Páginas

terça-feira, 30 de julho de 2013

Espanha: Sou a despejada que fala

Espanha: Sou a despejada que fala (2/3)

30 julho 2013
Libération Paris

 
Até 2008, Cristina Fallaras viveu uma vida estável, trabalhando como escritora e vice-diretora de um jornal. Então, grávida de oito meses, foi demitida e deslizou para o estatuto de mãe desempregada e sem domicílio fixo. Um percurso tragicamente banal, na Espanha em crise. Eis o seu testemunho. 

 
Despejadas diante de um edifício vazio ocupado pelo movimento Corralia Utopia, onde encontraram refúgio. Sevilha, 30 de maio de 2013 
Despejadas diante de um edifício vazio ocupado pelo movimento Corralia Utopia, onde encontraram refúgio. Sevilha, 30 de maio de 2013 - Jasper Juinen /Getty

Escrevi "Pode acontecer a qualquer um". Escrevi "Os meus filhos vivem abaixo da linha da pobreza". E a 25 de janeiro de 2012, no jornal El Mundo, também escrevi "Estou para alugar".
"Mulher branca, de 43 anos de idade, jornalista, escritora e editora. Altura – 1,69 m, 60 kg, ruiva descorada, olhos azuis. Estudos universitários, vinte e cinco anos de experiência em jornalismo em quatro jornais espanhóis, quatro estações de rádio e três cadeias de televisão. Seis livros publicados, incluindo quatro romances. Três foram premiados. Experiência na organização de redacções, equipas de trabalho, campanhas de comunicação, criação de páginas web e récitas de Gil de Biedma. Capacidade de escrever ou falar sobre literatura, política, economia, culinária, sexo, violência, edição, família e suas dificuldades, desemprego, crime, sindicalismo e penas, no sentido mais amplo.
Está para alugar para: pensar, cuidar de uma casa, mesmo que a missão inclua apanha de couves. Escrever todos os tipos de textos, de ficção ou não, correspondência incluída, mesmo que implique renunciar à respectiva assinatura, se for solicitado [...]. Passear animais ou pessoas, de preferência pessoas. Este serviço inclui a conversa. Projectar ações de obediência ou desobediência, públicas ou privadas.
"Qualquer serviço que não esteja incluído na lista e que faça falta será amavelmente considerado e respondido. Dá pelo nome de Cristina. Preços a negociar. Se interessado, é favor contactar cristinasealquila@gmail.com. Para relações sexuais, sexo oral, strip-tease ou similares, é favor abster-se."
Nua e aterrorizada, mas: é preciso falar. Falar do medo, formular a angústia, narrar a culpa.
Tive respostas. A maioria das respostas, apesar das indicações, com pedidos de serviços sexuais, por vezes muito imaginativos. Mas quase ninguém levou a sério a minha oferta. No entanto, era verdadeira, como tudo o que escrevo e publico no diário. Era tão verdadeira como o corte da electricidade previsto para o mês seguinte; tão verdadeira como as moedas contadas para comprar o leite dos pequenos almoços. Mas essas coisas, é preciso tê-las vivido para as entender, para estar consciente delas. Pensava que estava consciente e, no entanto, o aviso de despejo que me mandou o senhorio teve o efeito de um bloco de gelo que caiu como um peso morto ativando uma mola, deixando uma sensação de culpa. Nua e aterrorizada, mas: é preciso falar. Falar do medo, formular a angústia, narrar a culpa.

A negação

Chamo-me Cristina Fallaras, a desalojada que fala. Exactamente quatro anos antes da minha decisão de falar, numa manhã morna de Novembro, às 10 horas da manhã, precisamente na segunda-feira 17 de novembro de 2008, o director do jornal onde eu era directora-adjunta [ADN, um diário gratuito espanhol, pertencente ao grupo Planeta, que deixou de ser publicado em dezembro de 2011] despediu-me. Grávida de oito meses. Naquela época, a Espanha tinha 2,5 milhões de desempregados – achávamos que era um horror, o que é risível, hoje – e os presságios mais perspicazes previam que a crise larvar se prolongaria até 2010, talvez até ao início de 2011. Absurdo, respondíamos em coro, uma crise não pode durar tanto tempo! O governo de José Luis Rodríguez Zapatero falava de "brotos verdes", de que já tínhamos batido no fundo e que tudo começava a florescer novamente. Pouco depois, o socialista injectaria milhares de milhões de euros nos bancos espanhóis. Dinheiro público.
Foi aí que começou o meu despejo. Pela minha demissão. E com que frivolidade se tomam estas decisões. Em novembro de 2012, o jornal El País despediu 129 jornalistas. Lembro-me de pensar: carne para despejo, venham daí, cá para baixo, arranja-se espaço. Como veterana – em 2008, os despedidos foram cerca de 800 mil -, sei quais são os passos que se seguem.
A saber: primeira etapa. Tenho bastante valor, sou uma grande profissional. Tenho a minha indemnização, uma boa quantia, e tenho o subsídio de desemprego. Pelo menos por um ano e meio. Respiro fundo durante dois meses, para descansar e engolir o sapo. Esta etapa dura pouco menos de um ano.
Segunda etapa. Está a acabar-se o subsídio, não devíamos ter feito aquela viagem. Vamos mudar as marcas de sabonete, de roupa, de comida. Prioridade para as crianças: que não se apercebam de nada. Tenho que montar qualquer coisa, uma empresa de consultoria, um pequeno negócio, uma agência de comunicação. Vou investir o que resta da minha indemnização para garantir o futuro da família. Estupores de políticos. A segunda etapa abrange todo o segundo ano.

A descida

Preciso de comprimidos. Se me cruzo com um político na rua, torço-lhe o pescoço.
Terceira etapa. Meninos, este ano não há férias. Amor, acabou-se o carro. Bolas, o subsídio de desemprego durou muito pouco. Agora, só as marcas mais baratas, e arroz a granel para os adultos, nada de roupas. A pequena empresa ainda não deu nada, como poderia ser rentável em poucos meses? E se afinal não sou assim tão boa profissional? E porque é que o meu companheiro não arranja trabalho? Se calhar não se está a empenhar muito. Preciso de comprimidos. Se me cruzo com um político na rua, torço-lhe o pescoço. Ou ao empregado do meu banco. Se me voltam a telefonar por causa do atraso da prestação, rebento. Preciso de comprimidos. A terceira etapa compreende os primeiros dois terços do terceiro ano.
Quarta etapa. Preciso de comprimidos mais fortes. Está tudo com meses de atraso: mensalidade da casa, água, gás. O banco já não me responde. Querido, a carne é para as crianças, eu com uma massa fico bem. É da minha vista ou estou a envelhecer como um raio! Ninguém nos telefona já. Vou ao supermercado; entretém a caixa enquanto escondo pasta de dentes e lâminas de barbear dentro do casaco. A quarta etapa termina com o despejo. O que resta de ti, agora, é apenas estatística.
Continua.

Este artigo foi publicado pela primeira vez em espanhol a 12 de dezembro de 2012, na revista digital argentina Anfibia
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário