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segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Barragem para hidrovia Tietê-Paraná destruirá ‘minipantanal’ de Piracicaba/SP

Barragem para hidrovia Tietê-Paraná destruirá ‘minipantanal’ de Piracicaba/SP

A construção de uma barragem na Hidrovia Tietê-Paraná, em Santa Maria da Serra (SP), vai colocar de baixo d’água uma região rural de Piracicaba (SP) chamada Tanquan e considerada um “minipantanal” do interior paulista devido à existência de animais e vegetação semelhantes àquele do Mato Grosso. Com a inundação da área, famílias ribeirinhas que sobrevivem da pesca terão de deixar o local já em 2014, conforme prevê o governo do estado. A obra, propriamente dita, deve começar em 2015 e durar três anos.
A obra deve aumentar o nível do Rio Piracicaba em até 5,5 metros para torná-lo navegável em 45 quilômetros e transformá-lo em um “braço” da Tietê-Paraná, ligando Piracicaba à hidrovia pela represa de Barra Bonita. A polêmica sobre a barragem existe há anos, mas as audiências públicas sobre o assunto iniciadas em dezembro e que seguem até janeiro de 2014, reacenderam o debate, que envolve questões ambientais, sociais e legais de desenvolvimento econômico. O caso é acompanhado em inquérito civil pelo Ministério Público Estadual.
Para se ter uma ideia das consequências da obra, entre tuiuiús, jacarés-de-papo-amarelo, dourados e onças-pardas, a fauna que sofrerá os impactos inclui 218 espécies de aves, 54 de peixes (nove adaptáveis à mudança e cinco que podem desaparecer do território paulista), além de espécies de mamíferos, segundo Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da barragem. A construção deve suprimir também metade da mata original da área, conforme análise divulgada pelo Comitê das Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ).
“Só vão ficar animais generalistas, que conseguem se adaptar a diferentes condições e tipos de alimentação. Várias espécies, no entanto, vão deixar de existir na área e outro bioma assim só se formaria em 60 ou 70 anos”, afirmou o geógrafo Anderson Guarda. Ele disse que o aumento do nível do rio vai “uniformizar” o ambiente e dar fim às variadas formas de vida na região.
Projeto oficial – O governo estadual admite que, se a obra for realizada, ocorrerá o sumiço das espécies e o fim do “pantanal de Tanquan”. Como medida compensatória, o projeto prevê a preservação de um trecho do Rio Piracicaba conhecido como “Curva da Samambaia”. A intenção do estado é a de construir um canal para que cerca de dez quilômetros do curso d’água se tornem propícios para acolher os animais do minipantanal ao longo do tempo.
José Roberto Santos, representante do consórcio contratado para fazer o projeto da obra, falou sobre os impactos ambientais em audiência pública em Piracicaba e tratou como “aposta” a Curva da Samambaia. “A área é vista como uma possibilidade para recuperar ao menos parte da vida animal que existe no Tanquan. Não se pode dizer com certeza se isso vai acontecer, mas é uma aposta”, disse.
O diretor do Departamento Hidroviário (DH) da Secretaria de Logística e Transportes do Estado de São Paulo, Casemiro Tércio Carvalho, defende a ampliação da hidrovia em nome do desenvolvimento nacional. “Piracicaba não pode se fechar em copas e se recusar a cumprir o dever de contribuir para o desenvolvimento do país. Com a barragem teremos condições de reduzir o número de caminhões nas estradas e transportar cargas do Centro-Oeste até Piracicaba pela água e depois de trem até o Porto de Santos”, afirmou Carvalho. Ele disse que as compensações ambientais serão equivalentes aos danos causados pela obra.
Desenvolvimento x natureza – Luiz Antonio Fayet, especialista e consultor de logística, diz que além de custos operacionais que podem ser mais vantajosos, as hidrovias representam redução do tráfego terrestre para transporte de cargas e menos poluição ambiental gerada com o uso de caminhões nas rodovias. Sobre a Tietê-Paraná, Fayet afirma que a maior parte das cargas transportadas é de materiais de construção civil, mas deve ganhar importância também o transporte de combustíveis.
“A relevância das hidrovias é nítida. Agora, se existe um questionamento sobre o impacto de uma obra, a pergunta que tem de ser respondida é a seguinte: é melhor arcar com o custo social de indenizar todas as partes atingidas e fazer a compensação ambiental adequada ou manter as estradas entulhadas de caminhões para levar as mesmas cargas?”, questionou Fayet.
“É necessário, porém, que o debate seja sério de todos os lados. As indenizações e compensações têm de ser corretas, mas não dá para ficar com brincadeiras contrárias às melhorias de infraestrutura porque, dessa forma, não se desenvolve mais nada no Brasil”, disse o consultor, que completou: “Cito como exemplo mais crítico disso a duplicação da BR-116, no trecho que liga o Sudeste ao Sul do país. Milhares de pessoas morreram nessa estrada graças a uma oposição criminosa fundada em questões ambientais equacionáveis”.
Referência em direito ambiental no Brasil e autor de livros e idealizador de artigos sobre o assunto para a Constituição Federal, o professor Paulo Affonso Leme Machado alerta que não se pode realizar obras de grande impacto ambiental sem a certeza de que haverá compensações equivalentes aos danos.
Após acompanhar uma das audiências públicas sobre a barragem, Machado afirmou que não há clareza ainda sobre as medidas para compensar “os estragos”. “Fala-se muito em aposta e dúvida, mas a legislação ambiental diz que diante da incerteza quanto às compensações para o impacto ambiental, a obra não deve ser feita. Foi levantada a suposta ocorrência de enchentes em Piracicaba depois da obra e isso não foi devidamente estudado. Com risco desse tipo de inundação, entendo que a barragem não deveria ser construída”, disse.
Investigações do Gaema – Todo processo e as ações do governo para os preparativos da obra são alvos de um inquérito civil instaurado pelo Grupo de Atuação Especial em Defesa do Meio Ambiente (Gaema), do Ministério Público Estadual. O promotor Ivan Carneiro Castanheiro aponta como preocupações justamente as dúvidas em relação às medidas compensatórias ao desaparecimento de Tanquan, além do que chamou de “fatiamento” do estudo e do relatório de impactos ambientais.
Segundo a Promotoria, os documentos não abrangem ainda as consequências da construção de um porto no bairro de Artemis, também em Piracicaba, e da ferrovia que deverá escoar a maior parte das cargas que chegarem ao município.
“Nós não somos contrários ou favoráveis à obra. A função do Gaema é investigar se é realmente viável uma ampliação de 45 quilômetros de hidrovia diante de tantos impactos ou se o ideal seria a construção da ferrovia. As ações compensatórias e mitigatórias também precisam ser avaliadas a fundo”, considerou o promotor.
Pescadores lamentam – O estado ainda deve realizar reuniões para debater temas específicos como as desapropriações de terras privadas próximas à futura represa e até mesmo a forma como se dará a remoção de um grupo de 13 famílias que vive da pesca na região que ficará submersa. O projeto prevê que a população ribeirinha terá de ser realocada para uma área próxima ao minipantanal.
O governo afirma que o “novo Tanquan” receberá melhorias estruturais como água e esgoto encanados, casas de alvenaria e regulamentação fundiária, o que não existe atualmente. O período sem a pesca, segundo o estado, será de seis meses e as reuniões com os ribeirinhos servirão para esclarecer questões referentes, por exemplo, aos valores que eles receberão durante o semestre em que a atividade estiver proibida.
Já o pescador Ronaldo Evangelista, de 35 anos, afirmou que a inundação vai destruir o lugar que ele chamou de lar durante a vida toda, além de acabar com o único meio de vida que conheceu. A pesca é o sustento da família Evangelista há quatro gerações, desde o avô de Roberto até os seus sobrinhos. “Eu não me vejo fazendo outra coisa. Cresci no Tanquan. Meu filho tem seis anos e, assim que entra em férias escolares, enlouquece para andar comigo de barco.”

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