O Brasil na geopolítica da indignação global

Converter nossas cidades em uma grande ágora pode ser
um primeiro passo para canalizar a indignação dispersa e fragmentada em
potencial transformador
Breno Bringel - 27/06/2013
A
indignação não é um movimento social. É um estado de ânimo. E, como
tal, pode se expressar de maneiras muito diversas. No Sul da Europa, por
exemplo, o sentimento da indignação social nos últimos dois anos teve
fontes múltiplas, porém um dois principais fios condutores foi a
rejeição a pagar as consequências diretas da crise, que deveriam ser
assumidas pelos seus principais responsáveis. Banqueiros e especuladores
tornaram-se assim alvos centrais das mobilizações sociais. Nos Estados
Unidos, “occupiers” dirigiram em geral suas reivindicações a esses
mesmos atores, sob o argumento indignado de que o 1%, totalmente
distanciado dos anseios da população, não pode decidir o futuro do 99%.
No
Brasil hoje (e a conjuntura altera-se com uma rapidez impressionante
durante esses dias) a indignação ainda é extremamente difusa e
crescentemente polarizada. Sentimentos, argumentos e sentidos diversos e
contraditórios coexistem nas ruas, atos e manifestações. Alguns
expressam seu descontentamento com o funcionamento do transporte público
e dos serviços públicos de forma mais geral (principalmente educação e
saúde); outros apelam aos altíssimos custos (não somente econômicos, mas
também sociais, ambientais, culturais e políticos) da Copa e dos
megaeventos a serem realizados no país; jovens de classe média-baixa
indignam-se pela persistência profunda das desigualdades; também há
aqueles que insistem na indignação diante de questões mais específicas e
setoriais, conquanto não menos importantes, como a PEC37, a
criminalização do aborto, o projeto de lei aprovado para tramitação pela
Comissão de Direitos Humanos da Câmara para a denominada “cura gay”,
etc.
O maior contingente de população, em geral
jovens, que durante esses dias participou das mobilizações sociais ainda
tem um sentido da indignação pouco articulado politicamente, já que
para a grande maioria este é seu “batismo político”. Em outras palavras:
a indignação, a ira, a raiva e o ódio ainda não se cristalizaram em uma
ação política estruturada. Estes jovens, assim como boa parte da onda
de indignação global que tem viajado por diversos países do mundo nos
últimos anos, associam sua insatisfação a uma rejeição aos sistemas
políticos, aos partidos tradicionais e às formas convencionais de
organização política. Querem participar da vida política, mas não
encontram canais adequados. Antes de criticar os jovens por isso,
deveríamos nos perguntar o que (e por que) não funciona. E aproveitar a
oportunidade de ruptura da apatia e queda do muro de silêncio para a
conquista de direitos e avanços na transformação social.
As
mobilizações sociais são termômetros da sociedade e nem sempre revelam
rumos agradáveis. Costumam difundir-se de setores mais mobilizados e
organizados (nesse caso, principalmente o Movimento Passe Livre) a
setores menos mobilizados e organizados, sendo que os grupos iniciadores
podem ver-se absolutamente ultrapassados. Mobilizações de massa nem
sempre são controladas pelas organizações sociais e política e menos em
nossos tempos onde emerge um novo tipo de política viral e difusa. Este é
um grande desafio político, pois exige adaptar e renovar nossas formas
de ação.
Pensado em perspectiva comparada dentro
da onda global de indignação contemporânea, o caso brasileiro assume
especificidades que devem ser levadas em conta. É crucial, para isso,
entender as espacialidades da contestação social em, ao menos, três
dimensões. Em primeiro lugar, ao contrário de alguns dos processos
vividos na Europa, na África ou nos Estados Unidos recentemente e, a
despeito das solidariedades em vários lugares do planeta (sobretudo de
brasileiros que lá vivem) e do uso de ferramentas comuns, não há uma
difusão direta, permanente e sistemática dos protestos, enquadramentos,
formas e repertórios de ação com outros lugares fora do Brasil. Isso é
importante, pois reflete um escasso aprendizado compartilhado de
experiências de lutas sociais recentes que muito poderiam contribuir
para o atual momento no Brasil.
Em segundo lugar,
diferentemente das demais contestações da indignação contemporânea que
articularam dinâmicas escalares complexas, ligando o local ao global
(com importância forte do regional no caso da Europa), em nossas
mobilizações, a escala nacional serviu como um dispositivo de bloqueio
político que permitiu, em alguns casos, avivar posições nacionalistas de
direita. Em terceiro, os lugares importam. Cada manifestação, em
qualquer capital ou pequena cidade brasileira, se revestiu de demandas
particulares e de críticas específicas à política local e regional,
unidas às diversas culturas políticas. Isso é comum à onda de indignação
e aos protestos em geral. Contudo, essas especificidades locais revelam
também mudanças no perfil das reivindicações e na composição social dos
manifestantes. Isso leva a que, por exemplo, certos grupos que não
estavam presentes em São Paulo ou em Ribeirão Preto atuassem no Rio ou
em São Gonçalo e vice-versa; mas também a que as correlações de forças
sejam distintas em lugares diferentes.
Nesse
último campo, os atos de vandalismo e a violência também revelam as
fraturas, as desigualdades profundas, as segmentações e o classismo da
sociedade brasileira. Oportunistas e infiltrados não faltam (sejam
saqueadores, policiais e ex-policiais, racistas, xenófobos, homófobos e
ultradireitistas de plantão), mas também é preciso pensar como há nas
mobilizações recentes uma indignação de classe e de opressão que se une a
essa indignação difusa e crítica.
A
questão-chave a que nos enfrentamos é: como canalizar a indignação em
movimento social transformador? A resposta não é fácil, dado a profunda
disputa de significados pelas movimentações recentes. O primeiro
bloqueio vem dos meios de comunicação hegemônicos, que, com a ausência
de um pluralismo informativo, tem pautado a interpretação dos
acontecimentos. As redes sociais são uma ferramenta importante para a
comunicação horizontal, a convocatória e a difusão de mensagens, porém
insuficientes, pois, em geral, não geram/produzem contrainformação
sistemática e interpretações de amplo alcance. Urge, desse modo, a
criação de plataformas mais abrangentes de informação alternativa que
possam chegar a um contingente mais amplo da população.
Por
outro lado, torna-se cada vez mais urgente o investimento em atividades
pedagógicas de formação política dentro do processo de mobilização
atual. Dotar de significado transformador a indignação exige formação e
conscientização política. Este elemento é central para frear a
capitalização dos protestos pela direita, que tem usado ideias simples e
conservadoras, muitas delas enraizadas de forma quase naturalizada
(reproduzida claro, pela educação e pelos meios de comunicação
convencionais) na sociedade brasileira.
Como
consequência do anterior, vale a pena olhar outra vez para a onda de
indignação global. Em todas essas contestações criaram-se espaços de
convergência, macroassembleias e fóruns de discussão nos quais as
pessoas começaram a fazer política de outra maneira; discutiram,
compartilharam e amadureceram suas ideias. Também podemos (e deveríamos)
ter nossa Puerta del Sol e ocupações permanentes que permitam
aprofundar o processo aberto nas ruas. Devemos não somente disputá-las
como ampliar os espaços coletivos de construção. O Brasil tem sido nos
últimos anos um importante exemplo, em todo o mundo, de “laboratório
democrático” que se expressou em canais diversos de participação e
deliberação da sociedade. A maioria deles institucionais. Reinventemos e
aprofundemos isso também nos espaços públicos. Converter nossas cidades
em uma grande ágora pode ser um primeiro passo para canalizar a
indignação dispersa e fragmentada em potencial transformador. Também é
uma boa oportunidade para renovar nossas formas e forças de esquerda e
sensibilidades comprometidas com a justiça social e a emancipação.
Breno
Bringel é professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e editor de DADOS –
Revista de Ciências Sociais. E-mail: brenobringel@iesp.uerj.br.
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