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quinta-feira, 30 de maio de 2013

(Vejam é impressionante este relato, certamente este indivíduo apoiaria um regime nefasto... deixem aqui seus comentários)

O senso comum sobre a tortura e a propaganda


É terrível ouvir alguém dizer que foi torturado, mas mereceu. E é mais terrível ainda a conclusão da vítima, de que os torturadores o corrigiram, porque ele estava errado. Essas são as opiniões de Amado Batista, mantidas 40 anos após o ocorrido: quem é contra o governo e quer “tomar o país à força”, tem mais é que ser torturado, porque está errado e precisa ser corrigido.
O cantor Amado Batista revelou à jornalista Marília Gabriela, em entrevista no programa "De Frente com Gabi", dia 27 de maio, ter sido torturado durante a ditadura militar, por ajudar pessoas consideradas subversivas na época. Ele trabalhava em uma livraria e teria conseguido livros “subversivos” para alguns intelectuais, além de ter feito o favor de enviar dinheiro para um professor universitário de um grupo clandestino. 

Amado Batista, hoje com 62 anos de idade, contou que os militares chegaram até ele porque investigaram os seus clientes da livraria. Pelo contexto da época, pode-se concluir que essa tal “investigação” realizada pelos militares foi a de costume: prenderam e torturaram clientes da livraria, que acabaram revelando com quem conseguiram os livros encontrados com eles. O cantor passou dois meses preso, sob tortura: "me bateram muito. Me deram choques elétricos". 

Apesar de ser doloroso saber que alguém foi torturado, nesse caso o que mais impressiona é a opinião de Amado Batista a respeito das torturas que foi vítima, publicada no site Yahoo! TV: “(...).Eu acho que mereci. Fiz coisas erradas, eles me corrigiram, assim como uma mãe que corrige um filho. Acho que eu estava errado por estar contra o governo e ter acobertado pessoas que queriam tomar o país à força. Fui torturado, mas mereci", afirmou ele, que comparou seus torturadores a "uma mãe que corrige um filho". A lógica simplista de Amado Batista é semelhante à da mãe de um militante de esquerda preso pela Operação Bandeirantes (OBAN), em São Paulo, em 1970, que lhe disse que se tinha apanhado daquele jeito é porque na certa havia merecido. 

É terrível ouvir alguém dizer que foi torturado, mas mereceu. E é mais terrível ainda a conclusão da vítima, de que os torturadores o corrigiram, porque ele estava errado. Essas são as opiniões de Amado Batista, mantidas 40 anos após o ocorrido: quem é contra o governo e quer “tomar o país à força”, tem mais é que ser torturado, porque está errado e precisa ser corrigido. Ou seja, para ele, a tortura é um instrumento válido e eficaz em casos assim. 

Vivenciei a indiferença com a tortura em São Paulo, no início dos anos 90, quando cheguei próximo à delegacia do Campo Belo, bairro na região do aeroporto de Congonhas. Eram quase nove horas da manhã, havia bastante movimento nas ruas, várias pessoas caminhando pelas calçadas, e alguém sendo torturado dentro da delegacia. Ouvia-se na rua seus gritos, as pancadas e os gritos dos policiais que torturavam e interrogavam. Olhei em volta, não havia ninguém espantado. Perguntei aos comerciantes das lojas próximas, eles disseram que aquilo era “normal”. Em frente à delegacia e no pátio interno, havia dezenas de policiais militares, conversando e fumando, na maior tranquilidade. Fui embora atordoado, por não ter feito nada, mesmo sabendo que não havia o que eu pudesse fazer ali, e mais ainda porque ninguém, mas ninguém mesmo demonstrara solidariedade com quem estava sendo espancado pela polícia.

Esse é um dos desafios para acabar a tortura de presos, que ainda continua prática cotidiana e generalizada no Brasil: o senso comum dominante é que quem errou (assaltou, matou) tem mesmo que apanhar, e nesses casos cabe à “lei” (polícia, militares, guardas penitenciários etc.) aplicar essa punição física. Continuar existindo a lógica medieval da punição física a quem comete erros – na interpretação popular e na de quem está com o poder de punir – é algo assustador, inclusive por colocar nas mãos de funcionários públicos esse “direito” de cometer as piores barbaridades com pessoas indefesas. 

Advogados que militam na área penal sabem como é difícil encontrar pessoas pobres que considerem absurda a tortura de seus parentes pelas polícias civil e militar, de tão “normal” que é o procedimento. Se a tortura é normal, porque denunciá-la e entrar com ação na Justiça? Se as ações policiais são “assim mesmo”, protestar para que? 

Felizmente, há sinais de mudança no ar. O protesto contra a tortura dos presos em São Pedro de Alcântara (SC), tornado público através de incêndios de ônibus em várias cidades catarinenses no início de 2013, revelou para o mundo inteiro as práticas de parte dos funcionários públicos brasileiros, inclusive diretores, delegados e comandantes, que trabalham em penitenciárias e nas polícias civil e militar. 

Romper com a lógica dominante da utilização da tortura para extrair confissões de suspeitos e para punir adicionalmente quem cometeu crimes, ou não obedeceu às ordens dos carcereiros, hoje é possível no Brasil. Há a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, com status de ministério, há secretarias equivalentes em vários governos estaduais, há a Comissão Nacional da Verdade, levantando casos de tortura, assassinatos e desaparecimentos durante a ditadura militar, enfim, o contrário dos aparatos repressivos dos governos naquele período, que incluía, inclusive, cursos de formação sobre tortura com professores estrangeiros, com direito a pós-graduação na Escola das Américas, construída no Panamá pelos Estados Unidos para difundir novas técnicas de repressão para oficiais das Forças Armadas da região. 

É possível alterar o senso comum a respeito da tortura no Brasil com muita propaganda, de boa qualidade, veiculada por bastante tempo e de diversas formas. Para isso, é fundamental ter em primeiro lugar pesquisas de opinião, quantitativas e qualitativas, que mostrem as opiniões dos vários segmentos da população a respeito da tortura. Há algumas diferenças significativas, entre o “povão”, e entre essa maioria e, por exemplo, a “classe média” e os ricos e muito ricos.

Adicionalmente, pesquisar o que pensam a respeito os homens e mulheres “operadores do Direito”: advogados, promotores, juízes, desembargadores, ministros. Essa parcela específica é muito importante nesse esforço para reduzir a tortura e outros crimes cometidos por agentes públicos contra a população. Mas o que se sabe dela é que a maioria, infelizmente, partilha do senso comum, e uma parcela professa um reacionarismo impressionante. O detalhe é que são pessoas cuja atuação cotidiana incide nos casos concretos de tortura, por influência ideológica, omissão ou até conivência. 

Saber o que pensa a maioria da população brasileira a respeito da tortura permitirá encontrar os caminhos para a propaganda produzir as mudanças necessárias nas opiniões, rompendo o senso comum e provocando na maioria das pessoas indignação e repulsa em relação à tortura dos presos comuns, assim como se conseguiu em vários momentos, em plena ditadura, em relação à tortura dos presos políticos. 

Tomara que os governos se animem a fazer propaganda com essa finalidade, porque com um trabalho consistente de anúncios em todas as mídias, ações e materiais promocionais etc., combinado com ações efetivas dos executivos, em pouco tempo haverá resultados positivos, inclusive em relação à violência contra a mulher, contra os jovens e no trânsito, porque todas elas têm em comum a mesma matriz. 

E... o governo federal e os estaduais, mais as universidades, os movimentos sociais, as entidades empresariais e o conjunto da sociedade precisam agir efetivamente para acabar com a tortura cometida por agentes públicos, sejam eles guardas penitenciários, policiais civis e militares, ou de qualquer outro setor, também porque os presos torturados descobriram o caminho para protestar com grande repercussão midiática – ainda que prejudicando a população pobre, que depende de ônibus para trabalhar e estudar.

(*) Milton Pomar é geógrafo.

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