40 anos do assassinato de Carrero Blanco: quando a violência justifica a violência
Não se sabe até hoje quantas pessoas foram torturadas, mortas ou
desapareceram sob o regime ditatorial de Francisco Franco na Espanha,
que durou nada menos que 39 anos. Quase quatro décadas em que o país
ficou isolado do mundo, sob o jugo de um genocida. Fala-se entre 150 mil
e 200 mil desaparecidos, o que deixa a Espanha na triste condição de
segundo país do mundo com maior número de desaparecidos, atrás apenas do
Camboja. A terra natal do poeta Federico García Lorca, ele próprio um
desaparecido da guerra civil, nunca passou sua história a limpo porque,
em 1977, como fez o Brasil, deu uma anistia geral a todos, sem punições.
Em novembro passado, a Anistia Internacional denunciou o governo de
direita espanhol à ONU por se recusar a investigar as dezenas de
milhares de desaparecimentos durante a guerra civil e a ditadura de
Franco. O Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas já conclamara o
país, em 2008, a rever sua lei de anistia. O governo do PP se resumiu a
criticar a ONU por “prestar excessiva atenção no passado”. A Lei de
Memória Histórica aprovada pelo PSOE no governo José Luis Zapatero foi
abandonada após a eleição de Mariano Rajoy em 2011. Desde que assumiu o
poder, Rajoy reduziu os recursos para as atividades de localização e
exumação dos corpos praticamente a zero.
Pois há 40 anos, em dezembro de 1973, o regime franquista estava em
seus estertores –o ditador morreria dois anos depois. A redemocratização
do país se avizinhava, mas esbarrava na figura do almirante Luís
Carrero Blanco, presidente de governo e apontado como o sucessor de
Franco. Supunha-se que Carrero Blanco, que se situava ideologicamente
ainda mais à direita que o ditador (!!!), fosse capaz de atrasar os
planos de trazer de volta a monarquia e iniciar a transição. Foi quando o
grupo separatista basco ETA planejou e concretizou uma das mais
espetaculares ações terroristas da história.
Sabia-se que Carrero Blanco, católico fervoroso, ia todas as manhãs,
em seu Dodge Dart negro, à igreja de São Francisco de Borja, acompanhado
do motorista e de um policial. O que ele não desconfiava é que na
metade do caminho, sob um bueiro da rua Claudio Coello, no bairro de
Salamanca em Madri, os separatistas haviam colocado mais de 75 kg de
explosivos repartidos em forma de T. Por volta das 9h30 do dia 20 de
dezembro de 1973, no exato momento em que Carrero Blanco passava, os
etarras acionaram a bomba que fez o automóvel voar 35 metros, passar por
cima de um edifício e cair no pátio de um convento.
Longe de ter sido lamentado, atribui-se ao assassinato de Carrero
Blanco pelos separatistas a interrupção da ditadura franquista, com a
eliminação de seu possível sucessor. Nas ruas do país circulava a frase
cruel: “Arriba Franco, mais alto que Carrero Blanco!”. Para muitos que
viveram o período, a morte de Carrero significou a morte do franquismo, e
chegou a ser celebrada pela oposição no exílio. O próprio Franco
reagiria de maneira sinistra, com uma frase nunca explicada em seu
discurso de Natal, dias depois: “Há males que vêm para o bem”.
Hoje circulam algumas teorias em torno do assassinato. Uma delas
assegura ter havido participação da CIA no atentado, porque o governo
dos EUA teria perdido o interesse na continuidade da ditadura. Os
indícios em favor desta tese seriam a inexperiência dos etarras que
executaram o plano, jovens com menos de 25 anos de idade. O chefe do
grupo, José Miguel Beñaran Ordenãna, o Argala, seria morto exatamente da
mesma maneira 5 anos depois: em 21 de dezembro de 1978, um capitão da
guarda civil colocou dinamite embaixo de seu Renault, no País Basco
francês, e o fez também voar pelos ares. Olho por olho, dente por dente.
Todos os envolvidos no assassinato já haviam sido anistiados.
Ninguém é a favor de atentados, de matar gente. Considero
injustificáveis os atos terroristas (aí, sim) perpetrados pela ETA após a
restauração da democracia na Espanha –alguns deles covardes, como o
sequestro e o assassinato de Miguel Ángel Blanco em 1997 (veja aqui).
O cessar-fogo definitivo da ETA só veio em 2011. Mas eliminar o
sucessor de um ditador genocida não pode ser considerado condenável
naquele momento, porque o regime era infinitamente mais condenável.
Contra o terror de Estado é justificável, sim, que alguns optem por
recorrer ao uso de força. Como seria possível reagir se não assim?
Violência gera violência, e não se pode comparar o número de vítimas de
um Estado repressor e cruel com as ações isoladas de um grupo. O fato é
que o assassinato de Carrero Blanco chamou a atenção do mundo para os
horrores de um regime sanguinário. Aquele estrondo que abriu uma
gigantesca cratera na rua ecoou por todas partes como um grito de
“Basta!” à ditadura.
No Brasil de hoje, para vilanizar a esquerda e os guerrilheiros que
lutaram contra a ditadura militar, a direita trata de convencer as
pessoas de que violência é sempre injustificável. Na democracia,
concordo. Contra a tirania, depende. Acho que atualmente é possível
fazer protestos inteligentes e pacíficos, mas quem sou eu para condenar
quem recorre à violência por sentir na pele a discriminação, o
preconceito, a repressão, a desigualdade, a miséria, a fome? Acaso não
são também eles vítimas cotidianas de violência?
Para “funcionar”, o capitalismo necessita que as pessoas aceitem as
injustiças pacificamente. Conta com isso. Aposta em encontrar a solução
para a violência “numa ‘educação’ que os tranquilize e transforme em
seres domesticados e inofensivos”, como advertiu o papa.
Mas as vítimas da violência e da opressão, seres humanos, podem reagir
de duas maneiras: ou curvar a cabeça ou partir para o confronto. Assim
foi na ditadura de Franco e assim foi na ditadura brasileira. Alguns
foram embora, muitos se curvaram, e outros pegaram em armas. As três
opções se justificam perfeitamente pelas circunstâncias. São legítimas.
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