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quarta-feira, 23 de setembro de 2015

O mito dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)

O mito dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), artigo de José Eustáquio Diniz Alves


Os ODS apresentam uma boa intenção, mas vendem uma grande ilusão” (Alves, 2015)

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[EcoDebate] Houve uma janela de oportunidade e o mundo conseguiu realizar uma série de Conferências globais no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) na década de 1990. O fim da Guerra Fria e a maior distenção Internacional criou um ambiente de maior cooperação e de enfrentamento dos problemas nacionais e mundiais. Cabe destacar os seguintes eventos:
1992 – Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, Brasil
1993 – Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, Viena, Áustria
1994 – Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, Cairo, Egito.
1995 – Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social em Copenhague, Dinamarca.
1995 – 4ª Conferência Mundial sobre Mulheres, Pequim, China
1996 – Conferência sobre Assentamentos Humanos (Habitat II), Istambul, Turquia
1996 – Cúpula Mundial da Alimentação, Roma, Itália
Todas estas Conferências tiveram ampla participação dos governos, empresas e sociedade civil. Elas produziram documentos de dezenas de páginas com uma lista enorme de propostas e reivindicações. Portanto, havia uma ampla e avançada agenda para o século XXI. Porém, o Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, promoveu, no ano 2000, em Nova Iorque, a Cúpula do Milênio que criou os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, estabelecendo oito pontos a serem alcançados pelos diversos países até o ano de 2015.
Como mostraram Correa e Alves (2005) os ODMs foram fruto de pouca discussão, baixo envolvimento da sociedade civil e representaram uma redução e simplificação da agenda dos anos 90, além de colocar uma “régua” muito baixa nos objetivos a serem implementados:
A inflexão de rota identificada na elaboração final do mapa dos ODMs não chega a ser surpreendente. A conjuntura geopolítica dos anos 2000 tem sido – como bem analisam o embaixador Gelson da Fonseca e Benoni Belli – marcada por um forte sentimento de ‘frustração’. Esse clima decorre das promessas não cumpridas da primeira metade da década de 90, quando a agenda das Nações Unidas se pautava por um projeto bastante ambicioso de governança global solidária e justiça. Essa promessa, como bem sabemos, vem sendo solapada pelo unilateralismo imperial norteamericano, pós-2001, pelo recrudescimento dos conflitos internacionais e, consequentemente, pelo crescimento dos investimentos militares em detrimento do financiamento do desenvolvimento, para não mencionar a sobrevida do chamado ‘fundamentalismo de mercado’ como princípio, meio e fim da gestão macroeconômica” (Correa, Alves, 2005, p. 177).
A primeira versão dos ODMs ignorou completamente as questões populacionais e os direitos sexuais e reprodutivos. Mas na revisão de 2005, depois de muita pressão foi acrescentado a meta “# 5b. Alcançar, até 2015, o acesso universal à saúde reprodutiva”. Porém, não foi tocado nos direitos sexuais e, em termos reprodutivos continuam existindo cerca de 225 milhões de mulheres, no mundo, sem acesso aos meios de regulação da fecundidade. Uma avaliação mais detalhada dos objetivos e metas dos ODM pode ser econtrada em CARVALHO e BARCELLOS (2014).
Em 2015 a ONU completa 70 anos com três grandes eventos:
a) julho: Addis Abeba/Etiópia, reforma do sistema financeiro global e apoio ao desenvolvimento;
b) setembro: NYC, aprovação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS);
c) dezembro: Paris, COP-21, para adoptar um acordo global para conter o aquecimento global.
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Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) vieram na esteira dos ODMs, mas foram propostos como resolução da Rio + 20, Conferência realizada em 2012, e são uma agenda mundial com 17 objetivos, 169 metas e mais de 300 indicadores. De 25 a 27 de setembro, em Nova York, a Organização das Nações Unidas (ONU) realizará um encontro, com status de plenária de alto nível da Assembleia Geral, para decidir pela adoção dos ODS. Os indicadores serão definidos pela Comissão de Estatística da ONU em 2016.
De acordo com os objetivos e metas (ver Plataforma ODS), são previstas ações mundiais nas áreas de erradicação da pobreza, segurança alimentar, agricultura, saúde, educação, igualdade de gênero, redução das desigualdades, energia, água e saneamento, padrões sustentáveis de produção e de consumo, mudança do clima, cidades sustentáveis, proteção e uso sustentável dos oceanos e dos ecossistemas terrestres, crescimento econômico inclusivo, infraestrutura, industrialização, entre outros. Os temas podem ser divididos em quatro dimensões principais:
  • Social: relacionada às necessidades humanas, de saúde, educação, melhoria da qualidade de vida, justiça.
  • Ambiental: trata da preservação e conservação do meio ambiente, com ações que vão da reversão do desmatamento, proteção das florestas e da biodiversidade, combate à desertificação, uso sustentável dos oceanos e recursos marinhos até a adoção de medidas efetivas contra mudanças climáticas.
  • Econômica: aborda o uso e o esgotamento dos recursos naturais, produção de resíduos, consumo de energia, entre outros.
  • Institucional: diz respeito às capacidades de para colocar em prática os ODS.
Como disse Alves (11/03/2015): “Os ODS apresentam uma boa intenção, mas vendem uma grande ilusão”. O crescimento demoeconômico continua sendo o fundamento da agenda pós-2015. Por exemplo, entre 2000 e 2015 nada foi feito para mudar a situação da gravidez indesejada e a falta de acesso aos métodos contraceptivos. Nos ODS a meta “Alcançar o acesso universal à saúde reprodutiva” foi repetida, mas com data limite de 2030. Nada foi dito sobre este adiamento e pouco tem sido proposto para que desta vez a universalização dos direitos reprodutivos seja uma realidade.
Mas o pior é o apelo ao crescimento econômico como panaceia para todos os problemas sociais. Os formuladores dos ODS ignoraram o alerta feito pelos estudiosos da economia ecológica que não cansam de repetir que é impossível manter o contínuo crescimento das atividades antrópicas no contexto incontornável do fluxo metabólico entrópico. Como disse Kenneth Boulding: “Alguém que acredite que o crescimento exponencial pode continuar infinitamente num mundo finito ou é louco ou é economista”. Herman Daly, não nunca deixa de falar que estamos em um “mundo cheio” e caminhando para um crescimento deseconômico. Outros estudiosos também reforçam o ponto de vista de Nicholas Georgescu-Roegen e da entropia:
O que mais interessa, portanto, é entender que a Terra é atravessada por um fluxo de energia extremamente significativo, que é finito e não crescente. Entra na forma de luz solar e sai como calor dissipado. Não haveria limite à expansão da economia se ela não fosse um subsistema aberto desse imenso sistema fechado. Mas se o pressuposto for inverso – e este é o ponto de partida da economia ecológica – então qualquer expansão da macroeconomia terá um custo. Qualquer aumento do subsistema exige algum tipo de contrapartida natural, fazendo com que tal decisão não possa ignorar seu ‘custo de oportunidade’” (CECHIN e VEIGA, 2010)
Mas a ONU – pressionada pelo lobby dos países pobres a favor do crescimento econômico e pelo loby dos países ricos contra a redistribuição da renda mundial – estabeleceu no objetivo # 8.1: “Sustentar o crescimento econômico per capita, de acordo com as circunstâncias nacionais e, em particular, pelo menos um crescimento anual de 7% do PIB nos países menos desenvolvidos”.
Pois bem, as projeções demográficas apontam que a população da África Subsaariana deve passar de um bilhão de habitantes em 2015, para algo em torno de 3 a 5 bilhões de habitantes em 2100, com a média de 4 bilhões como o cenário mais provável. O PIB da África Subsaariana (em poder de paridade de compra) está estimado em US$3,5 trilhões em 2015, com uma renda per capita de US$ 3,8 mil, segundo dados do FMI. Pois bem, se a economia crescer 7% ao ano, a África Subsaariana terá um PIB 16 vezes maior em 40 anos, podendo chegar a US$ 56 trilhões em 2055, com renda per capita de US$ 22,4 mil em 2055. Este montante é superior aos PIBs atuais dos EUA, União Europeia e América Latina juntas. Se a taxa de 7% continuar por 80 anos, o PIB da África Subsaariana será de no mínimo US$ 896 trilhões em 2100 (10 vezes maior que o PIB mundial de 2015).
O ODS # 8 fala em crescimento econômico sustentado e o ícone apresenta uma seta apontando para cima. O ODS # 12 diz: “Assegurar padrões de consumo e produção sustentáveis”, mas não apresenta uma definição clara de sustentabilidade. Sintomaticamente, o símbolo utilizado no ícone de propaganda é o oito deitado, que representa o infinito. Melhor seria que os ODS indicassem para a perspectiva do Estado Estacionário ou do decrescimento da produção e do consumo dos países ricos e dos segmentos populacionais ricos dos países pobres. Sustentabilidade ambiental (e ecocêntrica) não combina com crescimento econômico em um mundo superpoluído e anti-simbiótico.
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A natureza já se encontra degradada atualmente e caminhando para o colapso ambiental. O mundo já ultrapassou 4 das 9 Fronteiras Planetárias (Steffen et. al. 2015). Cada Fronteira é um elo fraco da corrente, rebentando uma, toda a ligação se solta. A Pegada Ecológica já é superior a 60% à biocapacidade da Terra (WWF, 2015). O nível de concentração de CO2 na atmosfera ultrapassou as 400 partes por milhão (ppm), quando o limiar seguro é 350 ppm. O degelo aumentou nas cordilheiras e nos glaciares, elevando o nível dos oceanos. Há um crescente processo de acidificação das águas e solos, crescimento dos desertos e redução da fertilidade da natureza. O progresso econômico humano se deu às custas do regresso ecológico do Planeta e o resultado da ampliação das atividades antrópicas foi o aquecimento global.
O ODS # 13 diz: “Tomar medidas urgente para combater as mudanças climáticas e seus impactos”. Porém, as ações sobre este item não serão tomadas em Nova Iorque em setembro, mas sim em dezembro em Paris, na COP-21. Segundo cálculos do Idesam (Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas), com base no Carbon Tracker, as metas de redução de emissões, chamadas INDCs (Contribuições Nacionalmente Determinadas Pretendidas), somam 14,9 bilhões de toneladas de gás carbônico em 2030 se forem cumpridas. Porém, para limitar o aquecimento global a 2º C, o mundo precisa emitir ao ano, no máximo, 11,3 bilhões de toneladas daqui até o fim do século. O ano de 2014 foi o mais quente desde o início das medições no final do século XIX. Mas tudo indica que 2015 e 2016 serão ainda mais quentes por conta do El Niño. O mundo está a caminho dos 4 graus de aquecimento desde o início da Era Industrial e isto terá consequências muito danosas para o meio ambiente, a economia e a vida na Terra. A COP-21 pode ser marcada pelo binômio: “muito pouco, muito tarde”.
Será possível então continuar com o crescimento demoeconômico no século XXI neste quadro de degradação dos ecossistemas e de mudanças climáticas catastróficas?
Pelo princípio da precaução, a humanidade deveria evitar continuar em sua marcha egoística pela dominação e exploração dos recursos naturais e agressão à biodiversidade. Não faz sentido a corrida pelo crescimento econômico rumo ao precipício. Os países ricos deveriam decrescer e distribuir renda a favor dos países pobres, mudando o estilo de vida poluidor e destruidor. O grande economista Stuart Mill já falava em Estado Estacionário, em seu famoso livro de 1848. E ele não está só. Vale a pena lembrar a mensagem de Celso Furtado, no livro “O mito do desenvolvimento econômico”, feita ainda nos idos de 1974:
(…) que acontecerá se o desenvolvimento econômico, para o qual estão sendo mobilizados todos os povos da terra, chegar efetivamente a concretizar-se, isto é, se as atuais formas de vida dos povos ricos chegam efetivamente a universalizar-se? A resposta a essa pergunta é clara, sem ambiguidades: se tal acontecesse, a pressão sobre os recursos não renováveis e a poluição do meio ambiente seriam de tal ordem (ou alternativamente, o custo do controle da poluição seria tão elevado) que o sistema econômico mundial entraria necessariamente em colapso (Furtado,1974, p. 19).
Infelizmente, a expansão do capitalismo chegou a níveis inimagináveis e a “classe” consumidora deverá ser maioria da população mundial até 2025, segundo a McKinsey (outras firmas de consultoria internacional, como a Goldman Sachs e a PwC, também fazem projeções semelhantes). A expansão do consumo mundial em países como China, Índia, Indonésia, Vietnã e Turquia já é uma realidade e só tende a crescer, pois une o desejo de lucro das empresas com a vontade de consumir das pessoas. Assim, a realidade tem sido mais forte do que o mito, para a tristeza da Mãe Natureza (Pachamama) que tem pagado um preço muito alto para sustentar a generalização do consumo entre setores crescentes da população mundial.
No artigo “Caminhos percorridos da Rio 92 à Pós-2015” a socióloga Iara Pietricovsky (10/09/2015), membro do Colegiado de Gestão do INESC, concorda com o argumento que: “A ONU como instituição, começou a perder seu poder e legitimidade política. Isso ficou claro, ao longo do tempo, pelo baixo nível de comprometimento dos governos, pela ausência de investimento por parte do próprio sistema para fazer com que as negociações tivessem resultados efetivos dos pontos já negociados sem que se reabrissem as questões já acordadas. E por fim, a própria crise financeira do sistema de governança mais tradicional”. Ela considera que “O processo de formulação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) está crivado de problemas” e entre os dez itens relacionados, diz: “As questões de financiamento ainda estão obscuras e não existe concretamente nenhuma proposta que mostre a entrada de dinheiro novo para que se iniciem programas e projetos que visem a efetivação dos Objetivos”.
Parece até ironia, mas a Terceira Conferência Internacional de Financiamento para o Desenvolvimento, na capital da Etiópia, Adis Abeba (13 a 17 de julho) começou no auge da crise financeira grega, depois de duas semanas com os bancos fechados por falta de dinheiro. Logo depois da Conferência de Adis Abeba o mundo assiste bestificado a crise migratória na Ásia e Europa. Aumenta o número de migrantes e refugiados que sofrem com as guerras, a pobreza e as mudanças climáticas.
A consultoria Mackinsey publicou em fevereiro de 2015 um relatório (Debt and, not much, deleveraging, McKinsey Global Institute – MGI) mostrando que as dívidas dos domicílios (famílias), governos, empresas e setor financeiro passou de US$ 87 trilhões no quarto trimestre de 2000 para US$ 142 trilhões no quarto trimestre de 2007 e para US$ 199 trilhões no segundo trimestre de 2014. Em proporção do PIB a divida total passou de 246% em 2000, para 269% em 2007 e atingiu 286% em 2014. Isto quer dizer que a economia internacional está sendo sustentada por uma bolha de crédito que vem crescendo de forma exponencial, chegando a praticamente a 200 trilhões de dólares em meados de 2014, ou cerca de 3 vezes o valor do PIB mundial. Evidentemente esta dívida terá que ser paga em algum momento do futuro pelas atuais ou posteriores gerações. Portanto, são grandes a chances de uma enorme recessão global e pequenas as chances de sucesso dos ODS no próximo quindênio. Não dá para continuar fazendo cada vez mais do mesmo. O mundo precisa de uma revolução no estilo de produzir e consumir. E não dá para esperar muito pelas mudanças.
O desenvolvimento sustentável virou um oxímoro e o tripé da sustentabilidade se transfigurou em um trilema. O “Ser humano” se transformou em “Ter humano”. O consumo virou uma religião, enquanto o modelo “Extrai-Produz-Descarta” (Cavalcanti, 2012) está levando a humanidade rumo ao abismo. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável se mostram incapazes de mudar o vício da dependência ao consumismo. Por isto os ODS são um mito, pouco fazendo para evitar o colapso ambiental provocado pelo CONSUMICÍDIO.
Referências:
ALVES, JED. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS): boa intenção, grande ilusão. Ecodebate, RJ, 11/03/2015 http://www.ecodebate.com.br/2015/03/11/objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel-ods-boa-intencao-grande-ilusao-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/
ALVES, JED. Novas propostas para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), Ecodebate, RJ, 18/07/2014 http://www.ecodebate.com.br/2014/07/18/novas-propostas-para-os-objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel-ods-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/
ALVES, JED. A dívida de 200 trilhões de dólares e a próxima crise financeira mundial, Ecodebate, RJ, 13/03/2015 http://www.ecodebate.com.br/2015/03/13/a-divida-de-200-trilhoes-de-dolares-e-a-proxima-crise-financeira-mundial-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/
CARVALHO, PGM. BARCELLOS, FC. Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – ODM: Uma avaliação crítica. Sustentabilidade em Debate, Brasília, v. 5, n. 3, p. 222-244, set/dez 2014
CAVALCANTI, Clóvis. Sustentabilidade: mantra ou escolha moral? Uma abordagem ecológico-econômica. SP, Estudos avançados 26 (74), 2012http://www.scielo.br/pdf/ea/v26n74/a04v26n74.pdf
CECHIN, Andrei e VEIGA, J. Eli. O fundamento central da Economia Ecológica In: MAY, Peter (org) Economia do meio ambiente: teoria e prática, 2ª ed, RJ: Elsevier/Campus, p. 33-48, 2010
CORREA, S. ALVES, JED. As metas de Desenvolvimento do Milênio (ODM): Grandes limites e oportunidades estreitas. Rio de Janeiro, Campinas, REBEP, v. 22, n. 1, 2005
FURTADO, C. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974
PIETRICOVSKY, Iara. Caminhos percorridos da Rio 92 à Pós-2015, Brasilia, INESC, 10/09/2014
ONU. Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, Setembro, 2015 http://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/

José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br

in EcoDebate, 23/09/2015
"O mito dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), artigo de José Eustáquio Diniz Alves," in Portal EcoDebate, 23/09/2015, http://www.ecodebate.com.br/2015/09/23/o-mito-dos-objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel-ods-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/.

Fonte: http://www.ecodebate.com.br/2015/09/23/o-mito-dos-objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel-ods-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/

terça-feira, 22 de setembro de 2015

“Carro mata mais que arma de fogo em São Paulo, mas não é mais notícia”

“Carro mata mais que arma de fogo em São Paulo, mas não é mais notícia”


Especialista diz que desafio de ampliar restrição a carros é "cultural, não é técnico"


O ativista Carlos Aranha. / VICTOR MORIYAMA


Uma pequena volta pelas ruas da maior metrópole da América Latina é suficiente para perceber que o automóvel continua sendo "o rei de São Paulo". Ainda que o prefeito Fernando Haddad tenha sido apelidado de "rei da tinta" por ter criado novos quilômetros de ciclovia pela cidade, as áreas destinadas às bicicletas representam menos de 1% do espaço público, explica Carlos Aranha, especialista em mobilidade urbana e integrante do Conselho Municipal de Política Urbana, coletivo ligado à Prefeitura com participação de integrantes do poder público e da sociedade civil para o debate do tema. Aranha também atua na Rede Nossa São Paulo, o conjunto de ONGs e instituições civis que tem acompanhado de perto e cobrado a gestão municipal. No momento em que se reacende o debate sobre ciclovias e segurança com a morte nesta sexta de uma ciclista em São Paulo, dias após o choque com um ônibus, ele rebate: "Questionar as ciclovias ou o uso da bicicleta diante de uma morte no trânsito é tão absurdo quanto culpar o comprimento da saia de uma vítima pelo seu estupro".
Pergunta. Quais as soluções para que os diversos modais de transporte possam conviver juntos ?
Resposta. Para todos os dilemas existem decisões técnicas e decisões políticas, embasamentos dos dois lados. Quando você fala que vai reduzir a velocidade nas marginais para melhorar o trânsito, isso é totalmente técnico. Já quando se fala nessa redução para evitar mortes, claro que há um embasamento técnico, - porque quanto menor a velocidade, menor o impacto em um acidente, isso é provado – mas tem também o político. Você pode dizer: não importo da cidade matar 600 pessoas atropeladas por ano, eu prefiro manter altas velocidades por um motivo X, já que não acredita no embasamento. Quando falo de motivação política, é no sentido de política pública, de pensar o que é melhor para o bem comum. Quando Nova York, por exemplo, lançou o programa Vision Zero, de zerar as mortes no trânsito, a decisão foi de política pública. Depois, também perceberam que a medida ajudou na fluidez do trânsito, no congestionamento. Se você comparar São Paulo com Nova York você percebe que a nossa cidade ainda está atrasada.
P. Que políticas ainda precisam ser implementadas aqui?
R. O Vision Zero têm 3 pilares: primeiro, a redução de velocidade máxima, segundo, a geometria das ruas, quanto elas se mostram convidativas para a velocidade. Por exemplo, no caso da marginais, as pessoas estranham tanto 50 km/h, porque ela tem cara de rodovia, ela te convida a correr mais. São muitas faixas, são largas, espaço livre grande, os raios das curvas foram feitos pensando na velocidade. Se você simplesmente reduz a velocidade, sem mudar a geografia da rua, (o chamado Traffic Calming- moderação do Tráfego) com elementos na rua que falam para os motoristas que é preciso andar mais devagar, as pessoas vão estranhar. Por isso digo que está correto o que está sendo feito aqui em São Paulo, mas ainda está incompleto. Por exemplo, a rua Avanhandava, no pé da Augusta, recebeu um tratamento de Traffic Calming. Todo mundo que entra nela reduz a velocidade.  Ela tem um piso de concreto intertravado que faz um barulho, tem a calçada no mesmo nível da rua, árvores 'entrando' no meio da rua, você sente que é um local para tomar cuidado, para baixar a velocidade, por isso é importante a geometria. Já o terceiro pilar usado em Nova York  é a fiscalização de trânsito constante. Eles realmente atuam com dureza na penalização das infrações de trânsito. Levam isso a sério todos os dias da semana, durante todos os horários. O que acontece hoje em São Paulo é que a fiscalização é feita principalmente em dias úteis no horário comercial. A Polícia Militar tem um efetivo muito pequeno e prioriza infrações que não necessariamente atentam contra a vida. É muito comum ver no relatório da CET multas de rodízio, de zona azul, já o desrespeito a faixa de pedestres há muito poucas infrações. Não é porque não acontece, mas porque não está sendo punido.
P. E os radares?
R. Eles são um grande problema no Brasil. As pessoas reduzem só para o radar, cumprem e depois voltam a acelerar o carro. Na prática não adianta nada, teríamos que ter fiscalização 24 horas por dia, para todas as infrações, em especial para as que atentam contra a vida. É preciso incluir também a lei seca aí, ela tem o mesmo problema do radar. Todo mundo sabe onde a Blitzs é montada, tem twitter e outras formas de descobrir. Mas nos locais onde ela realmente funciona, ela acontece de forma aleatória. Nos Estados Unidos, por exemplo, os policiais ficam escondidos. Como no Brasil há essa previsibilidade é fácil burlar. Dos três pontos do Vision Zero, estamos terríveis ainda na fiscalização, começando a discutir a geometria das ruas e estamos efetivos na redução de velocidade.
P. Alguns setores alegaram que essa redução tinha por trás um interesse na arrecadação de dinheiro com multas de alta velocidade...
R. Conceitualmente esse argumento é uma grande besteira. Afinal, dinheiro de multa não é arrecadação livre, ele já tem destino orçamentário previsto. Então ele já vai para um fundo que tem várias atribuições, entre elas investimento em educação de trânsito (que sentimos um pouco de falta de mais investimentos), não vão transferir para construir um hospital, e tudo isso é transparente. Acho que quem faz esse tipo de acusação precisa mostrar. E se realmente tivesse acontecendo algum desvio a sociedade teria que saber, porque seria gravíssimo, mas você falar da boca da fora, que é uma tentativa de arrecadação não faz sentido.
P. Nos últimos anos, a mobilidade melhorou?
R. Se for considerar que estamos entre as 5 maiores metrópoles do mundo e que São Paulo é a maior cidade do Brasil, cujo trânsito mais mata no mundo, não é difícil constatar que estamos vergonhosamente décadas atrasados. Por outro lado, se considerarmos, o tipo de individualismo e egoísmo que se manifesta na população e especial na mídia paulistana, no momento que você tenta colocar uma agenda mais progressista, eu diria que finalmente estamos conseguindo avançar. Estamos tentando compensar um atraso de décadas, de políticas erradas, que sempre privilegiaram o carro, o que é burro tanto do ponto de vista de política pública quanto do conceito técnico, porque você trava a cidade inteira. E foi sempre o que São Paulo fez, convidar a todos a usarem carros, a ter seu próprio carro. E criou também um trânsito muito perigoso, ruas perigosas, em que você não vê idosos, não vê crianças, nem deficientes. Você vê pessoas sempre com medo, acuadas, com cuidado para atravessar, para virar porque está todo mundo com sua pressa e seus motores ameaçando a vida. Não é à toa que temos 7.000 atropelamentos por ano. Agora a agenda que vem sido colocada pela atual gestão é progressista no sentido de proteção a vida e de equalizar os modos possíveis de transporte na cidade. Quando você começa a investir nos modos ativos de deslocamento, pedestre e bicicleta majoritariamente, e no transporte público, você começa a dizer que você vai usar o carro se você quiser, mas você tem ótimas opções. Pra fazer isso, inevitavelmente você precisa tirar espaço físico do carro.
P. E qual o maior desafio para realizar esse redesenho do espaço público?
R. Do ponto de vista técnico é muito fácil. O grande desafio é a questão da opinião pública de uma cultura que já está instaurada. Hoje temos 17.000 km de ruas asfaltadas na cidade de São Paulo, que há 20 anos atrás era para todos, você entupia de carros individuais, ônibus , bicicletas...Para que você consiga equalizar o transporte público é necessário dividir e fazer espaços exclusivos para que funcione melhor. O exemplo mais óbvio é o ônibus, é um veículo que poluí duas ou três vezes mais que um carro, só que ele carrega 100 vezes mais que um carro. Então você tem que dar uma faixa exclusiva, não só uma, mas duas, para permitir ultrapassagem. Começou, mas ainda estamos tímidos. O desafio é de opinião pública, cultural, não é técnico. E não é à toa que quem não leva a mobilidade urbana a sério apelida o atual prefeito de rei da tinta e suvinil, porque é tão simples redistribuir o espaço público, que chega a parecer errado. E não é. Quando você pinta uma faixa branca e diz aqui é só passa ônibus é o caminho correto. Pinta de vermelho para a bike, você está fazendo política pública. É tão simples que revolta as pessoas, elas acham que talvez tivessem que criar minhocões pela cidade inteira para resolver o trânsito e não vai. É só você ver qualquer iniciativa semelhante no mundo para ver que não dá certo. Los Angeles, por exemplo, passou décadas investindo em viadutos e túneis e não adiantou, o trânsito continua travado. Agora eles estão começando a ver que precisam investir em transporte coletivo público de qualidade. Não existe nenhuma cidade grande no mundo que tenha resolvido seu problema de mobilidade urbana investindo no transporte individual motorizado.
P. Apesar disso parte da população ainda desconfia sobre a eficácia das ciclovias e de um redesenho urbano. No mês passado, a morte de um pedestre em uma ciclovia gerou um debate grande...
R. Na escola de jornalismo, se aprende que um avião decolar e pousar não é notícia, já se explodir no ar, aí sim é. Hoje atropelamos e matamos 2 pessoas por dia com carro em SP. Isso não é notícia porque virou algo natural, não se indignam, e não é. Isso é uma carnificina urbana diária. Apesar da imensa violência urbana que temos na cidade, hoje carro mata mais que arma de fogo na cidade de SP. Só que já não é notícia. O código de trânsito é claro, há um artigo que diz que a hierarquia da rua prevê que o maior sempre será responsável pelo menor, da mesma forma que o caminhão precisa ter cuidado com os carros ao redor, o carro cuida da moto, a moto da bicicleta, a bicicleta do pedestre, todos juntos cuidam do pedestre. Isso resolve tudo, claro que o ciclista tem que tomar cuidado com o pedestre, não importa se ele está atravessando fora da faixa, nada justifica uma morte ou você ferir uma pessoa. O que temos hoje na cidade é uma inversão total disso, o automóvel é o rei da cidade e todos têm medo dele. Aí você tem um modo de deslocamento que sempre existiu, que antes de qualquer ciclovia, já havia um índice de 300 mil ciclistas na cidade por dia, e que agora começa a ganhar relevância porque é uma novidade pra cidade, vem gerando discussão. O plano da Prefeitura é implementar 400 km de ciclovia, isso significa menos de 2% dessas ruas, toda essa polêmica entorno de 2% de ruas que estão ganhando uma parte delas para criar uma infraestrutura dedicada aos ciclistas como um convite para que as pessoas usem a bicicleta como meio de transporte. Se você considera a área do espaço público, viário de muro a muro, tudo que está implementado de ciclovia representa menos de 1% desse espaço e, se você somar com todas as faixas exclusivas de ônibus e corredores, você não passa de 1% do espaço público da cidade. Não estou contando parques, estou falando de área viária. E se isso gera ainda tanta polêmica e grito é porque as pessoas ainda acreditam que nós ainda temos alguma solução possível na crença do transporte individual motorizado.
P. Nesta sexta, a morte de uma modelo que se chocou com um ônibus enquanto pedalava na av. Faria Lima voltou a reacender o debate sobre a segurança das ciclovias. Como avalia?
R. Questionar as ciclovias ou o uso da bicicleta diante de uma morte no trânsito é tão absurdo quanto culpar o comprimento da saia de uma vítima pelo seu estupro. Ciclovias existem justamente para dar segurança e conforto às pessoas. Nada priva o condutor do automóvel da sua obrigação prevista em lei: o cuidado irrestrito do maior pelo menor, sempre, em qualquer situação. Me preocupa bastante ver tanto alvoroço em torno das mortes que envolvem uma bicicleta (foram 3 casos este ano em São Paulo) e nenhuma menção às 30.000 ocorrências de trânsito, com 1.500 mortes, sempre causadas por automóveis, na mesma cidade, todo ano.
P. E qual a situação do metrô?
R. No sistema brasileiro temos um caso peculiar, já que o transporte ferroviário é responsabilidade estadual e o transporte sobre pneus dentro da cidade é responsabilidade do município. Com isso você fica dependendo da boa vontade do político eleito da cidade e do estado de terem um diálogo e ajudar. Mas dado essa ressalva dessa separação, o metrô de São Paulo é pífio, a evolução é muito lenta. O que temos na prática hoje é um sistema de ônibus carregando duas vezes mais o que o metrô carrega. As viagens de ônibus em SP chegam a 10 milhões por dia e o metrô mal chega a 4,5 milhões. Então, considerando as características do metrô de transporte de massa de altíssima capacidade e com mais espaço de carregar mais gente em menos tempos é claro que deveria carregar mais gente. Teríamos que ter uma rede muito maior do que ela hoje. Se você pega o planejamento dos anos 90 de SP, hoje teríamos que ter uma rede com o dobro de tamanho, e o que vemos atualmente é o contrário. Vemos estações serem inauguradas com 5, 7, 10 anos de atraso. Outra opção que considero errada é adesão do monotrilho suspensa, porque já nasce saturado, com a capacidade menor do que a demanda daqueles bairros sugerem. E também estão atrasados. O metrô é importante e todos defendem tanto sem muita ressalva porque ele não atrapalha tanto o carro.
Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/02/politica/1441231171_842602.html?id_externo_rsoc=FB_CM

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Como Alemanha se beneficiará recebendo 800 mil refugiados



(EPA)

Quando a chanceler alemã, Angela Merkel, anunciou na semana passada que a Alemanha concederia asilo a 800 mil refugiados neste ano, muitos afirmaram que outros países da União Europeia deveriam seguir o exemplo da maior economia do bloco.
Desde que dezenas de milhares de imigrantes de Síria, África e Oriente Médio começaram a chegar às fronteiras da Europa, a narrativa política na Alemanha tem sido distinta.
Em seus discursos, Merkel vem destacando "o ideal europeu comum". Segundo ela, o continente como um todo tem de se envolver com o problema da crise humanitária na Síria.
"Se a Europa fracassar no assunto dos refugiados, sua estreita relação com os direitos civis universais serão destruídos", disse a chanceler alemã.
"Como um país financeiramente saudável e forte, temos a força para fazer o que é necessário", acrescentou.
Surpreendentemente, o posicionamento de Merkel quanto à crise humanitária na Síria gerou um inédito consenso no país. Tanto a maioria dos políticos de direita quanto de esquerda apoiam a iniciativa da chanceler.
Para muitos deles, aceitar refugiados é uma questão de solidariedade com aqueles que fogem de perseguições e guerras.
No entanto, há razões pragmáticas por trás do autopropalado altruísmo.
Efetivamente, a Alemanha possui uma das populações que envelhecem e diminuem mais rapidamente na Europa.
Segundo estimativas da Comissão Europeia, calcula-se que em 2060 a população do país encolherá em 10 milhões de pessoas, passando de 81,3 milhões em 2013 para 70,8 milhões.
Por essa razão, o país poderia beneficiar-se de um influxo de jovens trabalhadores.
Por outro lado, acredita-se que o Reino Unido se tornará o país mais populoso da União Europeia. Segundo o relatório da entidade, a população do país vai aumentar das atuais 64,1 milhões para 80,1 milhões de pessoas em 2060.
O crescimento da população britânica é resultado da taxa de fertilidade relativamente alta e de um dos maiores saldos líquidos de imigração entre todos os países que pertencem ao bloco comum.
Essa diferença pode ajudar a explicar por que Alemanha e Reino Unido mantêm posições diferentes sobre imigração.
No caso alemão, a crescente proporção de cidadãos dependentes antecipa um enorme fardo para os contribuintes.
Estima-se que a proporção de pessoas com 65 anos ou mais sobre a população entre 15 e 64 anos aumentará de 32% em 2013 para 59% em 2060.
Em outras palavras, isso significa que daqui a 45 anos haverá dois alemães com menos de 65 anos trabalhando e gerando impostos para cada alemão aposentado.
Segundo explica o editor de economia da BBC, Robert Peston, "considerando essas circunstâncias, seria particularmente útil para a Alemanha receber um influxo de famílias jovens da Síria ou de outras partes, que estão dispostas a trabalhar duro e se esforçar para reconstruir suas vidas e demonstrar a seus anfitriões que não são um fardo".
Mas nem tudo é boa notícia para a Alemanha.
A entrada maciça de imigrantes, como está acontecendo agora, cria enormes desafios para a sociedade.
(Getty)
Governos de muitas cidades dizem estar sobrecarregados pois não têm onde abrigar os refugiados, que chegam a dezenas de milhares de pessoas.
E os sistemas de segurança social e os orçamentos regionais vão ter de enfrentar crescentes custos adicionais.
Mas, como observou em sua edição internacional a revista Der Spiegel, a entrada sem precedentes de imigrantes na Alemanha "vai mudar fundamentalmente o país."
"(Os refugiados) representam um fardo, mas são também uma oportunidade para criar uma nova Alemanha, mais cosmopolita e generosa".
E a onda de imigração também é bem recebida pelos empresários. "Embora a taxa oficial de desemprego seja de quase 2,8 milhões no país, diz a Der Spiegel, a comunidade empresarial precisa urgentemente de trabalhadores."
"A economia alemã depende da imigração, tanto da Europa quanto de pessoas que entram no país devido aos direitos de asilo."
"Com uma população em queda, as empresas não podem preencher todos os postos de trabalho e trabalhadores qualificados são cada vez mais raros. Essa tendência será agravada nos próximos anos. Trata-se de uma realidade que ameaça a prosperidade do país", afirma a publicação.
Especialistas dizem que a Alemanha não vai conseguir satisfazer suas necessidades somente com o mercado de trabalho europeu, onde é permitida a livre circulação de trabalhadores na União Europeia.
Em meio ao acalorado debate sobre imigração, o governo alemão não está isento de críticas, muitas das quais partem de setores à extrema-direita tradicionalmente contrários a entrada de estrangeiros no país.
Mas economistas afirmam que a imigração promove crescimento e o país vive, atualmente, um momento em que a onda de imigrantes pode representar um benefício econômico e demográfico no futuro.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Ressentimento de classe

Ressentimento de classe

A segregação que antes se fazia a distância e sem afetação direta, conforme a assepsia impessoal que vigora na violência silenciosa dos condomínios, agora perdeu a vergonha e proclama abertamente seu mal-estar contra essa proximidade indesejável dos pobres.
por Christian Ingo Lenz Dunker


Em meu livro Mal-estar, sofrimento e sintoma (Boitempo, 2015) examinei a transformação das formas de sofrimento no que chamei de Brasil pós-inflacionário. Meu interesse inicial era sumamente psicanalítico. Queria saber por que o percurso do tratamento de meus pacientes diferia tanto desde que comecei a atender, por volta de 1991, sem recorrer apenas às hipóteses mais óbvias e genéricas acerca do avanço da globalização econômica e seus efeitos pós-modernizantes. Para tanto escolhi descrever e analisar um sintoma social datável e concreto na realidade brasileira, a partir dos anos 1970, a que chamei de vida em forma de condomínio. Forma de vida quer dizer aqui uma maneira específica de organizar o desejo, a linguagem e o trabalho em torno de um determinado mal-estar. No caso dos enclaves residenciais brasileiros, esse mal-estar é composto por uma determinada percepção social de que o espaço público torna-se crescentemente violento e perigoso. Como exemplo da realização de um ideal de consumo para as classes médias e da aquisição de uma propriedade, o imóvel é antes de tudo o signo de uma conquista econômica. Mas uma forma de vida é muito mais do que isso; ela compreende também um capital cultural, representado por certo estilo de vida e de consumo, bem como um capital social, representado pelos contatos, alianças e partilhas que uma vida comum regrada, planejada e administrada dessa maneira permite. Um condomínio, não nos esqueçamos, é definido por muros. E estes não têm apenas a função defensiva de nos proteger; eles criam um senso de exclusividade: essa é palavra recorrente nos anúncios e propagandas de tais empreendimentos residenciais. Aliás, “empreendimento” é uma palavra que combina admiravelmente com a exigência neoliberal de que todos devemos nos individualizar como “empreendedores” de nosso próprio “capital humano”.

Além de muros, um condomínio caracteriza-se pela figura do síndico, ou do gestor, que é uma espécie de encarregado por zelar pelas regras criadas no interior desse estado de exceção, entre o espaço público e o privado. Como protótipo da figura do “gestor”, o síndico mantém um tipo de relação com a lei ao exercer sua autoridade, dissociando perfeitamente meios e fins. Cinicamente, ele administra os recursos sem se importar com a, agora na moda, “atividade-fim”. Um bom gestor em educação ou saúde pode ser alguém que desconhece completamente a prática de ensinar alunos ou cuidar de pacientes. Ele entende de repasses, de caminhos fiscais, de segurança jurídica, de desenho de negócios.
Um condomínio é estruturalmente semelhante a outros redutos cercados, como a prisão, o shopping center e a favela. Em todos esses espaços, que passaram a dominar a paisagem de nosso cinema e de nossa literatura nos anos 2000, vemos surgir síndicos e muros, mas também uma hipertrofia de regras, regulamentos e estatutos que exigem um contínuo processo de autoadequação. Em menos de trinta anos, o Brasil tornou-se um país estruturado como uma rede de condomínios. Na política, na economia, na religião, na cultura, na produção, o condomínio passou a ser uma espécie de gramática geral de nossas relações.
Isso permitiu entender por que nossos modos de sofrimento se alteraram no sentido de duas narrativas fundamentais. A primeira organiza nosso sofrimento em torno da hipótese de que sua origem está em um objeto intrusivo. Ou seja, há algo ou alguém que está a mais em nossa forma de vida e que, uma vez excluído, reequilibrará nossa experiência, aproximando-a do bem estar. Esse objeto pode ser concreto como o álcool, as drogas, mas pode ser também identificado com um “tipo de pessoa”: negro, pobre, homossexual, delinquente, e assim por diante. A fantasia do condomínio projeta que, excluídos os perigosos e formada uma sociedade reduzida de “iguais”, a felicidade será realizada. A segunda narrativa fundamental de sofrimento que o condomínio favorece gira em torno da ideia de que sofremos porque há um pacto malfeito, ou porque alguém não está cumprindo o pacto, ou ainda que esse pacto precisa ser refeito em novas bases, para que então o sofrimento seja tratado. Toda narrativa de sofrimento implicitamente indica como alguém pode e deve ser reconhecido, carregando, portanto, uma espécie de política sobre sua própria transformação. A hipertrofia dessas narrativas, objeto intrusivoreconvenção de pactos, nos levou a um acúmulo de políticas que só sabem demandar duas coisas: mais muros e mais leis (ou muros mais altos e leis mais duras). A expansão da vida em forma de condomínio tornou o medo, que justifica os muros, e a inveja, que é o gozo secundário dos que estão dentro e fantasiam que os de fora querem entrar, nossos afetos políticos dominantes. Isso acentuou nossos padrões de consumo ostentatório e nosso antigo costume de que governar é manipular as regras do jogo conforme a máxima moral do síndico: aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei. Isso é compatível com a proliferação dos chamados novos sintomas: depressão e pânico, drogadição e anorexia. Os dois primeiros dependem do medo como uma espécie de excesso de interiorização da lei (“se algo der errado, o único culpado é você mesmo”) e os dois seguintes ligam-se ao exagero da lei como forma de invertê-la (“se a lei geral é a do consumo e da imagem perfeita, por que não levar isso ao grau máximo?”). A mutação crucial que está em jogo aqui é que passamos de sintomas gerados pelo conflito entre o proibido e o desejável para modalidades de sofrimento que oscilam da impotência à obrigatoriedade.

O poder perdeu a vergonha
Esse estado de coisas passou por uma abrupta transformação a partir do segundo mandato de Dilma Rousseff. É como se chegássemos a uma espécie de crise do padrão hegemônico da lógica de condomínio. E é na crise que conseguimos ver melhor do que uma forma de vida é feita. Emerge uma cultura que não confia mais na geografia da exclusão administrada e que, por outro lado, não se contenta apenas com “sinais de riqueza aparente”, sem uma boa história que os justifique. Há uma revolta contra o excesso de síndicos, percebida pela direita como corrupção e pela esquerda como envelhecimento de nossos esquemas de representação. Chegamos ao ponto terminal de nossa demanda por novos pactos, ainda que indecentemente orientados para a proteção de antigos privilégios. A segregação que antes se fazia a distância e sem afetação direta, conforme a assepsia impessoal que vigora na violência silenciosa dos condomínios, agora perdeu a vergonha e proclama abertamente seu mal-estar contra essa proximidade indesejável dos pobres. A antiga tolerância benevolente, com ou sem democracia racial, tornou-se ódio explícito. O poder perdeu a vergonha, em nome do medo e da inveja. Desaprendemos a lidar com a diferença, maltratada por anos de identidade artificialmente produzida intramuros.

Tudo isso pode ser atribuído a um desencadeamento preciso, ainda que sua causa seja completamente imaginária: a percepção social de que as classes que detinham o poder foram derrotadas nas urnas. A própria natureza condominial do poder é posta em questão. Segundo o mito que lhe corresponde, o poder entregue a Lula anos atrás, pelas classes médias, para um determinado experimento político, não foi devolvido. Isso só foi possível graças a esse estranho fenômeno brasileiro, sem equivalente europeu (como notou Jessé de Souza), que é produzir uma classe média que se entende como radical e revolucionária. Não é por outro motivo que nossos epígonos da direita de ocasião passem seu tempo a denunciar o espírito falsário, hipócrita e traidor dos sequazes do partido de Dilma. De certa forma, isso é tudo verdade. Desse ponto de vista, “as coisas não saíram como nós combinamos”; na hora de devolver o patrimônio, o síndico (ou a síndica) se apossou dele contra a vontade dos que se acreditavam donos do poder.
Portanto, o ponto nevrálgico desse novo mal-estar não é a luta de classes, mas oressentimento de classe. A expressiva alteração de padrões de ganho e consumo que ocasionaram a passagem de milhões de pessoas da miséria faminta para a pobreza e da pobreza para a nova classe batalhadora não se fizeram acompanhar de uma alteração na distribuição dos bens simbólicos culturais e sociais. Lembremos que durante esses anos de crescimento, pela curva de Gini e confirmando a teoria de Thomas Piketty, os pobres ficaram mais ricos, mas os ricos ficaram ainda mais ricos. Lembremos que, para Karl Marx, a luta de classes traduz um antagonismo de interesses decorrente da divisão social do trabalho, entre os que possuem os meios de produção e os que vendem sua força de trabalho. O que temos no Brasil não é uma tensão entre capitalistas e proletários, ou uma rebelião dos desempregados pelo sistema, excluídos para fora dos muros das fábricas, mas uma espécie de ressentimento social generalizado. O raciocínio economicista tradicional considera que renda e padrão de consumo são suficientes para caracterizar a posição de classe. Segundo essa mesma simplificação, ascender de classe é diminuir sofrimento e no seu conjunto rumar para o estado de bem-estar social. Inversamente, cair de posição constitui o medo que rondará qualquer conquista de um indivíduo, grupo ou família. Ora, quando a nossa posição de classe se altera, ou é percebida como potencialmente alterável, isso é sempre uma ameaça ao nosso narcisismo, vale dizer, à nossa gramática de reconhecimento. Contra essa ameaça, mobilizamos formas mais simples de reasseguramento identitário, como que para confirmar que sabemos muito bem o que somos. Realizamos uma espécie de redução do tamanho do mundo, correlativa do engrandecimento do eu. Surgem assim dualismos simplificadores: negros ou brancos, ricos ou pobres, mulheres ou homens, nortistas ou sulistas, esquerdopatas ou coxinhas, inimigos necessários para nos lembrarmos, patologicamente, quem somos “nós” e onde estão “eles”.
Reencontramos aqui nosso par de afetos condominiais, o medo e a inveja. Mas agora eles podem ser pensados como motor para um ressentimento de classe, de gênero e de etnia. Essa segunda forma de ressentimento social decorre da percepção de que existem muros que não são solúveis por programas como Minha Casa, Minha Vida ou Bolsa Família. Existem muros que interiorizamos como condição de classe, diante dos quais a ascensão social pode trazer mais sofrimento, e não menos. Sigmund Freud descreveu esse estranho sofrimento daqueles que são arruinados pelo sucesso, ou seja, essa imperiosa força destruidora que se abate sobre aquele que alcança um êxito que ele mesmo não consegue reconhecer ou justificar como autêntico ou merecido. É assim que ele facilmente se cria situações, inconscientemente determinadas, para que a culpa por ter triunfado seja expiada por meio de autopunições. Dessa maneira, ele se reconcilia com os que ele teria deixado para trás em sua carreira de prosperidade, fazendo uma espécie de homenagem, imaginária e sintomática, às suas próprias origens.

Os iguais e o Outro
Uma terceira forma de ressentimento de classe acontece na vida em forma de condomínio. Nela, supostamente todos estão em condições de igualdade, ainda que artificialmente produzida, de tal maneira que as pequenas diferenças são insuportáveis. Por outro lado, as grandes diferenças são tornadas cada vez mais invisíveis, os funcionários entram pela porta dos fundos, usam uniformes, são substituíveis por empresas que administram e terceirizam os serviços domésticos de modo impessoal. Ora, para esses funcionários anônimos, é uma grande aspiração serem reconhecidos como “gente” e serem portadores de uma “dignidade moral” que está ligada ao tipo de sacrifício que a vida lhes impõe. Notemos que não está em jogo aqui apenas uma diferença de renda e capital entre patrões e empregados, mas a distância entre “ser alguém” que pode se dedicar ao autoenriquecimento, ao cultivo de si e ao bom gosto, em uma vida orientada pela busca do prazer, e a condição de “vida instrumental”, ou seja, daquele que deve se dedicar ao sacrifício em nome de uma aposta incerta em um futuro melhor, quiçá apenas para seus filhos. O ressentimento de classe avoluma-se dramaticamente quando os padrões de consumo, estimulados pelos governos lulistas, disseminam o acesso a bens simbólicos, antes marcas “exclusivas” da classe média, tais como viagens de avião, estudo universitário, aquisição de automóveis e moradia própria. A indeterminação relativa do valor distintivo de tais signos de classe inverte os polos condominiais da inveja e do medo. Aquele que pode viajar se ressente que não é realmente reconhecido como igual, e aqueles que garantiam suas identidades no clube restrito dos iguais se ressentem da perda do privilégio que antes tinham nos aeroportos, nas exposições de arte, nos círculos de consumo particular.
A quarta forma de ressentimento de classe, que podemos associar com a crise da lógica de condomínio, decorre da percepção, retrospectiva, de que nosso sacrifício se realizou em nome de algo em que não valia a pena acreditar. Ver o vizinho subir na vida pode ser tremendamente destruidor para os laços de classe que antes afirmavam a pertinência a uma mesma forma de vida. A tentação de interpretar que isso só foi possível porque de alguma maneira ele trapaceou as regras é muito grande. Uma classe e os grupos sociais que dela participam deveriam ser definidos também pelo tipo de sacrifício e pelas regras que tornam o merecimento de suas conquistas um fato legítimo ou iníquo. Diferentes políticas do sofrimento concorrem entre si quanto ao “em nome do que” vale a pena sofrer, e algumas são mais vitoriosas que outras. Estas adquirem força para estabelecer a fronteira entre o sofrimento que devemos aceitar, como um fato de natureza, e o sofrimento pelo qual é necessário lutar para transformar o mundo ou a nós mesmos. O ressentimento aparece aqui como uma patologia do reconhecimento que se baseia na suposição de que o Outro é mais poderoso e potente do que ele realmente é e que ele foi injusto conosco. Seguimos a lei e não fomos recompensados. O ressentido é no fundo alguém convicto de que a vida ou o destino lhe devem algo e que não foi em nome próprio que ele se engajou em uma rota de sacrifícios e sofrimentos, mas em nome de uma promessa que o Outro lhe fez. É basicamente pela exploração orquestrada desse tipo de ressentimento que se explica a força política da bancada da bala, reunida com a bancada da fé, agenciada por um síndico como Eduardo Cunha. Afinal, há uma longa história pela qual a teologia política determinou nossas narrativas de sofrimento.

Christian Ingo Lenz Dunker
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e autor de Mal-estar, sofrimento e sintoma (Boitempo).


Ilustração: Bruno Maron