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terça-feira, 19 de agosto de 2014

A militarização da polícia: o espelho de Ferguson

A militarização da polícia: o espelho de Ferguson


A brutalidade dos policiais na cidade norte-americana mostra que a simples desmilitarização pode não ser suficiente para conter abusos

por Antonio Luiz M. C. Costa — publicado 18/08/2014

Polícia em Ferguson, no Missouri, EUA
Com máscaras e armamentos pesado, policiais observam manifestante em Ferguson, nos Estados Unidos. A militarização da polícia local preocupa


Não bastaram meio século da Lei dos Direitos Civis, 46 anos da morte de Martin Luther King e cinco anos de governo de um presidente negro. As manifestações em Ferguson, município da região metropolitana de Saint Louis, Missouri, mostram que a questão racial continua vivíssima nos Estados Unidos. Foram deflagradas em 9 de agosto pela execução com seis tiros de Michael Brown, negro de 18 anos, desarmado, cujo crime foi discutir com um policial que lhe exigiu andar pela calçada e não na rua. Mais tarde, a polícia alegou que Brown era suspeito de roubar um pacote de cigarros de uma loja, mas o policial que o matou não sabia disso.
Mas além de evidenciar a persistência desse problema tão antigo, a crise trouxe à consciência do público e da mídia um fato até aqui pouco notado, embora já anunciado por episódios que foram do policiamento armado de pátios escolares e uso de armas de eletrochoque em crianças rebeldes ou civis inofensivos à caçada aos irmãos Tsarnaev após o atentado à Maratona de Boston de 15 de abril de 2013: a militarização da polícia nos EUA.
Tanto a execução sumária de Brown como a escala da violência que se abateu sobre a população negra nos dias seguintes mostram uma mentalidade de exército de ocupação, que trata cidadãos desprivilegiados como um povo inimigo, com as consequências que isso implica. Disparar sobre civis é aceitável e execuções arbitrárias desculpáveis. Quando um soldado abate um inimigo, não se questiona se a vítima fazia algo ameaçador o suficiente para justificar tal tratamento. O simples fato de estar do outro lado a torna um perigo a ser eliminado.
O jornal Washington Post, insuspeito de radicalismo, listou pelo menos quatro violações flagrantes da Constituição em Ferguson: 1) instituição de um toque de recolher, que o governo municipal não tem autoridade para impor; 2) proibição de filmar a repressão e prisão dos que a desobedeceram, quando a lei garante o direito dos cidadãos de documentar as ações policiais; 3) uso abusivo de balas de borracha, gás lacrimogêneo e canhões de som contra manifestantes pacíficos; e 4) clara discriminação racial nos critérios para deter e revistar suspeitos. Poderia citar também a recusa dos policiais a usar tarja de identificação – alguns chegam mesmo a se cobrir com máscaras, como se fossem black blocs. Práticas frequentes na ação da Polícia Militar brasileira, mas que na polícia civil dos EUA ainda causam estranheza suficiente para despertar polêmica.
O espetáculo de policiais armados com tropas de choque ou a bordo de blindados, apontando armas para manifestantes, tornou o debate inevitável. Apontou-se a tendência, crescente desde o 11 de Setembro, de o Pentágono fornecer às forças policiais armas de guerra e treinamento antiterrorista – às vezes, como no caso do chefe de polícia de Ferguson, incluindo uma passagem por Israel para aprender com seus métodos de repressão nos territórios palestinos ocupados.
Como teria dito Talleyrand a Napoleão, pode-se fazer qualquer coisa com baionetas, menos sentar-se nelas. Se policiais recebem armas sofisticadas, vão querer exibi-las e usá-las para afirmar sua autoridade e desencorajar desafios, se recebem treinamento antiterrorista, passam a encarar cada cidadão descontente como um terrorista em potencial, mesmo se atentados dessa natureza são excepcionais. Aprofunda-se uma cultura antidemocrática, de desconfiança mútua entre a população e a polícia que supostamente a protege e mantém a ordem em seu nome.
Vale ressaltar: até o dia 17, quando o governador do Missouri pediu a mobilização da paramilitar Guarda Nacional, toda essa repressão extremamente militarizada foi executada por uma polícia que, no papel, é estritamente civil. O que deveria levar ativistas brasileiros a questionar se a desmilitarização da Polícia Militar que têm reivindicado com ênfase desde os protestos de junho de 2013 é realmente o suficiente. Mentalidade, métodos e equipamento contam mais do que hierarquia e uniformes.
A polícia deveria ser recrutada de forma a refletir a diversidade da população e treinada em primeiro lugar quanto à sensibilidade para com as minorias e direito à liberdade de expressão e reunião e com programas de diálogo entre a polícia e comunidades locais, com reuniões regulares para discutir os problemas comuns e os métodos para manter a paz e a segurança.
Pode haver ocasiões, tais como saques, vandalismo e ação de grupos armados, que justifiquem uma repressão mais agressiva, mas as armas para esse fim devem ser guardadas a sete chaves para serem usados apenas por forças especialmente treinadas e autorizadas, com ordem expressa do governador ou outra autoridade civil eleita disposta a assumir a responsabilidade e impor limites explícitos a seu uso.

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