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sábado, 21 de dezembro de 2013

40 anos do assassinato de Carrero Blanco: quando a violência justifica a violência

40 anos do assassinato de Carrero Blanco: quando a violência justifica a violência 

 



(O almirante Carrero Blanco observado pelo ditador espanhol Francisco Franco)


Não se sabe até hoje quantas pessoas foram torturadas, mortas ou desapareceram sob o regime ditatorial de Francisco Franco na Espanha, que durou nada menos que 39 anos. Quase quatro décadas em que o país ficou isolado do mundo, sob o jugo de um genocida. Fala-se entre 150 mil e 200 mil desaparecidos, o que deixa a Espanha na triste condição de segundo país do mundo com maior número de desaparecidos, atrás apenas do Camboja. A terra natal do poeta Federico García Lorca, ele próprio um desaparecido da guerra civil, nunca passou sua história a limpo porque, em 1977, como fez o Brasil, deu uma anistia geral a todos, sem punições.

Em novembro passado, a Anistia Internacional denunciou o governo de direita espanhol à ONU por se recusar a investigar as dezenas de milhares de desaparecimentos durante a guerra civil e a ditadura de Franco. O Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas já conclamara o país, em 2008, a rever sua lei de anistia. O governo do PP se resumiu a criticar a ONU por “prestar excessiva atenção no passado”. A Lei de Memória Histórica aprovada pelo PSOE no governo José Luis Zapatero foi abandonada após a eleição de Mariano Rajoy em 2011. Desde que assumiu o poder, Rajoy reduziu os recursos para as atividades de localização e exumação dos corpos praticamente a zero.

Dos poucos detalhes que se sabem sobre aquele período sombrio, veio à tona, por exemplo, a especial predileção do regime pela tortura de mulheres, alvo do documentário Del Olvido a la Memoria (Do Esquecimento à Memória), de 2007. Dirigido por Jorge Montes Salguero, o filme descreve o sofrimento das presas do franquismo, baseado nas gravações feitas por uma ex-militante do Partido Comunista, uma das encarceradas injustamente pelo regime.


Pois há 40 anos, em dezembro de 1973, o regime franquista estava em seus estertores –o ditador morreria dois anos depois. A redemocratização do país se avizinhava, mas esbarrava na figura do almirante Luís Carrero Blanco, presidente de governo e apontado como o sucessor de Franco. Supunha-se que Carrero Blanco, que se situava ideologicamente ainda mais à direita que o ditador (!!!), fosse capaz de atrasar os planos de trazer de volta a monarquia e iniciar a transição. Foi quando o grupo separatista basco ETA planejou e concretizou uma das mais espetaculares ações terroristas da história.

Sabia-se que Carrero Blanco, católico fervoroso, ia todas as manhãs, em seu Dodge Dart negro, à igreja de São Francisco de Borja, acompanhado do motorista e de um policial. O que ele não desconfiava é que na metade do caminho, sob um bueiro da rua Claudio Coello, no bairro de Salamanca em Madri, os separatistas haviam colocado mais de 75 kg de explosivos repartidos em forma de T. Por volta das 9h30 do dia 20 de dezembro de 1973, no exato momento em que Carrero Blanco passava, os etarras acionaram a bomba que fez o automóvel voar 35 metros, passar por cima de um edifício e cair no pátio de um convento.




Os três ocupantes do veículo morreram. Em 1979, o cineasta italiano Gillo Pontecorvo filmou uma versão da história, Operação Ogro, nome do plano elaborado pela ETA. Aqui a cena que reconstitui o momento da explosão:


Longe de ter sido lamentado, atribui-se ao assassinato de Carrero Blanco pelos separatistas a interrupção da ditadura franquista, com a eliminação de seu possível sucessor. Nas ruas do país circulava a frase cruel: “Arriba Franco, mais alto que Carrero Blanco!”. Para muitos que viveram o período, a morte de Carrero significou a morte do franquismo, e chegou a ser celebrada pela oposição no exílio. O próprio Franco reagiria de maneira sinistra, com uma frase nunca explicada em seu discurso de Natal, dias depois: “Há males que vêm para o bem”.

Hoje circulam algumas teorias em torno do assassinato. Uma delas assegura ter havido participação da CIA no atentado, porque o governo dos EUA teria perdido o interesse na continuidade da ditadura. Os indícios em favor desta tese seriam a inexperiência dos etarras que executaram o plano, jovens com menos de 25 anos de idade. O chefe do grupo, José Miguel Beñaran Ordenãna, o Argala, seria morto exatamente da mesma maneira 5 anos depois: em 21 de dezembro de 1978, um capitão da guarda civil colocou dinamite embaixo de seu Renault, no País Basco francês, e o fez também voar pelos ares. Olho por olho, dente por dente. Todos os envolvidos no assassinato já haviam sido anistiados.

Ninguém é a favor de atentados, de matar gente. Considero injustificáveis os atos terroristas (aí, sim) perpetrados pela ETA após a restauração da democracia na Espanha –alguns deles covardes, como o sequestro e o assassinato de Miguel Ángel Blanco em 1997 (veja aqui). O cessar-fogo definitivo da ETA só veio em 2011. Mas eliminar o sucessor de um ditador genocida não pode ser considerado condenável naquele momento, porque o regime era infinitamente mais condenável. Contra o terror de Estado é justificável, sim, que alguns optem por recorrer ao uso de força. Como seria possível reagir se não assim? Violência gera violência, e não se pode comparar o número de vítimas de um Estado repressor e cruel com as ações isoladas de um grupo. O fato é que o assassinato de Carrero Blanco chamou a atenção do mundo para os horrores de um regime sanguinário. Aquele estrondo que abriu uma gigantesca cratera na rua ecoou por todas partes como um grito de “Basta!” à ditadura.




No Brasil de hoje, para vilanizar a esquerda e os guerrilheiros que lutaram contra a ditadura militar, a direita trata de convencer as pessoas de que violência é sempre injustificável. Na democracia, concordo. Contra a tirania, depende. Acho que atualmente é possível fazer protestos inteligentes e pacíficos, mas quem sou eu para condenar quem recorre à violência por sentir na pele a discriminação, o preconceito, a repressão, a desigualdade, a miséria, a fome? Acaso não são também eles vítimas cotidianas de violência?

Para “funcionar”, o capitalismo necessita que as pessoas aceitem as injustiças pacificamente. Conta com isso. Aposta em encontrar a solução para a violência “numa ‘educação’ que os tranquilize e transforme em seres domesticados e inofensivos”, como advertiu o papa. Mas as vítimas da violência e da opressão, seres humanos, podem reagir de duas maneiras: ou curvar a cabeça ou partir para o confronto. Assim foi na ditadura de Franco e assim foi na ditadura brasileira. Alguns foram embora, muitos se curvaram, e outros pegaram em armas. As três opções se justificam perfeitamente pelas circunstâncias. São legítimas.

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