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quinta-feira, 30 de maio de 2013

Há 40 anos, o terrorismo de direita chamava 

à derrubada do governo no Chile

“Aspiramos ser um anti-partido político, a representar todos os chilenos por cima das bandeiras partidárias”
Maurício Brum
Especial para o Sul21

Em fins de maio de 1973, o governo de Salvador Allende era fustigado por todos os lados, à esquerda e à direita. Os aliados defendiam a necessidade de avançar mais rápido nas reformas, sem negociar nem dar chance para que a reação se fizesse real, e a oposição buscando anular a qualquer custo as cada vez mais tímidas tentativas do governo de implantar sua agenda. Há quarenta anos, levar adiante a Via Chilena ao Socialismo já não era apenas questão de vontade: era quase uma impossibilidade. Qualquer projeto, por mínimo que fosse, dependia de acordos políticos que iam se fazendo menos plausíveis conforme as crises se agravavam. Tentar um avanço com arestas ditatoriais, como pedia a ala mais radicalizada da Unidade Popular, contrariava a ideologia de Allende – e era, de qualquer modo, inviável. Não haveria sustentação militar para tanto.
A crise, real ou fabricada, era tangível em diferentes setores. A greve da mina de cobre El Teniente, uma das maiores do país, completara um mês no dia 19 de maio. O general Carlos Prats, comandante do Exército leal ao governo, encontrava-se na Europa para uma visita oficial – e, embora seu substituto, Augusto Pinochet, ainda fosse visto como confiável, suas mostras de apoio a Allende nunca haviam sido tão convictas quanto as do superior. Nos mercados faltavam alimentos e a inflação continuava a crescer de forma alarmante, embora os depósitos estivessem cheios, com armazéns vendendo produtos clandestinamente a preços muito acima do valor tabelado. Em meio às dificuldades crescentes, a Unidade Popular passou a contar com mais uma, que julgava superada: o reaparecimento de Roberto Thieme, influente secretário-geral da Frente Nacionalista Patria y Libertad (FNPL).
O Patria y Libertad costumava marchar armada pelas ruas de Santiago: confrontos com a Unidade Popular e destruição da infra-estrutura do país.
Uma improvável guerrilha conservadora
O Patria y Libertad havia surgido em 1º de abril de 1971, baseado em uma premissa naquele momento mentirosa: que a esquerda chilena estaria em minoria nas eleições municipais que se celebrariam no país dali a três dias. Aquele pleito seria o primeiro realizado após a vitória de Allende na corrida presidencial, em setembro do ano anterior, e serviria como um termômetro inicial da aceitação do novo governo – que, de fato, havia sido eleito sem maioria absoluta, com pouco mais de 36% dos votos válidos. Se Allende só chegara ao poder graças à confirmação do Congresso – não havia segundo turno, e cabia aos legisladores optar entre os dois candidatos mais votados –, os conservadores acreditavam nas eleições municipais para comprovar seu argumento de que a Unidade Popular governava sem legitimidade. No ato de fundação da FNPL, o líder Pablo Rodríguez Graz afirmou:
Aspiramos [...] a ser um anti-partido político, a representar todos os chilenos por cima das bandeiras partidárias, mas não poderíamos ser alheios à próxima contenda eleitoral. O Frente Nacionalista lutou com todos os seus meios para que no domingo [4 de abril de 1971] derrotemos o marxismo nas urnas. [...] Mas, se somos derrotados, [...] tenham vocês a convicção de que os que aqui estão presentes e os que não puderam vir, seguiremos irredutivelmente nesta luta antimarxista onde quer que estejamos”.
O discurso nunca esteve tão errado quanto nessa ocasião. Em 4 de abril de 1971, as urnas deram à UP sua única maioria absoluta: 51% dos votos somados no país inteiro foram para candidatos da coalizão de esquerda, e ao Patria y Libertad só restou levar ao pé da letra a promessa de “lutar”, tornando-se a mais forte organização paramilitar contrária ao governo. Jamais chegariam a se identificar como guerrilheiros, um termo que vinha sendo amplamente aplicado aos grupos armados de esquerda que pipocavam pelo continente, e preferiam dizer que lutavam pelo bem nacional. Certo é que seus militantes estiveram por trás de inúmeros atentados terroristas contra a infraestrutura do Chile, na campanha por agravar as dificuldades econômicas contra as quais Salvador Allende se debatia.
Um galã para derrubar Allende
O movimento nacionalista explodiu oleodutos, derrubou linhas elétricas e pontes, e entrou em confronto com as manifestações favoráveis à Unidade Popular. Se estourava uma greve patronal para estremecer ainda mais a situação, como a paralisação dos donos de caminhões em outubro de 1972, os militantes da FNPL estavam invariavelmente oferecendo suas armas para ameaçar aqueles que não se juntassem ao protesto. O símbolo do Patria y Libertad era uma corrente rompida à esquerda e à direita, para sugerir independência de qualquer viés partidário – apesar de sua nítida simpatia ao Partido Nacional, o mais conservador da época. A insígnia lembrava, ainda, uma aranha negra, e foi por esta alcunha que o grupo se fez conhecido. Numa estética que remetia às passeatas vistas na Alemanha ou Itália do fim dos anos 30, os militantes da Frente Nacionalista faziam demonstrações marchando armados por Santiago, com seu símbolo estampado em braceletes e em grandes cartazes.
Roberto Thieme, o galã da oposição foi dado como morto, mas reapareceu espetacularmente e, anos depois, chegou a casar a filha de Pinochet
Roberto Thieme uniu-se à causa do grupo desde o princípio. Belo e galanteador, era famoso por suas conquistas amorosas – muitos anos depois, em 1992, chegaria a se casar com a filha mais nova de Augusto Pinochet. Nascido numa próspera família de imigrantes alemães, Thieme vinha aumentando a fortuna como empresário do setor moveleiro e dedicava as horas vagas à paixão de pilotar aviões. Nascera em 1942, quando seu pai, Walter Thieme, ainda militava no braço chileno do Movimento Nacional-Socialista. O velho Walter morreria sem acreditar no Holocausto, afirmando que o massacre de judeus não passava de uma invenção dos Aliados para que a doutrina nazista jamais pudesse ganhar força novamente.
Quando assumiu o cargo de secretário-geral do Patria y Libertad, Roberto Thieme logo se tornou uma das figuras mais emblemáticas da oposição no país. Era, porém, um tipo escorreito. À dificuldade de comprovar sua participação nos atentados, somava-se a vontade cada vez menor das forças de segurança de cooperar com o governo e perseguir os grupos armados mais ativos – além da FNPL, o Comando Rolando Matus, ligado ao Partido Nacional, vinha se destacando pelas ações violentas. Foi com certo alívio que as lideranças da Unidade Popular encararam a notícia que emergiu em todas as rádios do país em 23 de fevereiro de 1973, quando Thieme foi dado como morto.
Sumiço cinematográfico, ressurgimento explosivo
No início daquela tarde de verão, no aeroporto Carriel Sur de Concepción, ele avisou a alguns de seus colegas que pilotaria seu bimotor em um curto voo de espionagem para comprovar a existência de um acampamento de “guerrilheiros marxistas” na região. Poucos sabiam da sua verdadeira estratégia. Quinze minutos após a decolagem, voando em direção ao litoral, Thieme chamou a torre de controle anunciando uma emergência: havia ocorrido um incêndio a bordo, a cabine estava repleta de fumaça e o avião despencava verticalmente na direção da desembocadura do rio Itata. Enquanto o controlador de voo pedia calma, Thieme respondia que sua visibilidade era nula. E acrescentou: não conseguiria recuperar a estabilidade do avião.
Em seguida, o secretário-geral do Patria y Libertad desligou o rádio. As vozes foram substituídas pela estática, e o controle de voo chamou apressadamente os helicópteros de resgate. Afirmou-se que uma mancha de óleo foi vista na costa próxima ao ponto informado pelo piloto, e logo correu a informação de que a queda era uma certeza. Roberto Thieme estava desaparecido e, muito provavelmente, morto. Mas o bimotor não havia caído. Na hora em que os helicópteros avistaram a suposta mancha, o avião já estava distante do suposto local do acidente. O piloto voou até o lado oposto do mapa, margeando a cordilheira, e pousou secretamente em uma propriedade rural ao sul, perto da cidade de Chillán. Ali, seu avião foi repintado e passou a estampar uma matrícula argentina. Thieme decolou para o país vizinho na madrugada seguinte.
Com uma identidade falsa, o opositor de Allende assentou-se em Mendoza, próxima à fronteira, e escolheu um vasto descampado da região para iniciar um acampamento onde treinaria seus asseclas. Viajou a Buenos Aires para encontrar-se com um alto oficial da ditadura do general Alejandro Lanusse, para quem explicou sua ideia e obteve a garantia de que não teria os planos atrapalhados. Também conseguiu contatos para obter armas e mantimentos, facilitando a instalação de uma base de treinamentos. O esquema começou a funcionar: os militantes viajavam à Argentina num avião cargueiro, em grupos de 25, para uma preparação de um mês. Embora o acampamento pudesse receber até 500 pessoas, definiu-se que o contingente não superaria 100 ao mesmo tempo, para evitar uma traição que dizimasse as aranhas negras.
Mas, em 2 de maio, quando fazia um de seus voos para uma pista particular no interior da Argentina, Thieme teve um problema real no avião e se viu obrigado a fazer um pouso de emergência. Ele e seu colega a bordo, Miguel Sessa, tiveram de percorrer quinze quilômetros de estrada a pé, até serem parados de surpresa por três carros da polícia argentina. A região de Mendoza vinha sendo palco de ações dos montoneros e, ironicamente, os dois chilenos foram confundidos com estrangeiros que estariam colaborando com o extremismo de esquerda. Levados a um quartel da região, foram interrogados com raiva antes que Thieme convencesse os policiais a consultar seus contatos no Exército Argentino. Uma hora depois, os xingamentos e ameaças viraram convites para um café, pedidos de desculpas e oferecimento de ajuda.
Portão da chamada Colonia Dignidad, uma das bases de apoio do Patria y Libertad, que durante a ditadura de Pinochet seria usada como centro de torturas
A nova investida do Patria y Libertad
Apesar da tentativa de abafar o caso, a atuação desastrada das forças de segurança argentinas colocou o assunto nas páginas dos jornais, com direito a fotos do avião. Roberto Thieme, dado como desaparecido e provável morto desde fevereiro, havia sido localizado vivo na província de Mendoza. A notícia atravessou a cordilheira e saiu nos jornais chilenos em 4 de maio, abalroando a Unidade Popular com força redobrada: na mesma tarde, um conflito político em Santiago havia resultado em morte. Desta vez, a ala jovem do Patria y Libertad havia caído numa emboscada com armas de fogo. O militante Mario Aguilar caiu sem vida. Ernesto Miller, meio-irmão de Roberto Thieme, ficou em coma após levar sete tiros, mas se recuperou nos dias seguintes.
Amparados pelas autoridades da ditadura argentina, Thieme e Miguel Sessa pediram asilo político no país, mas não duraram muito tempo ali. Sessa regressou de forma clandestina ao Chile para seguir organizando brigadas armadas. Thieme fez um breve périplo ao Paraguai e depois voltou a Buenos Aires, onde continuaria levantando equipamentos para a base no interior de Mendoza. Frente ao calor dos acontecimentos, entre 20 e 25 de maio de 1973, o Patria y Libertad organizou no sul chileno seu Primeiro Congresso Nacional de Dirigentes. Dali saiu uma declaração defendendo a “revolução nacionalista”, que pretendia firmar as bases da independência da FNPL. Também era um chamado ao golpe:
“O nacionalismo, como manifestação revolucionária, não considera possível dirimir este conflito [político] até as eleições presidenciais de 1976. [...] O nacionalismo considera inevitável uma definição a muito curto prazo para resolver a disjuntiva do Chile. Prognostica a agonia e morte das concepções políticas tradicionais que se mostraram incapazes de encarar o marxismo totalitário eficientemente”.
Em junho de 1973, com a participação declarada ou oculta do Patria y Libertad, começaria a sequência mais vigorosa de ataques contra o governo Allende.

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