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segunda-feira, 21 de abril de 2014

Doutrina radical norteia ação de Putin na Ucrânia

Doutrina radical norteia ação de Putin na Ucrânia




Analistas veem influência do 'neoeurasianismo' sobre líder russo, que lamenta fim da URSS; teoria segue princípios extremistas de direita e esquerda



20 de abril de 2014
ANDREI NETTO, CORRESPONDENTE / PARIS - O Estado de S.Paulo


Por trás da ofensiva da Rússia sobre a Ucrânia há mais do que interesses geopolíticos e econômicos. O presidente russo, Vladimir Putin, estaria sendo influenciado também pelo "neoeurasianismo", ideologia radical de inspiração nacionalista nascida nos anos 20 e reescrita após o desmoronamento da União Soviética.
Fiel à tradição e aos valores cristãos ortodoxos, a doutrina reúne princípios da extrema direita e da extrema esquerda na luta contra seus inimigos: os EUA, a Europa, o Ocidente, o liberalismo e a globalização.
A teoria reafirma o que qualifica de "identidade russa", nascida da fusão de eslavos e muçulmanos turcos. A Rússia seria um terceiro continente, situado entre a Europa e a Ásia. Antes de quase desaparecer no século 20, esta linha de pensamento opunha-se tanto ao Ocidente liberal, considerado decadente, quanto aos soviéticos, que baniram o cristianismo ortodoxo da Rússia, assim como seus valores tradicionalistas.
O renascimento do eurasianismo ocorreu após a queda do Muro de Berlim e da URSS, por meio do filósofo e cientista político Alexander Dugin. Filho de um agente da KGB, o intelectual se alinhou com os opositores de Boris Ieltsin, o primeiro presidente da Rússia após o fim do bloco soviético. Aliou-se também ao escritor dissidente Eduard Limonov na fundação do Partido Nacional-Bolchevique, cujo nome e bandeira não deixavam dúvidas sobre sua proximidade com o nazismo.
Em 1994, Limonov e Dugin se separaram. O primeiro fez uma guinada liberal e fundou o movimento Outra Rússia, de oposição a Putin. O segundo criou em 2002 um novo partido, o Eurásia, em atividade até hoje. Nos últimos 25 anos, Dugin ganhou influência em Moscou, onde ficou mais próximo de Putin e de Dmitri Medvedev. Por isso, o presidente russo adotou o discurso da ideologia, ressaltando a ideia de "tradição", cara à Igreja Ortodoxa russa, e recusando o multiculturalismo, o feminismo, o homossexualidade e o que chama de "valores não tradicionais" dos EUA.
"Com certeza, a ideologia do eurasianismo de Dugin influencia Putin", afirma a cientista política russa Tatiana Kastoueva-Jean, coordenadora do centro de estudo de Rússia do Instituto Francês de Relações Internacionais, de Paris. "A teoria de Dugin ressalta o papel específico e único da Rússia e corresponde à visão das autoridades russas."
Para a historiadora francesa Marlène Laruelle, pesquisadora do Centro de Estudos dos Mundos Russo, Caucasiano e Centro-Europeu, a ideologia não explica toda a política externa da Rússia, mas ajuda a entender seus desdobramentos. Um deles é o projeto de criação da União Eurasiática, com sede em Moscou, cujo tratado foi assinado em novembro de 2011 pelos os presidentes de Bielo-Rússia, Casaquistão e Armênia. O grupo incluirá Quirguistão e Tajiquistão a partir de 2015.
Ao convencer o ex-presidente ucraniano Viktor Yanukovich a renunciar à ambição de um acordo de livre-comércio com a União Europeia, em novembro - evento que detonou o Movimento EuroMaidan, na Praça da Independência, em Kiev -, Putin planejava a inclusão da Ucrânia no novo bloco, expandindo-o para o oeste e incorporando, futuramente, membros como Geórgia, Moldávia e Armênia.
Na prática, a União Eurasiática reconstituiria a maior parte do território da URSS, cujo esfacelamento é considerado por Putin como uma das maiores tragédias do século 20. "O objetivo era manter a Ucrânia sob sua influência, fazendo-a participar de seu projeto de União Eurasiática, não admitindo sua 'deriva' em direção ao Ocidente", afirma Tatiana. "Esses objetivos estão bem comprometidos hoje."
Em entrevista a um jornalista francês militante do eurasianismo, em 2009, o Dugin foi claro: para ele, não existe povo ucraniano. "Nós somos contra o Estado-nação ucraniano porque ele é pró-americano, atlantista e antieurasiano", disse. "O povo da Ucrânia do leste e da Crimeia está agora em perigo de opressão e destruição."
Para o ucraniano Constantin Sigov, filósofo da Universidade Kiev-Mohyla e militante do Movimento Euromaidan, o eurasianismo tornou-se uma ideologia perigosa para todo o mundo. "Não há nada de bom na ideologia do eurasianismo. É uma salada sem coerência interna que busca elementos do comunismo, do socialismo, do nacionalismo, do cristianismo", diz Sigov, que vê no presidente russo o líder do movimento. "Putin é um louco e precisa ser parado enquanto há tempo."

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