Família se despede de militante morto pela ditadura
Sessão da Comissão da Verdade que relembrou morte de Norberto Nehring, da ALN, foi marcada por emoção de viúva, filha, netas e amigos. Por Marsílea Gombata
por Marsílea Gombata — publicado 28/09/2013
Juca Kfouri fala durante sessão da Comissão da Verdade que lembrou a morte de Norberto Nehring
Na madrugada anterior à audiência que relembraria na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” a militância e a morte de seu pai, Marta Nehring sonhou que chegava à Assembleia Legislativa de São Paulo com uma mala, em meio a diversas pessoas, das quais recebia presentes. Demorou algumas horas para que conseguisse entender o recado de seu inconsciente: “Esse sonho, na verdade, era o dia em que vi meu pai pela última vez no Brasil, no meu aniversário de 5 anos. No meio da festa, me disseram que havia uma surpresa para mim: era meu pai, que saía da prisão e se preparava para fugir para Cuba”, contou emocionada nesta sexta-feira 27. “De fato, hoje estou de novo me despedindo do meu pai, mas do jeito que tem de ser. Estamos fazendo velório, enterro e missa de sétimo dia. Tudo o que gente não teve.”
Militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN), Norberto Nehring foi morto aos 29 anos, em 24 de abril de 1970. Em carta deixada pelo paulistano e descoberta anos mais tarde, ele se despede da filha e da esposa, Maria Lygia Quartim de Morais, com um pedido de perdão: “Minhas adoradas, perdoem-me por isto – quer dizer, por morrer ou ir preso (e eventualmente morrer lá). Nesta vida a senda é estreita. Pisou fora, morreu.” Técnico em química e graduado em economia pela USP, ele já havia sido preso em 1969 por policiais do Dops em São Paulo. Foi liberado alguns dias depois, passou pela festa da filha e seguiu para Havana.
Maria Lygia, a quem se refere como “Ia” na carta, seguiu depois com Marta para Cuba. Depois de alguns dias juntos, o militante seguiu para Praga e sua família, para o Brasil. “Nos correspondemos muito nesse período. A última carta dele para mim é de 10 de abril, 14 dias antes de ele morrer”, lembrou a viúva em meio a lágrimas. Segundo autoridades, ele teria se enforcado com uma gravata em um quarto de hotel no centro de São Paulo. A família, no entanto, não comprou a versão oficial.
Amigos como o ex-ministro Paulo Vanucchi e os advogados Belisário dos Santos Junior e Rubens Naves ajudaram a modificar o atestado de óbito de Norberto. Mas, apesar de terem conseguido modificar o documento desmentindo o relatório do Ministério da Aeronáutica, a família do militante quer mais: em vez do atestado que fala de morte “por causa não naturais em dependências policiais ou assemelhadas”, Maria Lygia e Marta pedem que esteja documentada morte “por causas indeterminadas motivada por tortura”, assim como o local exato e os agentes do Estado responsáveis.
“Responsabilizar o Estado brasileiro é entender que ele foi ilegal. Queremos saber quem matou meu pai. Eu tenho o direito”, disse Marta. “Não é à toa que o Brasil continua a ser uma sociedade do medo. Desde a época da escravidão não se castigou capatazes. Tem-se uma polícia que some com Amarildos e fica tudo bem.”
Apesar de ter sido enterrado no cemitério da Vila Formosa, em São Paulo, como Ernest Snell Burmann (o nome de seus documentos falsos), sua família só foi notificada três meses depois e conseguiu o reconhecimento por meio do exame de identificação da arcada dentária. Os documentos oficiais, no entanto, se contradizem: enquanto uma ficha no IML fala em “asfixia mecânica”, outra atesta “afogamento”.
Presentes à audiência desta sexta-feira 27, as netas Cléo Maria e Sofia também lembraram emocionadas do avô. “Assim como minha mãe, eu perdi meu pai cedo. Mas com uma diferença: eu tive oportunidade de me despedir simbolicamente dele, por meio dos rituais, coisa que minha mãe nunca pode fazer”, disse Sofia, na sessão da qual esteve também a ministra Eleonora Menicucci, da Secretaria de Políticas para Mulheres.
O jornalista Juca Kfouri, primo de Maria Lygia e muito próximo de Norberto, disse que por anos conviveu com uma espécie de culpa pela morte de Norberto. “Durante muito tempo depois de sua morte, eu sempre pensava antes de dormir: se tivesse me procurado, certamente, a gente teria tirado ele daqui”, conta com os olhos marejados. “Eu já havia ajudado a tirar, pela ALN, duas pessoas do País e estava a ponto de tirar mais três. Não me conformo de ele não ter me procurado para ajudá-lo.”
O jornalista, que ajudava tanto na confecção de documentos falsos quanto na logística para tirar do País militantes clandestinos da ALN, lembrou que no dia da morte de Norberto jogavam, pela Copa do Mundo de 1970, Brasil e Tchecoslováquia. Ao caminhar pela rua e ver torcedores celebrando, ele contou, sentiu raiva. “Tive ódio de quem comemorava porque, naquele mesmo dia, um jovem brasileiro que lutava pelo País havia morrido.”
A cerimônia, que reuniu mais de 150 pessoas e funcionou como uma cerimônia de adeus, teve um ar de tristeza e incompletude, expresso pelo jornalista: “Era para ele estar aqui com a gente. Era para, da mesma forma que eu, poder comemorar seu aniversário com sua família. Eu não perdoo quem impediu o Norberto de festejar o seu 73º aniversário, no dia 20 de setembro, ao lado de sua filha e netas. Não perdoo.”
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