energética e do segundo arsenal atômico do mundo. E é o único país europeu com capacidade real de intervenção estratégica e de disputa hegemônica em todo o continente eurasiano. Foi isso que percebeu o grande geopolítico inglês Halford John Mackinder, ao propor, no início do século XX, e antes do nascimento da União Soviética, a necessidade de cercar e conter a Rússia de forma permanente. No século XX, a necessidade de “conter o comunismo” caiu como luva para a estratégia geopolítica de longo prazo dos países de língua inglesa, a mesma nesta segunda década do século XXI.
CC: A crise na União Europeia se atenuou um pouco, mas o desemprego continua altíssimo e não há sinais de uma recuperação mais vigorosa. O senhor considera que a ideia da União Europeia ainda continua sob risco?
JLF: Independentemente das flutuações da crise econômica conjuntural, o verdadeiro problema de longo prazo da União Europeia é que ela tem uma “falha de origem” e é prisioneira, há muito tempo, de uma armadilha circular. Ela precisaria de um poder centralizado para poder se transformar numa verdadeira unidade politica e econômica capaz de hierarquizar seus próprios objetivos de curto e longo prazo. Mas ela não tem nem terá jamais este poder centralizado enquanto seus principais Estados nacionais seguirem bloqueando este processo de centralização. Porque, no fundo, a Europa sempre esteve dividida e está cada vez mais dividida, entre os projetos estratégicos de seus três principais sócios, a França, a Alemanha e a Inglaterra. E este quadro piorou depois do fim da Guerra Fria, quando a Alemanha se transformou na maior potência demográfica e econômica do continente, e passou a ter uma política externa independente, centrada nos seus próprios interesses nacionais, que incluem o fortalecimento dos seus laços econômicos e financeiros com a Europa Central, e com a Rússia. Este comportamento alemão acentuou o declínio da França, que tem cada vez menos importância internacional, e favoreceu o fortalecimento do “euroceticismo” britânico, reacendendo a competição e a luta hegemônica dentro da União Europeia, e trazendo de volta as suas velhas fraturas e divisões seculares.
CC: E a relação da Europa com os Estados Unidos?
JLF: Esta falta de um poder central capaz de definir e impor objetivos e prioridades estratégicas comuns fica agravada pela  submissão militar dos europeus à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e aos EUA, que foi quem impôs a expansão apressada da UE, em direção ao leste, logo depois de 1991, para “ocupar” os Estados que haviam pertencido ao Pacto de Varsóvia, e haviam estado sob controle russo. Presa dentro desta camisa de força, a União Europeia é hoje um “ente político” fraco, com uma moeda falsamente “forte”, e com muito pouca capacidade de iniciativa autônoma, dentro do sistema mundial. Por isto, a União Europeia está se transformando rapidamente numa “carta fora do baralho”, dentro da nova geopolítica mundial, desta primeira metade do século XXI, até porque, isoladamente, suas antigas grandes potências não têm mais a mesma importância que tiveram no passado e só se mantêm no topo do sistema graças a sua associação dependente dos Estados Unidos. Mesmo a Alemanha, que luta para se reafirmar no cenário geopolítico mundial, ainda segue sendo prisioneira do seu passado e de sua condição de “protetorado atômico” dos EUA.
CC: Os BRICS acabam de anunciar a criação de um banco de desenvolvimento e de um fundo de estabilização. Como o acordo entre os emergentes vai afetar a velha ordem econômica do planeta?
JLF: A criação do banco de desenvolvimento e do fundo de compensações representa uma mudança qualitativa na trajetória do grupo. É, de fato, sua primeira materialização concreta. A partir dessa decisão, por mais longo que venha a ser o seu processo de montagem e institucionalização, os BRICS deixaram de ser um grupo diplomático e político informal e passou a ter um instrumento concreto de ação econômica e administração conjunta. Talvez tenha sido a decisão mais importante no campo financeiro internacional das últimas décadas, e a primeira que escapa inteiramente aos desígnios da finança pública e privada anglo-americana, mesmo sem confrontá-la. Essa decisão não muda de forma imediata e radical a velha ordem monetário-financeira do planeta, liderada em um primeiro momento pela moeda inglesa e hoje pelo dólar norte-americano. Mas o mais importante é a forma em que foi dado esse passo, assumido como gesto simbólico e político, e como parte de uma estratégia de construção de circuitos monetários e financeiros paralelos e de contenção, não necessariamente contraditórios com a ordem monetária e financeira anglo-saxônica.
CC: O senhor vê alguma possibilidade de o dólar perder espaço para outras moedas, como o yuan, no futuro próximo?
JLF: Sim, em particular no circuito econômico asiático e em todas as áreas do mundo onde cresça a presença comercial e financeira dos chineses. Não quer dizer que as moedas regionais ou setoriais possam substituir a curto prazo o dólar como referência internacional. Moeda é uma criação do poder e um recurso fundamental na competição entre os Estados e as economias do sistema interestatal capitalista. Só houve até hoje duas moedas de referência internacional, a libra e o dólar, e as duas tiveram e continuam a ter papel decisivo na construção e na reprodução do poder global da Inglaterra e dos EUA. Nem a libra nem o dólar se transformaram em referência da noite para o dia, nem foi apenas uma escolha dos mercados. A libra só se generalizou dentro e fora da Europa a partir de 1870, quase dois séculos depois do início da escalada do poder da Inglaterra. E o dólar só ocupou espaço depois da Segunda Guerra Mundial e após mais de um século do início da escalada internacional do poder político, militar e comercial dos EUA
CC: E como a China está posicionada para lutar por esse espaço?
A conquista de um reconhecimento e aceitação supranacional por parte de uma moeda nacional envolve sempre um processo lento e uma luta contínua, passo a passo junto com a expansão do poder do seu Estado emissor, até se transformar numa potencia regional ou global como foi o caso da Inglaterra e dos Estados Unidos. No caso da China ainda falta muita estrada, mas não há dúvida que a China está seguindo uma estratégia paulatina de expansão do seu poder e do poder de sua moeda nacional. Neste sentido a decisão recente de criar o banco de desenvolvimento e o fundo de compensação do BRICS deve ser colocada ao lado de outras propostas e iniciativas chinesas. São os casos da criação do Asian Infraastructura Investment Bank (AII), da Chiang Mai Iniciative Multilateralization (CMIM) e do Asian Multilateral Research Organiztaion (AMRO), que já conta com um fundo de 240 bilhões de dólares, destinado a ajudar países asiáticos com dificuldades de balanço de pagamentos. Além disso, deve-se computar nesta mesma direção a iniciativa chinesa de criação do Asian Bond Market, destinado a mobilizar recursos de investimento na região, assim como o rápido desenvolvimento do chamado Dim-Sum Bonds, ou seja o mercado de título designados em yuan. O caminho será longo, porque o chineses parecem ter absoluta claridade que até hoje todos os que tentaram desafiar a supremacia monetário-financeira das duas potencias anglo-saxônicas foram bloqueados, derrotados ou destruídos.
CC: Há muitas críticas à crescente “sinodependência” do Brasil. Como o País poderia aproveitar melhor essa relação ou, de outro ponto-de-vista, evitar grandes perdas na aproximação com a China?
JLF: Da mesma forma que com qualquer outra grande potência maior, mais rica e mais poderosa do que o Brasil. Calculando cada passo político e econômico e mantendo sempre claros os objetivos e interesses fundamentais do Brasil naquela aliança circunstancial. Neste sistema não há alianças eternas nem lealdades indissolúveis, que não seja talvez, entre os países de fala e sangue inglês. Neste momento a China é um aliado fundamental do Brasil, em alguns campos, e com vistas a alguns objetivos comuns. Mas pode deixar de ser logo a frente e, mesmo hoje, pode ser em algumas coisas e em outras não. De qualquer maneira, do ponto de vista dos interesses econômicos fundamentais do Brasil, o Brasil tem de batalhar com todos os instrumentos a sua disposição para impedir que a integração econômica entre Brasil e China contribua para a desindustrialização brasileira e a transformação do país numa “periferia de luxo” chinesa, exatamente pelo mesmo motivo que o Brasil se opôs ao projeto norte-americano de criação da Alca.
CC: O Brasil tem uma participação muito pequena na corrente internacional de comércio. Como o País poderia se integrar de forma mais efetiva?
JLF: O caminho, certamente, será longo e complexo, pois nesse campo, como no caso das moedas, não existem milagres ou soluções automáticas. E deve começar pelo correto entendimento de como funcionam os mercados internacionais, que mais se assemelham a uma guerra de movimentos entre forças desiguais do que a um jogo de troca-troca entre unidades iguais e bem informadas. Uma guerra assimétrica entre Estados e capitais que atuam como grandes predadores na luta pelo controle monopólico de posições de mercado, inovações tecnológicas e lucros extraordinários. Hoje, de novo, o problema não é o de se integrar nas correntes de comércio ou nas cadeias produtivas.
CC: Alguns analistas avaliam o Mercosul e a Aliança do Pacífico como blocos concorrentes. O senhor acredita que sejam mesmo? Se sim, de que forma a competição afeta o status da América do Sul no mundo?
JLF: Em algum momento escrevi que a Aliança do Pacífico tem mais importância estratégica e ideológica do que econômica, dentro da América do Sul, e esta importância seria sobretudo para os EUA e sua rede de apoios dentro do continente sul-americano. Fora disto, os três países sul-americanos que fazem parte da Aliança do Pacífico não representam nenhum ameaça ou competição para o Brasil. Pelo contrário, Colômbia, Chile e Peru já estão praticamente integrados com o mercado brasileiro e devem ter suas barreiras comuns eliminadas até no máximo 2018. Estes países são pequenas economias mono-exportadoras de commodities, sem escala para promover um processo de industrialização autônomo apoiado no seu mercado interno. A Colômbia exporta principalmente combustíveis minerais, que ocupam 66% de sua pauta de exportações; o Peru exporta minérios, metais preciosos e combustíveis minerais que constituem 63% de suas exportações; e, no caso do Chile, a exportação de cobre sozinha já representa 60% de suas exportações. No caso da Colômbia, a China já é seu segundo maior parceiro comercial; e no caso do Peru e do Chile, a China é o primeiro parceiro. Nenhum desses três países se propõe qualquer tipo de desafio econômico, nem representa uma ameaça para o Brasil. Nos três casos, a disputa do Brasil pelos seus mercados internos é com a China e os EUA, e todos os três ocupam um lugar importante como destino das exportações brasileiras de maior valor agregado. No médio prazo, o Brasil pode ganhar posições sem maior conflito, basta aumentar seu ritmo de crescimento e aprofundar a sua integração física com o Pacífico. O Brasil concentra hoje mais da metade do PIB sul-americano e possui uma indústria mais diversificada e uma economia mais sofisticada que a de todos os demais países do continente. Se for capaz de construir essa infraestrutura terá todas condições de se transformar, a médio prazo, no polo econômico de referência de toda esta região.
CC: Como o senhor avalia os resultados da intervenção dos EUA no Oriente Médio e quais os riscos da nova realidade na região?
JLF: Logo após o fim da Guerra Fria, em 1994, a Otan lançou um projeto de intercâmbio militar e de segurança com os países árabes do Norte da África, o chamado Diálogo Mediterrâneo.  Dez anos depois, lançou uma nova Iniciativa de Cooperação de Istambul, centrada nos países do Oriente Médio. Nesse mesmo ano, o presidente George Bush, o pai, alargou os objetivos estratégicos americanos e da Otan, e falou pela primeira vez no Grande Médio Oriente, na reunião do G-8, em Sea Islands, nos EUA. A proposta de Bush pai era criar um novo espaço unificado de intervenção geopolítica, do Marrocos ao Paquistão, e deveria ser objeto da preocupação prioritária das chamadas potências ocidentais na sua guerra contra o “terrorismo islâmico”.
CC: Não deu certo.
JLF: Vinte anos depois da primeira iniciativa da Otan, a estratégia, pode-se dizer, foi um rotundo fracasso. A incapacidade demonstrada pelos EUA e europeus de controlar o mais recente ataque israelita à Faixa de Gaza é apenas a última gota de um desastre do tamanho do Grande Médio Oriente. Mesmo após as guerras do Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria e, de novo, Afeganistão, ainda seguem em pleno curso vários conflitos civis e inúmeros processos avançados de desintegração de Estados e sociedades no próprio Afeganistão, Iraque, Síria, Líbano, Iêmen, Líbia, Sudão e Palestina, ao lado da desastrosa restauração militar no Egito, da crescente militarização da Arábia Saudita, da instabilidade crônica do Paquistão e do descontrole fundamentalista de Israel. Esse grande fracasso estratégico talvez possa ser considerado como o fim da desastrosa retaliação colonialista do Império Otomano feita por França e Inglaterra, responsáveis pela criação de fronteiras e Estados absolutamente artificiais em todo o Oriente Médio, nascidos para atender aos interesses econômicos e geopolíticos das duas potências e seus aliados. Esse talvez tenha sido um dos maiores atestados de incompetência e egoísmo da parte do “homem branco europeu”, deixando atrás de si um legado de violência na mesma região onde os turcos otomanos tinham demonstrado uma capacidade milenar de estabilização e aceitação pacífica da convivência religiosa. Uma história vergonhosa, mas talvez possamos assistir ao início de uma nova história a ser escrita pelos próprios povos, civilizações e sociedades que pertenceram ao antiquíssimo Império Otomano.
CC: Por que a Primavera Árabe não se tornou o “sopro de democracia” que o Ocidente imaginava?
JLF: A tal Primavera foi apenas mais uma invenção delirante do egocentrismo e da fantasia cinematográfica dos europeus e americanos.