As recentes revelações de espionagem envolvendo os EUA pautaram inúmeros memes na internet.Em uma fotomontagem ficcional, um garotinho interpela Obama: “Meu pai disse que você espiona a nossa vida”. “Ele não é o seu pai!”, responde o presidente, aludindo à informação sobre relações extraconjugais da mãe do garoto, obtida de maneira privilegiada. Essa é a forma bem-humorada de lidar com a exposição do cotidiano a um poder invisível capaz de usar o que sabe contra os cidadãos, para, no mínimo, favorecer interesses de Estado ou corporativos, intimamente ligados no capitalismo norte-americano.


A montagem do sistema de vigilância global coincide com a construção da hegemonia norte-americana a partir da segunda metade do século XX. Até os anos 1940, a política de isolamento diante das potências europeias, bem como as intervenções restritas às Américas do Norte e Central, não levou ao desenvolvimento de um aparato de espionagem externo pelos EUA. Além do Ministério da Defesa, a principal agência de inteligência era o FBI, que se voltava para assuntos internos, como a vigilância de grupos fascistas, socialistas e anarquistas. A  Segunda Guerra Mundial levou à criação de uma agência em 1941, a OSS, dissolvida após o conflito.



No mundo pós-1945, a rivalidade das duas superpotências emergentes, Estados Unidos e União Soviética, criou uma polarização conhecida como Guerra Fria. Militarmente, a disputa por hegemonia manifestou-se numa corrida armamentista que atemorizou gerações quando fabricaram artefatos nucleares capazes de destruir várias vezes o planeta. Geopoliticamente, as superpotências estenderam zonas de influência por várias nações. Não por acaso, o maior símbolo da época foi o Muro de Berlim, construído em 1961 para separar a capital da Alemanha, sede de dois países criados em 1947 com regimes distintos, o capitalismo a Oeste e o socialismo a Leste. Todavia, o padrão de atuação dos EUA e da URSS não foi o embate direto, mas a espionagem e o suporte a grupos simpatizantes, dentro ou fora de suas áreas de influência. Por isso, durante a Guerra Fria, o papel dos serviços de inteligência foi considerado crucial.



Nesse contexto, foram criadas a CIA (Central Inteligence Agency) e a NSA (National Security Agency). A primeira surgiu em 1947 como uma agência civil independente. Destinava-se a coletar e analisar informações sobre grupos e países estrangeiros. Quando os dados eram sigilosos, utilizava espionagem humana e/ou tecnológica, chegando a mandar construir aviões para fotografar bases soviéticas. A agência também realizava operações clandestinas no exterior para desestabilizar os países-alvo: plantavam notícias falsas na imprensa, incitavam manifestações, treinavam tropas simpáticas, capturavam e torturavam pessoas, e promoviam intervenções armadas.



Na América Latina, a primeira dessas operações ocorreu na Guatemala, em 1953-1954, quando a CIA organizou, com exilados guatemaltecos, um golpe de Estado para depor o presidente eleito Jacobo Arbenz Guzmán. Sob a alegação de expansão do comunismo soviético, o alvo foi a nacionalização de terras improdutivas pertencentes à multinacional United Fruit Company, na qual tinham negócios o diretor da CIA e o secretário de Estado americano, respectivamente, os irmãos Allen e John Foster Dulles. Poucas vezes a imbricação dos interesses geopolíticos e corporativos foi tão explícita como nesse episódio, pois as atividades da agência visavam justamente salvaguardar esses interesses, como ficou claro no seu apoio aos golpes militares da América do Sul e em outras ações pelo mundo.



Já a NSA foi criada em 1952, vin­culada ao Departamento de Defesa. Servia, porém, aos outros serviços de inteligência porque atuava na espionagem e contraespionagem eletrônica, envolvendo criptografia, não só de inimigos, mas também de aliados dos EUA. Durante a Guerra Fria, centrava-se tanto na escuta de conversações seguras entre diplomatas, políticos e militares, quanto na quebra de códigos e interceptação de dados enviados por satélites espiões, testes de armas de inimigos ou outros mecanismos de rastreamento. Tinha o maior orçamento e também era a mais secreta das agências, a ponto de o governo norte-americano ter negado por anos a sua existência.



A NSA tornou-se a agência que lidera a Ukusa, pacto de troca de informações sigilosas firmado em 1943 entre os EUA e o Império Britânico. Em 1946, Austrália, Nova Zelândia e Canadá integraram o acordo, conhecido como Os Cinco Olhos.



Com o desenvolvimento tecnológico, a partir dos anos 1970, a Ukusa passou a contar com o projeto Echelon, uma rede de vigilância global baseada em satélites, estações terrestres, postos de escutas e outros recursos situados em territórios, navios e embaixadas. Por meio dessa rede podia-se interceptar e analisar qualquer comunicação eletrônica no mundo, via cabo ou wireless, feita a partir de telefones fixos, rádio e micro-ondas.



O fim da Guerra Fria reorientou o trabalho dessas agências, pois o principal inimigo deixara de existir e os Estados Unidos se tornaram a única superpotência militar. Como a retórica que a mantinha perdeu sentido, as atividades de inteligência foram desviadas e justificadas, sobretudo após 11 de setembro de 2001, para os grupos e Estados considerados terroristas. Muitos haviam sido financiados pela CIA para atender aos interesses geopolíticos americanos, a exemplo dos talebans no Afeganistão ou Saddam Hussein no Iraque, cujas guerras envolveram o interesse das petrolíferas no Oriente Médio.



Todavia, com a perda do poderio econômico estadunidense, a CIA e a NSA também espionaram empresas estrangeiras e repassaram informações privilegiadas obtidas pelo Echelon às corporações americanas. O estudioso brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira menciona, entre outros casos, o pedido feito à CIA pelo presidente Bill Clinton para que fossem espionados fabricantes japoneses que projetavam automóveis com zero emissão de gases. Ao repassar a informação para a Ford, Chrysler e General Motors, Clinton parece ter atualizado uma famosa frase proferida, em 1946, pelo presidente dessa última empresa, quando era candidato ao Senado: “O que é bom para a General Motors é bom para os EUA, e vice-versa”.



A frase continua verdadeira e expressiva do capitalismo norte-americano, se considerarmos a imbricação entre o governo, as agências de inteligência e as gigantes da informática que surgiram com a expansão da comunicação por computador, principalmente a internet. Os documentos divulgados pelo ex-funcionário da NSA Edward Snowden mostram a existência de uma versão atualizada da rede Echelon para um contexto digital.



Como explica Stéphane Bortzmeyer, citado em artigo da Agência Carta Maior, o sistema Prisma é capaz de acessar informações em servidores das redes sociais do Google, Facebook e outras, segundo os ativistas da informática com a conivência das empresas. Outro sistema, o Boundless Informant, volta-se aos metadados de telefonia e informática, bem como à medição da segurança digital de um país. Já o X-Keyscorey é um mecanismo de busca da NSA capaz de recuperar informações de qualquer pessoa na rede. O programa americano é apenas a versão mais potente daqueles usados por países, como a França.



Assim, é preciso lidar com algumas heranças da Guerra Fria: além do aparato militar, o atual poderio dos EUA na espionagem das agências de inteligência; sua influência comprometedora sobre as megacorporações e sobre os governos aliados; e, principalmente, a infraestrutura e o controle de fluxos de informação centralizados em seu território. O momento atual é crucial para definição de legislação, infraestrutura alternativa e políticas democráticas para a comunicação digital, que assegurem os objetivos e direitos dos usuários comuns, por vezes conflitantes com os dos governos e das grandes corporações. Se estamos longe da utopia prometida na internet, tampouco precisamos viver o pesadelo de um Big Brother digital.