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segunda-feira, 23 de junho de 2014

Chile: uma democracia funcional para o capital?

Chile: uma democracia funcional para o capital?



Os dados revelam a existência de um espaço político que está cada vez mais longe do alcance popular, dominado por partidos políticos cada vez mais alheios


Micaela Lobos (*) - El Mostrador, Santiago do Chile

Arquivo




















Créditos da foto: Arquivo

Nos dias seguintes ao triunfo de Salvador Allende, Richard Nixon pediu a seu secretário de Estado, Henry Kissinger, para “fazer a economia do Chile gritar” (1) a fim de impedir a chegada da Unidad Popular ao poder. Essa declaração, que faz parte de um dos 350 documentos desclassificados há algumas semanas pela CIA, mostra a resistência ao primeiro governo eleito sob as normas de uma democracia liberal e que abertamente declarava não defender os interesses do capital. A história que se seguiu a isso é bastante conhecida.


Em um recente artigo, o professor Boaventura de Sousa Santos (2) analisa a relação entre capitalismo e democracia, observando que “o capitalismo só se sente seguro se é governado por quem detém capital ou se identifica com suas 'necessidades'”. No caminho contrário, está a democracia, entendida, em sua definição mais perfeita, como um governo das maiorias “que não têm capital nem razões para se identificar com as 'necessidades' do capitalismo”. Além disso, Boaventura ressalta que essas necessidades que são minoritárias “colidem” com as necessidades das classes trabalhadoras, referindo-se a um conflito distributivo entre quem concentra a riqueza e quem reivindica uma partilha mais equitativa dela.



Diante disso, como é possível que a democracia sobreviva em sistemas dominados por uma minoria acumuladora de capital? Há períodos que simplesmente acabaram em momentos nos quais as elites dominantes viram seus interesses ameaçados. No entanto, em grande parte do mundo, instalou-se uma democracia liberal, utilizada – segundo o autor argumenta – para evitar que as maiorias pobres cheguem ao poder, recorrendo a uma série de dispositivos legais e legitimados, tais como restrições ao sufrágio, leis de lobby, consagração e supremacia do direito à propriedade individual e repressão da atividade política fora da institucionalidade, entre outras. Soa familiar.



Após o governo da Unidad Popular, o golpe de Estado, 17 anos da ditadura cívico-militar e 24 anos de governos eleitos sob normas democráticas, a democracia chilena pode se sobrepor aos interesses das minorias? Quem são os que governaram o Chile e quais interesses eles representam? Desde já, essa não é uma resposta fácil de responder nem de construir. Mas é interessante esboçar uma aproximação para o caso chileno à luz das evidências recentes, que parecem ser amplamente aceitas e consensuais entre diversos setores políticos.



Recentemente, foi apresentado o relatório Auditoria à Democracia no Chile, elaborado pelo PNUD e no qual colaboraram diferentes centros de estudo (Centro de Estudos Públicos, Corporação de Estudos para a América Latina, Liberdade e Desenvolvimento, Projetamérica, Instituto Liberdade, Fundação Jaime Guzmán e Fundação Chile 21). O relatório, que analisa a qualidade da democracia, reconhece que, em que pese sua extensão formal, os princípios e ideais da democracia, tais como igualdade e controle popular do governo, continuando longe de serem realmente implementados.



Um elemento importante para esboçar uma resposta é saber quem está sendo eleito como governante. A supremacia dos partidos políticos em ocupar os cargos de eleição popular deixou pouco ou nada de espaço para candidaturas independentes e, com isso, a seus eleitores. Essa elitização do espaço da tomada de decisões de aprofunda com a existência de uma baixa rotação e alternância de autoridades em seus cargos, segundo consta no relatório. No caso co Congresso, o sistema eleitoral binominal contribuiu para sobrerrepresentar certos setores políticos e excluir outros, em processos eleitorais que “desde a volta da democracia foram altamente previsíveis e com escassa competência efetiva para a percepção dos eleitores”. Em que pese isso, nas últimas eleições, partidos e movimentos políticos que haviam sido excluídos de cargos de representação popular ganharam espaço, inclusive dentro da coalizão governante. E ainda, salvo algumas exceções, grande parte dessa conquista se deve a negociações e a pactos com os grupos políticos dominantes.



E essa crise de representatividade se somam os baixos níveis de confiança que as pessoas têm no Congresso e nos partidos políticos; em 2013, apenas 15% manifestavam ter muita confiança nos partidos. A distância é ainda maior quando se constata que a identificação das pessoas com os partidos políticos é baixa: em 2013, apenas 35% dos entrevistados disseram se identificar com algum partido. E mais: 51% acreditam que os partidos são compostos por políticos que atuam para promover seus próprios interesses.



O paradoxo é que as pessoas se veem forçadas a eleger e a se sentir representadas por políticos que fazem parte de grupos com os quais elas não se identificam e nos quais confiam pouco.



Mas essas percepções parecem ter seu correlato no comportamento eleitoral. O relatório identifica uma baixa prolongada desde 1989 na participação das pessoas com idade para votar. Naquele ano, 86% da população foram às urnas, cifra que chegou a 59,5% em 2009 e a 51,7% nas eleições presidenciais de 2013. Essa tendência não se reverteu em uma mudança na institucionalidade que permitiu a inscrição automática e o voto voluntário, uma realidade que confirma que quem está elegendo os representantes são cada vez menos pessoas, deixando o poder de decisão nas mãos de poucos. Talvez a reabertura do espaço a novos grupos políticos seja uma oportunidade para aumentar a participação.



Diante disso, não é de se estranhar que o capital se sinta seguro em um sistema político que está longe do controle popular. Tampouco deve surpreender o fato de a legislação trabalhista, instaurada na época de ausência democrática, tenha permanecido praticamente inalterada, favorecendo os grandes interesses econômicos e aumentando a desigualdade social. Atualmente, os trabalhadores têm praticamente nenhuma capacidade de incidir na distribuição da riqueza (baixa sindicalização, negociação coletiva limitada) e, como consequência, têm menos incidência ainda nas decisões que pesam sobre suas próprias condições de vida. 



Os dados revelam a existência de um espaço político que está cada vez mais longe do alcance popular, dominado por partidos políticos cada vez mais alheios aos interesses da sociedade, e que serviram muito bem aos interesses de uma minoria. Essa é a grande pedra no sapato para realmente poder construir alternativas.



(*) Jornalista e cientista político da Fundação SOL.



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