O Brasil em 2013: acabou a paz social
"2013 deixa um sinal muito positivo". Essas são palavras do sociólogo e professor aposentado da USP Chico de Oliveira ao falar das manifestações de junho.
Valéria Nader e Gabriel Brito, da redação do Correio da Cidadania.
Créditos da foto: Mídia Ninja
“2013 deixa um sinal muito positivo”. Essas são
as palavras do sociólogo e professor aposentado da USP Chico de
Oliveira nos momentos iniciais da entrevista que concedeu ao Correio para a edição especial retrospetiva de 2013.
A
efervescência do mês de junho, com a massividade dos protestos
populares em todo o Brasil, faz de 2013 um ano, sem dúvida, bastante
singular. Uma população há anos esgotada com a precariedade e ausência
de serviços públicos, e assistindo erguerem-se à sua frente monumentais e
luxuosos estádios de futebol para atenderem ao Mundial de 2014,
mobilizou-se pela bandeira da Tarifa Zero, levantada pelo Movimento
Passe Livre.
A
renitência inicial dos governos federal, estaduais e municipais
rendeu-se à força dos movimentos; a tradicional criminalização de
protestos e manifestantes promovida pelos grandes média caminhou
rapidamente para a suavização do tom num primeiro momento adotado.
Passados,
no entanto, os primeiros e intensos meses de democracia viva das ruas,
governo e média reapropriam-se aos poucos de sua postura de surdez face
às reivindicações populares. A ortodoxia económica a la FMI do
governo cresce a passos largos neste final de ano; já os média, passaram
a linha auxiliar dos legislativos na tentativa de minar as
manifestações, criminalizando o que chamam de radicalismos, que têm
justificado a edição e reedição de leis que permitem encarcerar
manifestantes.
Para
Chico, nada muito surpreendente: “Qualquer governo tende à repressão,
às vezes muito violenta, como em 2013. Quem faz oposição não pode se
assustar. É assim mesmo e vamos em frente”. Assim como também não se
assusta face à surdez do governo e ao recrudescimento no
conservadorismo: “Esse é um dos pontos precisamente fracos dos governos
Lula, seguidos por Dilma: não tem política económica para as áreas
sindical e laboral, é uma repetição um tanto desqualificada da própria
política económica do FHC”.
Numa
avaliação mais estrutural sobre os governos Lula e Dilma, acrescenta
ainda o sociólogo que “o lulismo é grave. É um movimento de cooptação da
classe trabalhadora, comandado pelo seu expoente máximo. Como disse
certa vez o velho gaúcho Leonel Brizola, com muita amargura, mas
precisão quase sociológica, ‘o lulismo é a esquerda que a direita
pediu’”.
Para
o futuro, Chico descrê de previsões específicas, que extrapolem a
observação dos fluxos e refluxos dos movimentos sociais. Este olhar
permite apenas dizer que as atuais movimentações certamente voltarão,
não se sabe quando e nem com qual intensidade.
Veja a seguir a entrevista completa.
Correio
da Cidadania: Falar de 2013 é falar do ano em que a população
brasileira foi massivamente às ruas de todo o país em busca de direitos.
Como vê essas manifestações, pensando em todo o processo
anterior de mobilização que a elas conduziu, no estalar e dimensão
adquirida no mês de junho e no momento posterior à efervescência
inicial?
Chico de Oliveira: É
um sinal positivo do ponto de vista da sociedade, porque diz que a sua
capacidade de mobilização não esmoreceu. Geralmente, a gente pensa que
uma sociedade de massas, como já é a brasileira, seja mais ou menos
indiferente aos grandes temas. Mas as manifestações de junho, e também
as subsequentes, mostram que isso não é verdade e, felizmente, a
sociedade brasileira ainda tem alta sensibilidade às questões tratadas
ao longo desse período. 2013 deixa um sinal muito positivo.
E esse momento positivo veio para ficar?
Não
é assim, não. Em nenhuma sociedade consegue-se manter a mobilização 24
horas por dia, 365 dias por ano. Em certas ocasiões, ela se manifesta,
depois reflui. Dependendo do tema e da mobilização, volta a
manifestar-se. Não há nada que diga que uma sociedade tem de se manter
de plantão 24 horas. De modo que uma apreciação tão otimista desconhece
as formas pelas quais a sociedade se mobiliza.
O
que pensa da forma com que os vários níveis de governo, municipal,
estadual e federal, enfrentaram e têm enfrentado tantos e legítimos
protestos populares, no que se refere ao atendimento às reivindicações sociais?
Todo
o governo tende a reagir como governo da ordem. É para isso que estão
lá, foram eleitos para manter a ordem. Sempre pensamos, ou tendemos a
pensar, que os governos estão para promover a desordem, mas essa é uma
fala de quem está na oposição. A tarefa de qualquer governo é manter a
ordem.
Portanto,
a reação oficial aos manifestos de 2013 é típica dos governos: manter a
ordem custe o que custar. E cabe aos que estão contra a ordem achar
meios de negá-la. Essa é a tarefa dos que fazem oposição.
Quanto ao enfrentamento policial aos manifestos que têm se espalhado por todo o país, qual a sua opinião?
É
normal. Normal dentro das características que descrevi aqui, de
governos cuja tarefa é manter a ordem. Se os grupos que querem
subvertê-la mostram força, a tarefa do governo fica mais difícil, e
rapidamente qualquer um deles tende à repressão, às vezes muito
violenta, como em 2013. Quem faz oposição não pode assustar-se. É assim
mesmo e vamos em frente.
O
que dizer, face a esse contexto, dos chamados black blocks e de toda a
polémica que têm trazido à cena política nacional? Como encara este
fenómeno?
Não
acho muito importante. Na verdade, dentro do processo, dos vários
momentos em que eles apareceram e perturbaram a ordem, deu-se uma certa
valorização e publicização. Acontece com movimentos internos da
população, desta vez foi o caso do black block. Mas eles não são tão
importantes assim.
2013
foi o ano anterior àquele do Mundial de Futebol no Brasil, quando
também vão ocorrer as eleições presidenciais. Muitos estudiosos e
analistas previram um ‘saco de maldades’ para 2013, com vistas a
‘sanear’ um orçamento que será mais complicado de ser manejado em ano
futebolístico e eleitoral. Como viu 2013 neste sentido da condução da
política económica interna, levando-se em conta, além do mais, a forma
como o governo enfrentou o cenário de desaceleração económica?
Isso
fica ligado à questão anterior, da tarefa desses governos de manterem a
ordem que os alçou aos cargos de poder. E mantê-la custe o que custar,
contra qualquer grupo que se insurja contra os interesses da ordem. De
modo que não tem muito a ver, especificamente, com o facto de no ano que
vem termos eleições e Mundial. Se não tivesse nada disso, o que
aconteceria?
Tampouco
se pode dizer, na análise do que aconteceu, que, se o governo não
reagisse, o movimento tenderia a crescer. Não é verdade. Porém, qualquer
movimento mais intenso tem uma espécie de curva ascendente em
determinado momento. Depois que mudam os temas e a capacidade de
mobilização, vem uma queda. Se o governo atua com repressão, o
decaimento poderá vir mais rápido, de forma violenta. Mas nenhum dos
dois lados tem fôlego para prolongar por muito tempo os seus movimentos
políticos.
Face
a este cenário, como tem enxergado, de modo geral, o mundo do trabalho
no Brasil, especialmente no que diz respeito à condução de políticas e
medidas nas área laboral e sindical nestes três últimos anos sob o
governo de Dilma Rousseff?
Não
vejo nenhuma política voltada às áreas laboral e sindical. O que há com
o movimento sindical é uma cooptação, que se deve à apreciação que o
Partido dos Trabalhadores tem do movimento sindical. E ao próprio fato
de que o Lula é produto desse sindicalismo. Portanto, não vejo nada de
especial, não penso que o governo prestou atenção ao movimento sindical
ou à questão laboral.
Aliás,
esse é um dos pontos precisamente fracos dos governos Lula, seguidos
por Dilma: não tem política económica para tais áreas, é uma repetição
um tanto desqualificado da própria política económica do FHC, o que é
surpreendente, por ser um governo federal nascido no PT e na forte
influência desse mesmo movimento sindical. É claro que esperávamos mais.
Se 2012 já havia terminado com a marca do chamado Mensalão, 2013 trouxe-o à mesa de modo "espetacular". O que este episódio e a sua visibilidade e repercussão dizem do nosso contexto político?
Dizem
muito. Tanto governo como oposição não possuem instrumentos para
processar conflitos sociais. E o mensalão foi um conflito social,
evidentemente elevado pelos média, ao nível de um processo
exclusivamente político, o que não é verdade.
Mas,
de qualquer forma, a sequência do mensalão mostra que governo e
oposição estão mal preparados para lidarem com os novos conflitos de uma
sociedade já nitidamente capitalista. Todos os conflitos brasileiros no
fundo remetem à questão principal, isto é, o conflito capital versus trabalho.
Estudiosos, como o sociólogo do trabalho Ruy Braga, referem se a um processo de concessões reais que dão base àquilo que é chamado de ‘hegemonia lulista’, basicamente calcada num consentimento passivo das bases sociais e num consentimento ativo por parte das direções sindicais, o que teria sido a base de uma forte
desmobilização nos anos Lula. Como encara hoje o que se chama de
‘lulismo’ e tantas tentativas de entender este que seria quase um
conceito?
Acho que o Ruy Braga e o André Singer são hoje os melhores analistas desse fenômeno apelidado de lulismo.
O
lulismo é grave. É um movimento de cooptação da classe trabalhadora,
comandado pelo seu expoente máximo. Como disse certa vez o velho gaúcho
Leonel Brizola, com muita amargura, mas precisão quase sociológica, “o
lulismo é a esquerda que a direita pediu”. É isso, um movimento de
apaziguamento de conflitos, de contenção da classe trabalhadora,
apaziguamento e rendição às classes dominantes.
À
luz desse entendimento, qual é o vigor e/ou importância que considera
ter hoje este ‘lulismo’? Como tem sobrevivido ao governo Dilma e como se
interconecta à própria massividade dos protestos populares em 2013?
O
lulismo não tem muito fôlego. Não é um movimento que possa tornar-se em
algo como o varguismo aqui, ou o peronismo na Argentina. Não deve durar
além do governo Dilma.
Felizmente,
o lulismo passará, mesmo porque o Lula, apesar de sua envergadura
política, não tem a estrutura de um movimento de massas como o associado
aos dois fenómenos que citei. Podemos ficar tranquilos.
Faria alguma diferença entre Lula e Dilma nas suas respectivas conduções política, econômica e social da nação?
É
evidente. A Dilma não tem os requisitos e carisma que o Lula encarnou
tão bem. Por isso ela, também pela sua fraqueza, é monitorada o tempo
todo pelo próprio Lula, que não a deixa governar como talvez pudesse ter
feito, se assim quisesse. A diferença entre ambos é marcante, e não se
deve tanto a defeitos da Dilma. Deve-se, muito, à sombra que o lulismo
projeta sobre toda a política nacional.
Qual a sua opinião quanto ao cenário eleitoral que se está armando para 2014? Arrisca, além disso, algum palpite?
Está-se
a desenhar que a Dilma, com todas as dificuldades, nada de braçada. E o
PSDB, principal partido de oposição, é tão fraco que está a ser
ofuscado até pela dupla Marina Silva-Eduardo Campos. Aqui, não precisa
ser sociólogo. Basta acompanhar os jornais para entender que a eleição
já está decidida. A oposição tucana será pavorosa.
Acredita
que haja espaço nesse cenário para a entrada de uma esquerda que
apresente novidades e receba atenção do grande público eleitor?
Não,
não tem nenhuma hipótese. Deve continuar a fazer o seu papel, que é a
crítica, sobretudo ao sistema. Mas não tem nenhuma hipótese de influir
positivamente nesta eleição.
E o que considera ‘esquerda’ no atual momento?
Isso é uma definição que nem uma reunião de todos os sábios do mundo será capaz de fazer. É a esquerda e ponto.
O
que espera para a economia mundial e nacional nos próximos tempos, após
um período de evidente desaceleração e/ou baixo crescimento que têm
vitimado a Europa, os Estados Unidos e a nações em desenvolvimento, na
Ásia, África e América Latina, o Brasil dentre elas?
A
economia capitalista move-se em ciclos. Isso é clássico desde o século
XIX, de modo que não há muita previsão a ser feita. É bobagem. A
economia continua a ter os seus ciclos de altas e baixas, dependendo dos
estímulos de ação dos seus atores centrais. E os economistas têm aí o
seu Waterloo, pois qualquer previsão é de naufrágio.
Possui
uma visão esperançosa para o futuro das movimentações sociais que vêm
rondando o mundo, desde a primavera árabe até a grande quantidade de
movimentos ‘Occupy’ que têm varrido diversos países, passando por alguns
protestos massivos na Europa e, agora, os do Brasil em 2013?
Não
tenho esperança, sou sociólogo e cidadão, não vivo de esperança. Estou
aqui a observar movimentos da sociedade. O máximo que se pode dizer é
que, entre fluxos e refluxos, esse movimento vai repetir-se. Qualquer
tentativa de previsão para além de generalidades tende a fracassar.
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